Fora-de-Quadro #01 – Mise-en-Scène: a arte de contar uma história sem usar palavras
Como Alfred Hitchcock, Quentin Tarantino e os irmãos Coen constroem um filme através do que colocam em cena.
Qualquer pessoa no seu início de estudo sobre o mundo cinematográfico se depara com uma série de termos diferentes. Mise-en-scène não só é um deles, como talvez seja o mais importante também. O termo vêm do francês e em tradução literal significa “Posto em Cena”. Na primeira edição da coluna Fora-de-Quadro, falaremos mais sobre este elemento.
O mise-en-scène é uma forte herança teatral para o cinema, tanto que o termo surgiu justamente ao construir os cenários no teatro. Pode-se dividir o que está incluso no mise-en-scène em quatro elementos principais: locação, figurino e maquiagem, iluminação e atuação.
Justamente por ter esse herança do teatro, elementos próprios do Cinema como movimentação de câmera e edição não estão inclusos nele. O termo se refere apenas a “montar a ação no palco”, como define David Bordwell em “A Arte do Cinema: Uma Introdução”. É a maneira como o diretor passa emoções através do que está presente na cena.
Ao analisar o mise-en-scéne dos filmes, este conceito se torna cada vez mais claro. Alguns filmes podem ser usados para exemplificar o termo, também. Isto será feito com: “Psicose”, “Pulp Fiction” e “Onde Os Fracos Não Tem Vez”. Mas cuidado, o texto a seguir contém spoiler destes filmes.
Psicose: o clássico de Hitchcock e a dualidade através da iluminação
Este é o filme por qual Hitchcock é reconhecido até hoje, devido as suas diversas contribuições para o gênero de horror. O filme conta a história de Marion Crane (vivida por Janet Leigh), que depois de cometer um crime acaba em um motel dirigido por Norman Bates (Anthony Perkins), um homem macabro.
As consequências a partir deste encontro é o que o roteiro realmente quer mostrar. Antes de entrar na iluminação de “Psicose”, o tema de dualidade, ou dupla personalidade, pode ser visto desde a abertura do filme. Nela vê-se a apresentações de créditos e título sempre divididas, o que já indica que essa dualidade será abordada no filme. Veja a introdução do longa abaixo:
Só no decorrer do filme descobrimos que é Norman Bates, que sofre de um transtorno de identidade, a quem a abertura referenciava. Em uma cena que mostra uma conversa de Bates com Marion, a iluminação já deixa claro essa dualidade.
Primeiro é importante estabelecer as três iluminações mais comuns no cinema: a principal, o enchimento, e a contra-luz, que normalmente são usadas simultaneamente. Na imagem abaixo, pode-se entender melhor a posição de cada uma delas:
Na cena referida anteriormente, a luz principal é uma lâmpada posicionada no meio dos dois personagens. Devido a esta escolha, o reflexo de Norman Bates é visto na janela, ou seja, naquele momento existem “dois Normans” em cena.
O lugar pequeno repleto de objetos, demonstra o quão desconfortável é a situação entre os dois. Quando a câmera corta para closes do personagem, a iluminação de Norman é diferente da de Marion. Nas cenas de Norman usa-se o tipo low key, uma iluminação desigual que deixa o ambiente mais escuro e com sombras. Essa escuridão reflete o interior do personagem.
Enquanto com Marion usa-se o set up high-key, uma iluminação bem distribuída em cena, deixando o ambiente mais claro. O que mostra a pureza da personagem, que ela pode se redimir do crime cometido.
Esta cena ainda pode ser dissecada de diversas outras maneiras além da iluminação. Veja a cena completa (sem legendas):
Pulp Fiction: estabelecendo relações de poder através da Mise-En-Scène
O filme que rendeu o primeiro Oscar de Tarantino pode ser utilizado para estudar Cinema em diversos momentos. Não só este, como “Kill Bill” e “Django Livre” são grandes demonstradores de conhecimentos cinematográficos.
“Pulp Fiction” se resume em três narrativas diferentes, dispostas de maneira não-linear, que se entrelaçam no final. Acompanhamos um casal assaltando um restaurante, e Butch Coolidge (Bruce Willis), um boxeador tentando salvar sua carreira. Porém, os protagonistas parecem ser o gângster Marsellus Wallace (Ving Rhames) e seus capangas Vincent Vega (John Travolta) e Jules Winnfield (Samuel L. Jackson).
Há diversas cenas que podemos analisar do filme, a interação de Vincent com Mia Wallace (Uma Thurman) renderia um artigo solo. Porém, tentando mostrar algo mais presente em todo o longa, o modo que Tarantino demonstra a relação de poderes dos personagens através da construção da cena é algo marcante.
Em uma das primeiras cenas do filme, Vincent e Jules invadem um apartamento com três garotos nele, o principal sendo Brett (Frank Walley). Os dois capangas são mostrados como superiores a eles desde o início.
Analisando o quadro acima, vê-se que o lugar está bagunçado, o que dá a entender que eles ainda são garotos, e não homens como Vincent e Jules. Além disto, enquanto os capangas estão vestidos de terno e gravata, os outros três estão de camisetas e moletons, o que deixa a diferença mais marcante.
Depois, Jules se posiciona de uma maneira que ofusca os garotos. Apesar de não ser o objeto de análise, neste momento a edição e a posição da câmera também influenciam nessa demonstração de poder de Jules.
Ao ficar nesta posição, Jules olha para os garotos de baixo para cima, demonstrando a inferioridade deles. Um chega a ficar escondido no background, como se não fizesse diferença alguma. O personagem de Jackson continua a agir, ao decorrer da cena, desta maneira.
Revela-se mais tarde que havia um quarto garoto escondido, mas, quando ele tenta atirar contra Jules e Vincent, nenhuma bala sequer os atinge. Novamente, mostrando o quão intocáveis eles são em relação aos garotos.
Mas esta relação de poder dos capangas vai diminuindo ao decorrer do filme. Eles sequestraram um dos garotos, Marvin (Phil LaMarr), e iriam levá-lo para ser interrogado. Porém, Vincent acidentalmente o mata no percurso. A dupla recorre, com ajuda de Marsellus, a Winston Wolfe (Harvey Keitel), ou apenas “O Lobo”.
Tarantino usa, novamente, a mise-en-scène para contar a história. Porém, agora ela é utilizada para demonstrar a mudança de poder. Enquanto O Lobo se veste de uma maneira sofisticada e se porta como sendo alguém de sabedoria, os dois capangas são enquadrados como se fossem dois papagaios no ombro dele. E desta vez são Vincent e Jules que desaparecem no fundo, com suas roupas e corpos sujos, ensanguentados.
A cena da morte de Vincent também estabelece uma relação de poder entre ele e Butch. O boxeador retorna ao seu apartamento afim de buscar um objeto que tem uma conexão emocional. Já desconfiado de ter alguém ali, ele enfim encontra o capanga no seu apartamento. Relembre a cena abaixo:
Butch pega a arma de Vincent e o mata com um tiro certeiro. Além de morrer com um tiro de sua própria arma, o capanga termina sua vida no vaso do banheiro. Após isto, o boxeador encontra Marsellus, o gângster que até o momento era visto como o personagem mais poderoso do filme.
Butch tenta matar Marsellus atropelado, o que já indica a mudança de poder. Mas o ápice disto é em algumas cenas depois, quando os dois são raptados por Maynard (Duane Whitaker), o dono de uma loja de penhores.
O boxeador consegue fugir do local quase intacto, e ao procurar o poderoso gângster, o encontra sendo estuprado e totalmente humilhado. No final, é Butch quem termina o filme por cima da escala de poder, já que foi ele quem salvou Marsellus.
Onde Os Fracos Não Tem Vez: Uma obra prima cinematográfica que conta sua história através de cada detalhe
Considerado um dos melhores filmes do século, a obra prima dos irmãos Coen renderia uma análise afundo de diversas horas. O longa se passa na década de 80 e conta a história de Llewelyn Moss que encontra uma maleta com vestígios de um dinheiro conquistado através de venda de drogas. Após isto ele é perseguido por um assassino e pelo xerife da cidade.
Vamos focar em apenas dois elementos do filme: a atuação e a ambientação. Em relação ao primeiro elemento, existem inúmeros métodos de atuação, porém pode-se perceber a diferença clara entre dois principais personagens do filme. Josh Brolin como o protagonista Llewelyn Moss e Javier Bardem como o assassino Anton Chigurh.
Para interpretar o vilão do filme, Bardem usa o Método de Interpretação, ou simplesmente, O Método. Isto consiste no ator utilizar de suas memórias emotivas sentidas em sua vida pessoal para retratar a emoção do personagem. Anton é frio, calculista, despreza a tudo e a todos, um típico assassino.
Bardem, obviamente, não é um serial killer em sua vida pessoal. Mas o que ele faz é um exagero magistral de uma face de sua personalidade a fim de convencer o público que ele é esse assassino que não sente remorso.
Brolin, por outro lado, usa o método Naturalista ou Realista. Resumidamente, esse método consiste em pegar algum traço de personalidade e transmitir, normalmente de forma não-convencional, para seu personagem.
Particularmente neste filme, Brolin usa uma persona não muito dramática. Toda frase de Moss parece soar e ser natural ao ator. Esse método, quando realizado da maneira correta, tende a impactar os espectadores. Isto porque mostra que não precisa agir de uma forma exagerada para ser central no filme, ou para fazer uma boa atuação.
O figurino e maquiagem ao mesmo tempo que podem contar uma história, também podem servir para ambientar o filme em determinada época. Os irmãos Coen dão um passo à frente disto e também se preocuparam em colocar carros da época nas cenas externas e usar o dialeto que se era usado na época.
Até mesmo o corte de cabelo do vilão Anton foi inspirado em uma foto de um homem em um bordel de prostituição da época, vista pelos diretores. Ele foi feito para parecer alguém assexual, indiferente a vaidade. Isto combinado a todos outros fatores citados anteriormente, além de ambientar o espectador, também faz o filme parecer mais verdadeiro.
Por fim, vale dizer que não é o mise-en-scène que determina se o filme é bom ou não, todavia. Há diversos filmes que se dissecarmos a cena, tem-se um cenário simples, mas que ainda fazem um tremendo sucesso. O “posto em cena” é uma maneira de, inconscientemente ou não, contar a história do filme sem usar palavras.