Cinema com Rapadura

Colunas   domingo, 09 de junho de 2019

Fora-de-Quadro #02 – Como a psicologia das cores ajuda a contar uma história

Da teoria à prática: a influência das cores no cinema.

Atualmente é raro nos depararmos com um filme preto e branco sendo exibido em salas de cinema. Além de lugares que exibem filmes antigos, ou algumas exceções como vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, “Roma” (2018), em todos os meios possíveis, seja no cinema, na TV aberta, ou no streaming, a cor está presente. Isto só exemplifica o quão importante foi o início da utilização das cores no cinema, e como essa mudança moldou toda uma indústria.

Na segunda edição do Fora-de-Quadro, será analisado como hoje em dia as cores dão o tom do filme; representam os traços de um personagem; simplificam a história e mostram a jornada de um personagem. E essas cores podem vir em forma da iluminação da cena, cenário e até mesmo no figurino.

A utilização da psicologia das cores no cinema

Necessita-se conceituar alguns termos e até mesmo a própria teoria das cores antes de analisar os filmes. Um dos livros mais famosos sobre coloração no cinema é o “If It’s Purple, Someone’s Gonna Die” (ou seja, “Se é Roxo, Alguém vai Morrer”) da escritora Patti Bellantoni. A obra é um grande apanhado de significados das cores, que emoções ela transmite, e como aplicar isso no audiovisual. A autora exemplifica os significados de seis cores principais: vermelho, amarelo, azul, laranja, verde e roxo.

Bellantoni sistematiza esses significados e, dependendo da tonalidade de cada uma dessas cores, como o seu sentido também pode mudar. O maior exemplo disso é no azul: se o tom for mais claro torna o ambiente mais frio e remete a características consideradas frias. Já se ele for mais quente, torna o ambiente mais suave e receptivo. O infográfico abaixo mostra os principais significados que cada uma das seis cores pode ter:

Para entender melhor os significados também precisamos entender os três principais componentes da cor. A começar pela matiz, que é a própria cor, sem adição de preto ou branco. Há também a saturação que é relacionada a proporção de cinza presente na imagem. Quanto menos cinza tiver, mais saturada ela está. Na parte visual, isto interfere na intensidade da cor. E por fim, há a luminosidade, que se refere ao brilho da imagem, se está mais escuro ou mais claro. Como já mencionado, se mantemos a mesma matiz em duas imagens, mas em uma delas trocarmos a luminosidade, por exemplo, o seu significado já muda.

Por fim, há de se entender as maneiras de balancear a palheta de cores de um filme. Para isso, são usados alguns esquemas de cores padrão baseados na roda de cores.

Os mais conhecidos deles são: o monocromático, o análogo, a complementar e a tríade.

O monocromático consiste em uma cor base única e quantas tonalidades forem precisas. Ele é usado para focar uma ação ou sentimento específico. Como em “Matrix” (1999) dirigido pelas irmãs Wachowski.

Créditos da Imagem: Studio Binder.

Já o esquema análogo utiliza uma cor dominante e outras adjacentes para enriquecer a harmonia. Tem de se lembrar que esses esquemas são pensados a partir da roda de cor, então, o análogo seria uma cor presente na roda e as suas “vizinhas”. Ele também é usado para transmitir uma emoção, mas dessa vez com um foco mais amplo. O próprio termo vem da palavra “analogia”, transmitindo esse simbolismo para a tela. Pode-se ver ele presente em “Traffic” (2000) dirigido por Steven Soderbergh.

Créditos da Imagem: Studio Binder.

Há também o esquema complementar, no qual duas cores localizadas em posições opostas na roda de cores são utilizadas. Normalmente utiliza-se esse esquema para justamente demonstrar essa diferença, esse antagonismo. Ele também é utilizado para dar destaque a uma das cores utilizadas.

Por conta disso, os filmes de Hollywood em anos mais recentes começaram a usar este esquema para dar destaque aos personagens presentes em cena. Isso acontece porque na roda de cores o azul é complementar ao laranja. Ou seja, ao usar o esquema com estas duas cores, a pele do ator, representada pelo laranja, terá destaque ao fundo que tem tom mais azulado.

Esquema complementar em “X-Men Apocalypse” (2016), “A Ilha” (2005), “Mad Max: Estrada da Fúria” (2015) e “Transformers” (2007).

Por fim, há o esquema triádico, parecido com o esquema anterior, mas desta vez, utiliza-se três cores da roda de cores após traçar um triângulo nela. Esse esquema é um dos mais seguros, por ser o meio termo entre o análogo e o complementar. Normalmente é utilizado para deixar o filme com tom mais vibrante mas mantendo balanceado. Como no clássico “Superman” (1978) de Richard Donner.

Créditos da Imagem: Studio Binder

A partir desses conceitos discutidos, consegue-se identificar alguns pontos da história e o porquê da escolha das técnicas.

A cor que dá o tom do filme

O tom de um produto audiovisual pode ser ditado por vários elementos cinematográficos. Mas, há filmes que mantém um padrão de cor que ao batermos os olhos, já conseguimos identificar o gênero, o contexto do que está acontecendo e muitas vezes até o diretor. O premiado “O Regresso” (2015) de Alejandro González Iñárritu é um dos maiores exemplos disto.

O filme foi gravado para dar a sensação de isolamento e até mesmo frio que o enredo demonstra. O trabalho de produção do longa foi ainda mais difícil por ter sido filmado à luz natural. Mesmo assim, ao assistirmos o filme, essa frieza é nos passada do início ao final. O azul é a principal cor presente, e na maior parte do filme, é usado o esquema análogo com a cor. Na imagem abaixo, vê-se a palheta de cores, além de uma saturação e luminosidade baixa, para acentuar mais o cinza e provocar as emoções citadas.

Outro filme que é ditado pelo uso das cores é “O Grande Hotel Budapeste” (2014) do diretor Wes Anderson. O modo como Anderson utiliza as cores e a perspectiva se tornaram grandes marcas de seus trabalhos e não à toa. Até mesmo os cartazes promocional do longa mostram a coloração em tons vermelhos e rosados, passando o sentimento de poder e grandiosidade. Na foto a seguir a saturação e a luminosidade também estão elevadas, dando uma vida magnífica ao hotel.

Anderson dita dois tons no filme através das cores (além do cenário e atuação também). O hotel que acabamos de ver é da década de 1930, que destoa de como ele fica na década de 1960. A imagem a seguir mostra um quadro do longa com cores totalmente destoantes entre si. Há alguma relação entre o verde e o amarelo, mas o laranja e em especial o roxo não estão relacionados em nada no local. Isso chega a causar uma estranheza ao olhar e é proposital, para mostrar que o local na década de 1960 parece até mesmo outro do que o mostrado na década de 1930.

A cor que representa os traços de um personagem

No “Fabuloso Destino de Amélie Poulain” (2001) de Jean-Pierre Jeunet, a personagem principal tem uma visão do mundo como se ele fosse um conto de fadas. As cores utilizadas durante todo o filme são verde e vermelho, além do amarelo que quando não faz parte da cena, aparece como um filtro aplicado na imagem. As cores verde e vermelho são complementares entre si, e a decisão de colocá-las juntas pode ser entendida de duas formas.

A primeira é que o vermelho é utilizado por ser conhecido mundialmente como sendo a cor do amor, que a personagem tanto busca encontrar. O vermelho está presente na maior parte do apartamento de Amélie, por exemplo. Já o verde remete a coloração da natureza, o que dá um ar de serenidade e inocência, que são características da personagem. Ou seja, ao colocar o esquema complementar utilizando as duas cores, o diretor está mostrando a maneira que a personagem funciona.

Outra interpretação que se pode ter é que a utilização de cores complementares, que estão em locais opostos na roda de cores, quer demonstrar essa diferença e oposição da forma que Amélie vê o mundo. Ou seja, as duas cores dão um contraste diferencial para o longa, que pode representar o contraste entre o mundo de fadas que a personagem vive.

Créditos da Imagem: Studio Binder

Há também o caso de quando associamos uma cor a um personagem, e o maior exemplo é “O Cavaleiro das Trevas” (2008) de Christopher Nolan. Já nas imagens promocionais do filme, vê-se o grande contraste entre o personagem do Coringa e do Batman. Dois personagens icônicos da ficção que sempre são mostrados como opostos, na utilização das cores não poderia ser diferente.

O palhaço é representado por tons de roxo e constantemente durante o longa dá longas gargalhadas durante seus atos de vilania. Já o Cavaleiro das Trevas é representado por cinza e preto, desde sua roupa, até a personalidade calada. O confronto entre os dois personagens se dá na mistura do tom sombrio do herói e dos atos caóticos do vilão.

Créditos da Imagem: Studio Binder

A cor que mostra a jornada de um personagem

A jornada que um personagem conclui ao final do filme é representada de várias formas, seja por um diálogo, um enquadramento ou até mesmo uma comparação com o ínicio. Barry Jenkins demonstra a jornada de Chiron no vencedor do Oscar “Moonlight” (2016) com maestria. A utilização de cores no longa é uma das maneiras que Jenkins coloca força emocional na história.

O longa é dividido em três partes: “Little”, “Chiron” e “Black”, que representam a infância, adolescência e fase adulta, respectivamente, do personagem principal. No primeiro capítulo, conhecemos Chiron criança, vestido com uma camisa branca, para representar a inocência, e com mochila azul. Esta seção do filme é repleta de cores mais claras e do próprio azul, que ainda vai ser reforçado durante o longa.

A criança conhece Juan, no começo, tanto o personagem quanto os telespectadores ficam em dúvidas se o rapaz mais velho é confiável ou não. Juan eventualmente conta uma história sobre como seu apelido costumava ser “Blue” (azul, em tradução literal) e se torna uma figura paterna para a criança. A cor azul se mostra como uma representação de Juan.

A audiência ainda descobre que a mãe do garoto, Paula, é viciada em drogas. Quando a mãe chega em casa após se drogar, acontece o quadro mais escuro do capítulo, ela vestida de vermelho olhando o menino. Neste momento, a luminosidade e a saturação também estão muito baixas, para acentuar a tensão.

O primeiro capítulo ainda mostra que é Juan o fornecedor de drogas da mãe de Chiron. A última imagem que vemos do rapaz é ele admitindo isso para a criança. Juan antes era alguém de caráter duvidoso para os espectadores, agora, apesar de ser um traficante de drogas, ele já se tornou alguém confiável. E o padrão de cores da cena repete quando o rapaz e o menino se encontraram pela primeira vez, com Juan usando branco agora.

O segundo capítulo inicia com Chiron na escola usando uma camiseta listrada com cores de amarelo, verde e um pouco de azul. Isso representa o conflito na personalidade do jovem, ainda mais que o filme o retrata como alguém que é gay mas não assumido. Chiron sofre bullying de Terrel, um aluno de sua escola que utiliza um tom parecido de vermelho, representando a violência, que sua mãe usa no capítulo passado.

Dentre outros acontecimentos, o jovem pega uma camiseta branca com listras azul. Isso representa que o personagem está se tornando cada vez mais como Juan, e na próxima vez que vemos Chiron na escola ele está usando a camisa. É neste momento, que o rapaz que ofendia Chiron se aproxima de um jeito amigável ao garoto, inclusive vestido de camiseta branca. Mas, ao repararmos nos detalhes, o tênis dele é um vermelho escuro.

Após isto, vemos que o rapaz queria passar um trote em Chiron, no qual vários garotos o agrediram e ele para no hospital. Apesar da insistência do diretor, o rapaz não deu o nome de quem o agrediu. A próxima vez que vemos ele na escola, está usando uma camiseta inteira azul, o que indica que ele está se tornando mais parecido com Juan. O ambiente da cena também é repleto de objetos da cor, e no final, Chiron se vinga, quebrando uma cadeira nas costas do rapaz.

O último capítulo é intitulado “Black” que é como Chiron se apresenta agora, já que é um apelido que Kevin – seu interesse romântico na adolescência – o deu. A parte final inicia com Black acordando de um pesadelo com sua mãe. A roupa que ele utiliza, além da iluminação e do cenário, são pretas (ou seja, “Black”) e em tons de cinza

Após isto, descobrimos que “Black” seguiu os passos de “Blue” e se tornou um traficante de drogas. Em um dos melhores quadros do filme, o personagem principal lava o rosto, e toda luz envolta dele está azul, e ele, preto.

Ele recebe uma ligação de sua mãe e resolve visitá-la numa clínica de reabilitação. Paula agora está com aparência calma, suas cenas estão bem iluminadas, diferente do começo. Ela até mesmo usa uma camiseta azul clara no encontro.

Kevin liga para Black para se encontrar, e no momento da ligação está usando branco, para retratar que o personagem é confiável novamente. No momento de reencontro dos dois, Kevin também usa branco. A cena final do filme é uma das mais – se não, a mais bonita. O pequeno Chiron, agora Black, está na praia à noite, no luar. A cor preta se destaca no personagem, mas é o tom de azul no restante da cena que toma conta. Agora, há até mesmo um filtro azul no corpo de Chiron e ele olha para a câmera, quase desafiando a audiência a ser si mesmo.

A cor de um filme pode simplificar o enredo, emocionar a audiência e até mesmo brincar com a perspectiva de um local. O início do cinema em cores é um grande marco na história da sétima arte, isto não resta dúvidas. Mas, atualmente, o que mais impressiona é a utilização das cores, com toda uma teoria embasada, parecer sutil numa produção.

Quando assistimos à um filme é difícil repararmos nas cores utilizadas em cada quadro – e nem deveríamos. É a sutileza de tornar algo complexo parecer simples, ou até mesmo, coincidência, que faz com que a beleza das cores se destaquem quando paramos para pensar numa produção.

Amanda Gongra
@a_gongra

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