As dualidades e regras não escritas do spoiler
Por que revelar alguma coisa sobre uma obra se tornou a linha mais perigosa de ser cruzada na cultura pop?
Este texto será encerrado com uma pergunta. Mas, calma, não vá até o final ainda, acompanhe a jornada. O caminho até lá pode ser custoso, mas a viagem, muitas vezes, é mais importante que o destino. A vida, por exemplo, é uma complexa, labiríntica e divertida estrada que todos começam já sabendo qual será o desfecho. Os atalhos não são opcionais, mas nem por isso ela deixa de ser recompensadora.
Existem aqueles que não conseguiram se controlar e já correram para ler a última frase. Recebeu um spoiler. Mas o que é isso e qual é o significado?
O nome, por si só, já carrega um peso negativo. A palavra deriva do verbo inglês “to spoil”, que significa “estragar”. Na cultura pop, o termo é utilizado para ilustrar situações em que uma pessoa revela algo sobre uma obra e arruina a experiência que a outra teria com o ineditismo daquela vivência.
O debate é extenso e não começou agora. Pelo contrário. O registro mais antigo do uso da palavra foi em um artigo escrito por Doug Kenney para a revista americana National Lampoom, em abril de 1971. Ao poucos, o conceito foi se difundindo e alcançou um nível de repercussão inimaginável.
Após o lançamento de um filme blockbuster ou do episódio daquela série que está todo mundo assistindo e você perdeu, sua rotina é transformada. Dialogar com os colegas de trabalho é um risco desnecessário, ler portais de notícias é pisar em campo minado e até as conversas na fila do banco estão mais apreensivas.
O receio de “tomar um spoiler” se tornou parte intrínseca da civilização contemporânea. E o efeito foi potencializado com a democratização da internet. Hoje, é mais fácil conseguir toda informação que você deseja e ainda mais difícil evitá-las.
O surgimento de fóruns, os grupos de discussão e a popularização das redes sociais impulsionaram a propagação dos spoilers, mas o efeito extrapolou a bolha da web. Essa prática já se tornou até caso de polícia: na fila de um cinema em Hong Kong, um homem foi espancado por gritar o final de “Vingadores: Ultimato” para as várias pessoas que esperavam a próxima sessão começar.
Este mesmo filme, que atualmente caminha para se tornar a maior bilheteria de todos os tempos, inclusive, protagonizou um capítulo recente do épico “A Guerra dos Spoilers”. Um pouco antes do lançamento do último capítulo (até agora) da saga de super-heróis da Marvel, os diretores Joe a Anthony Russo divulgaram uma carta pedindo aos espectadores que não espalhassem spoilers sobre o longa.
“Para os maiores fãs do mundo,
É isso. Esse é o fim. O fim de uma narrativa mosaica sem precedentes que englobou onze anos e onze franquias.
Para todos vocês que participaram dessa jornada conosco desde o começo, compartilhando os altos e baixos com sua família, amigos, colegas de escola e de trabalho. Investindo tão profundamente em cada personagem e história. Rindo. Vibrando. Derramando lágrimas. Entregando tão livremente suas ideias e emoções em um diálogo animado, teorias, artes e ficções. Por favor, saiba que nós dois, assim como todos os envolvidos em Ultimato, trabalhamos incessantemente nos últimos três anos com a única intenção de entregar uma surpreendente e emocionante conclusão poderosa para a Saga Infinita.
Porque muitos de vocês investiram seu tempo, seus corações e suas almas nessas histórias, nós pedimos uma vez mais por sua ajuda.
Quando vocês assistirem ‘Ultimato’ nas próximas semanas, por favor, não dê spoilers para os outros, da mesma forma que você não gostaria que te dessem.
Lembrem-se, Thanos ainda exige seu silêncio.
Como sempre, boa sorte e uma sessão feliz.”
Assim começava a campanha #DontSpoilTheEndgame. Durante os meses que antecederam e acompanharam o lançamento do filme, diversos vídeos foram divulgados com esse objetivo e a hashtag se propagou nas redes sociais.
“Obrigado por fazer parte do nosso universo”
Porém, mesmo com todos os avisos e pedidos feitos pelo elenco e produção da Marvel, o caminho para quem estava querendo fugir dos spoilers continuou complicado.
Nem o tradicional diretor Quentin Tarantino ficou longe da polêmica. Durante o Festival de Cannes, o diretor escreveu uma carta pedindo para que o público não compartilhasse spoilers da história do seu último filme “Era uma Vez em Hollywood”, que estreava naquele momento.
“Eu amo o cinema. Você ama o cinema. É a jornada de descobrir uma história pela primeira vez.
Estou emocionado de estar aqui em Cannes para compartilhar ‘Era Uma Vez em Hollywood’ com o público do Festival. O elenco e a equipe trabalharam intensamente para criar algo original, e eu só peço que todos evitem revelar algo que impeça o público futuro de ter a mesma experiência assistindo ao filme.”
I See Dead People (ou “Por que sentimos medo?”)
O trágico final e boa parte do enredo de “Romeu e Julieta” é revelado nas primeiras quatorze linhas do livro escrito por William Shakespeare. Parte significativa do público que foi aos cinemas ver “Titanic” já sabia que o navio afundaria. Da mesma forma que a versão live action de “Aladdin” e as adaptações de livros como “Harry Potter” e “Crepúsculo” eram histórias que já tinham sido contadas e ouvidas outras vezes.
O que dizer, então, das novelas? Ainda hoje, bancas de revistas estão entulhadas de folhetins adentrando em cada detalhe dos acontecimentos da trama. Mesmo assim, “Avenida Brasil” alcançou uma média de 50,9 pontos de audiência em seu último capítulo. Cerca de 72% dos televisores ligados estavam acompanhando o programa global.
Nos esportes, a situação não é tão diferente. Receber a notícia de que tal jogador fez um gol no jogo de futebol que você não está acompanhando ou descobrir, ao vivo, quem ganhou o campeonato, nem de longe evoca emoções tão sanguinárias quanto ler um tweet com a revelação de que um personagem irá engasgar em um episódio da série “Game of Thrones”.
Neste cenário, que, tal como tantos outros debates atuais, está cheio de posições extremas e dicotômicas, como diferenciar o que é spoiler e do que não é? Para o crítico de cinema Raphael “PH” Santos, essa experiência é individual e apenas a pessoa em si pode dizer se uma informação adicional irá ou não estragar esse momento. “A culpa está na expectativa das pessoas”, ele explica.
“Cada indivíduo é diferente. Nós sempre alimentamos o nosso cérebro antes de entrar na sala de cinema. Pela forma como a mídia está tratando a cultura pop, estamos enviesados para querer saber como o filme será, e essa expectativa é plantada. Por isso, muita gente acha que qualquer revelação é um spoiler a ponto de atrapalhar”, comenta Raphael.
Ele conta que não se importa em receber essas revelações:
“Por não ligar, o universo conspira ao meu favor. Assim, se eu vejo algo, nem sei o que está acontecendo. Se eu não estou preparado para saber como vai ser, não percebo certas pistas que são dadas nas mídias e redes sociais”.
Para PH Santos, dar spoiler é permitido, mas com cuidado.
“A sua revelação vem para agregar? Como crítico, às vezes, tenho que trazer uma informação, cena ou sequência para que a pessoa tenha um entendimento mais bacana, mas não estou entregando a ideia central. O limite para essa permissão é não dizer o final, independente dele ser ou não bombástico. Revelar o desfecho é um desrespeito, não só com a pessoa, mas com os produtores da obra, que se empenharam tanto para chegar naquele resultado”, aponta.
Na direção contrária, Max Valarezo, criador do Canal Entre Planos, conta que sempre se importou com spoilers e fica chateado quando recebe um, mas a relação é amigável. “Com o tempo, fui percebendo que não é uma coisa tão catastrófica. Ainda vou ficar chateado, mas não acho que a experiência da obra está completamente arruinada, como eu pensava antes”, explica.
“Não arruina a experiência, apenas o elemento surpresa, mas uma obra proporciona muito mais do que isso”, continua. “Um exemplo pessoal é a HQ ‘Watchmen’. Enquanto estava lendo pela primeira vez, na adolescência, tomei spoiler de quem era o vilão da trama. Fiquei chateado, mas depois, quando cheguei no final, percebi que a graça da conclusão ia muito além dessa revelação”, conclui.
“No, I am your father” (e em quanto tempo pode-se falar sobre isso?)
Pouco depois do lançamento de “Vingadores: Ultimato”, os diretores, em entrevista ao programa de TV “Good Morning America”, disseram que, depois de duas semanas em cartaz, a campanha pedindo para o público não dar spoilers sobre o filme seria encerrada. Joe Russo, inclusive, argumentou que parte do motivo deles desenvolveram o longa foi justamente para propiciar as conversas sobre.
“Se você ainda não viu ‘Ultimato’, veja nesse final de semana. A proibição de spoilers termina na segunda-feira”
Tão controversa quanto a discussão a respeito do peso e importância dos spoilers é o tempo que o público deve manter silêncio para não estragar a experiência de outras pessoas. Assim como o período de eleições políticas no Brasil em 2018, inúmeras amizades devem ter chegado ao fim com a última temporada de “Game of Thrones”, o seriado mais polêmico do ano.
De um lado, pessoas usavam as redes sociais para discutir todos os meandros e destrinchar as cenas de cada episódio da trama, com teorias e ensejos para cada personagem. De outro, pessoas pediam para que essas conversas fossem evitadas, pois ainda não haviam assistido. Com os Trending Topics ocupados pelo tema, manter-se nas redes sociais e permanecer indiferente era quase impossível.
As reações eram instantâneas e acompanhavam cada avanço do enredo. Houve quem fugisse das redes sociais com o propósito de não ler nenhuma revelação de soslaio e até quem apelou a truques diversos para não correr nenhum risco. O Cinema Com Rapadura já fez um vídeo no canal do Youtube justamente dando dicas para evitar spoilers:
O último episódio de “Breaking Bad” foi ao ar em 2013. O capítulo final de “Sopranos” foi exibido em 2007. “Sexto Sentido” chegou aos cinemas em 1999. E já se passaram quase 40 anos desde a estreia de “Star Wars – Episódio V: O Império Contra-Ataca”, que apresentou uma das revelações mais importantes da cultura pop.
Já é permitido, então, falar abertamente dessas histórias ou, assim como em “Game of Thrones”, o silêncio deve ser preservado? Max Valarezo defende que não existe validade para o spoiler. “Não importa a idade da obra, não é todo mundo que conseguiu entrar em contato com ela ainda”, justifica.
No fim das contas, é quase impossível chegar a um senso comum. “A experiência é de cada um e não pode ser transferida”, analisa PH Santos. E o debate parece estar longe de acabar. A chave para a conciliação é empatia e bom senso para entender se aquela revelação vai ou não estragar um momento que poderia ser especial para outra pessoa ou tornará ainda melhor. Da mesma forma, não se pode ser mesquinho e ignorar o desejo de quem deseja participar de um movimento, compartilhando as ideias e as impressões com outros colegas.
E você? Qual foi o spoiler mais marcante que já recebeu? Ele te fez gostar mais ou menos da obra em questão?