Cinema com Rapadura

Colunas   quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Andy Serkis e a evolução da captura de movimentos

Veja lista de personagens marcantes interpretados, por Serkis e outros atores, através da captura de performance.

Na última sexta-feira (7), a Netflix lançou “Mogli – Entre Dois Mundos”, filme que traz o ator Andy Serkis como diretor. A produção, que mais uma vez conta a célebre história do garoto criado entre lobos, traz personagens interpretados com o auxílio da captura de movimentos, técnica que, na atual indústria hollywoodiana, tem se tornado indispensável. Curiosamente, Serkis tem sido, ao longo dos últimos anos, o mais hábil dentre os profissionais que fazem uso da referida tecnologia como recurso interpretativo no processo de atuação e composição de personagens.

Porém, antes de trilhar esse caminho, Serkis deu início à sua carreira de ator ao participar da segunda temporada da sitcom britânica “The New Statesman” (1989). Durante o final dos anos 80, e por toda a década de 90, ele fez pequenas participações em diversas outras séries inglesas. Sua estreia no cinema aconteceu em 1994, com “Jutland – Reinado de Ódio”, e, a partir daí, o ator fez pontas em uma quantidade razoável de longas britânicos.

Serkis, entretanto, ganhou notoriedade ao interpretar diversos personagens em computação gráfica, para os quais tanto o seu corpo quanto a sua movimentação serviu como um tipo de molde para a elaboração da caracterização física destes. E, para que isso fosse possível, foi necessário o uso da captura de movimentos (motion capture em inglês, ou mocap), que é o processo de gravação de movimento seguido pela transposição deste para um modelo digital. Esse sistema registra e traduz movimentos humanos em três dimensões. Inventado na Escócia, o mocap também é utilizado em diversas outras áreas do entretenimento, bem como no militarismo, nos esportes e em aplicações médicas. O processo também é conhecido como captura de performance ou captura de desempenho.

A primeira vez em que Serkis atuou com o auxílio da captura de movimentos se deu ao interpretar o icônico Gollum (ou Sméagol), da trilogia “O Senhor dos Anéis”, de Peter Jackson. O ator inglês, por meio de uma performance brilhante, e também graças à inovadora tecnologia disponível, chamou a atenção do público por dar vida a uma criatura que se destacava não apenas por ser portadora de uma anatomia bizarra, mas também pelo enorme carisma e pela enfática dramaticidade que a estranha figura era capaz de demonstrar. Tais características se tornaram contundentes graças às expressões faciais que Serkis compunha para Gollum, que saltavam à tela com absoluta nitidez, produzindo assim um forte impacto no espectador. Mas, embora Gollum estivesse presente na trilogia de Jackson desde “O Senhor dos Anéis – A Sociedade do Anel” (2001), a tecnologia do mocap só foi aplicada em “O Senhor dos Anéis – As Duas Torres” (2002) e em “O Senhor dos Anéis – O Retorno do Rei” (2003), quando o personagem em questão ganhou maior destaque na narrativa.

Depois de “O Senhor dos Anéis”, Andy Serkis continuou fazendo papéis no cinema, inclusive trabalhando como dublador em algumas animações, mas nenhum de seus novos personagens ofereceu ao público o mesmo impacto que Gollum. Até que, em 2005, Peter Jackson convidou novamente Serkis para trabalhar com ele, dessa vez no remake de “King Kong”, no qual o ator viveu o personagem-título. O imponente gorila de cem metros de altura lhe rendeu novo reconhecimento quanto ao seu enorme talento em conceder aos seus personagens a capacidade de transmitir ao público uma enorme sensação de realismo, mais notadamente em relação à movimentação corporal e à expressão facial.

Em entrevistas, Serkis já declarou que em “O Senhor dos Anéis” a filmagem era, inicialmente, realizada em película; depois, a equipe, em um pequeno estúdio (chamado “espaço de captura de movimentos”), repetia a gravação usando câmeras em 360 graus, o que mapeava os seus movimentos. Nos filmes seguintes – e isso inclui, além de “King Kong”, a animação “As Aventuras de Tintin” (2011), na qual interpretou o Capitão Haddock, e a nova trilogia da franquia “Planeta dos Macacos”, em que deu vida ao símio César -, foi usada a captura facial, em que as expressões dos rostos dos atores eram capturadas e aplicadas diretamente a uma máscara digital, tornando possível a movimentação e a atuação destes em qualquer lugar dentro do estúdio de captura, pois havia câmeras montadas em suas cabeças, o que os mantinha restritos apenas às câmeras ao seu redor. Dessa forma, de “Planeta dos Macacos – A Origem” (2011) para frente, foi possível levar toda essa tecnologia para as locações e sets, permitindo aos atores que não ficassem totalmente restritos pela tecnologia.

A captura de movimentos, por sua vez, também evoluiu na pós-produção em termos de renderização – etapa na qual se obtém o produto final de um processamento digital qualquer -, assim como o trabalho artístico de registrar as nuances das atuações, o que no caso específico da saga dos símios inclui a inserção das expressões faciais e corporais dos atores, respectivamente, nos rostos e nos corpos dos macacos. Andy Serkis teve o desafio de “calibrar” os movimentos, a fisicalidade e a maneira de se comunicar de César, protagonista que, depois de “Planeta dos Macacos: A Origem”, o ator também defendeu em “Planeta dos Macacos – O Confronto” (2014) e “Planeta dos Macacos: A Guerra” (2017). Para Serkis, o cinema chegou à sua melhor forma de representação do que o ator realmente é capaz de fazer ao interpretar um personagem construído em CGI. Isso passa por uma melhora radical do software criado para simular esses movimentos.

Pela visão de Andy Serkis, no processo de captura de movimentos, o intérprete é tanto o “ventríloquo” quanto a “marionete” do seu avatar digital. O ator já afirmou, reiteradas vezes, não fazer diferença para ele o fato de sua imagem real sequer aparecer na projeção de uma película na qual ele seja intérprete de um personagem em CGI, pois o personagem em si, assim como o desafio de interpretá-lo e aproximá-lo do público, é o seu maior estímulo. Serkis sempre fez questão de enfatizar que, para ele, estar no set interpretando um personagem por captura de movimentos é algo intenso e igual a qualquer outra forma de atuação. Nos ensaios de “Planeta dos Macacos”, era possível para ele ver a si próprio, por meio de uma tela no estúdio, como o personagem virtual que estaria no filme, o que o ajudou a conceber as nuances que considerasse adequadas a César.

Mas, apesar do pioneirismo de Andy Serkis, o primeiro filme do cinema a usar a captura de movimentos, “Batman Eternamente” (1995), não contou com o ator britânico em seu elenco. No filme de Joel Schumacher (“Garotos Perdidos”), o dublê de Val Kilmer, então na pele do Homem-Morcego, interpretou o herói em algumas cenas, graças ao mocap“Titanic” (1997) também utilizou esse recurso, com a tecnologia sendo responsável por replicar muitos dos figurantes em boa parte das cenas no famoso navio – essas pessoas foram representadas com pequenas alterações visuais. Mais um exemplo é “Star Wars: Episódio I – A Ameaça Fantasma” (1999), que usou a motion capture para criar o controverso Jar Jar Binks, que Ahmed Best interpretou também em “Star Wars: Episódio II – Ataque dos Clones” (2002) e “Star Wars: Episódio III – A Vingança dos Sith” (2005).

Em termos de evolução, no que concerne à captura de movimentos, o básico não mudou muito. Os atores vestem uma roupa especial contendo pequenos pontos – dezenas de marcadores corporais que refletem luz – que mandam sinais, que são captados por câmeras em 360 graus espalhadas pelo estúdio; e têm uma câmera montada na cabeça para capturar a expressão facial. Basicamente, o que muda são os artistas e o software para gerar os personagens na pós-produção. Os marcadores formam o esqueleto do ator; as câmeras possuem leds em volta da lente, que iluminam os marcadores, e que refletem a luz, permitindo assim a captura; essas câmeras geralmente são especificamente desenvolvidas para registrarem (ou “enxergarem”) apenas os pontos de luz; o esqueleto virtual, então, é inserido sob o esqueleto do personagem criado digitalmente.

No futuro, uma das prováveis aplicações para a performance por captura no cinema, como em uma biografia, por exemplo, seria a possibilidade de que um ator “desse vida” a uma personalidade já falecida. Algo do tipo aconteceu em “Rogue One – Uma História Star Wars” (2016), que reapresentou um personagem antigo da franquia, defendido por Peter Cushing (“Star Wars: Episódio IV – Uma Nova Esperança”), que havia falecido 22 anos antes do lançamento do filme. Nesse processo, apelidado de ressurreição digital, ao invés da escolha de um ator bem parecido com a pessoa que se pretende representar, são tiradas fotos 3D que registram sua real fisionomia; posteriormente, um ator interpreta a pessoa por meio da captura de performance. Isso se assemelharia ao processo que ocorre no fotorrealismo, em que um artista estuda uma fotografia e, em seguida, tenta reproduzir a imagem, da forma mais realista possível, em outro meio.

Cineastas como Steven Spielberg (“Jogador Nº1”) e James Cameron (“Avatar”) já empregaram o uso da captura de movimentos em seus filmes. E muitos atores, além de Andy Serkis, já encenaram por meio dela. Segue abaixo alguns exemplos de personagens digitais interpretados tanto por Serkis quanto por outros atores, tanto em live action quanto em animações:

Tom Hanks como o Condutor em “O Expresso Polar” (2004)

O elenco mirim de “A Casa Monstro” (2005)

Bill Nighy como Davy Jones em “Piratas do Caribe – O Baú da Morte” (2006) e “Piratas do Caribe – No Fim do Mundo” (2007)

Zoe Saldana como Neytiri em “Avatar” (2009)

Jim Carrey como Scrooge em “Os Fantasmas de Scrooge” (2009)

Benedict Cumberbatch como Smaug em “O Hobbit – A Desolação de Smaug” (2013) e em “O Hobbit – A Batalha dos Cinco Exércitos” (2014)

Andy Serkis como o Supremo Líder Snoke em “Star Wars: Episódio VII – O Despertar da Força” e em “Star Wars: Episódio VIII – Os Últimos Jedi”

O quarteto protagonista de “As Tartarugas Ninja 2” (2016)

Mark Rylance em “O Bom Gigante Amigo” (2016)

Lupita Nyong’o como Maz Kanata em “Star Wars: Episódio VII – O Despertar da Força” (2015) e “Star Wars: Episódio VIII – Os Últimos Jedi” (2017)

Dan Stevens com a Fera em “A Bela e a Fera” (2017)

Mark Ruffalo como Hulk em “Vingadores” (2012), “Vingadores: Era de Ultron” (2015), “Thor: Ragnarok” (2017) e “Vingadores: Guerra Infinita” (2018)

Tye Sheridan como Parzival em “Jogador Nº1” (2018)

Josh Brolin como Thanos em “Vingadores: Guerra Infinita” (2018)

Há também os alienígenas de “Distrito 9” (2009) e os robôs de “Chappie” (2015), ambos do cineasta sul-africano Neill Blomkamp, e as diversas criaturas de “Valerian e a Cidade dos Mil Planetas” (2017), do francês Luc Besson. Alguns dos dinossauros de franquia “Jurassic World” também são interpretados por atores com a ajuda da captura de movimentos:

Blue, a velociraptor de “Jurassic World: O Mundo dos Dinossauros” (2015) e “Jurassic World: Reino Ameaçado” (2018)

Preparando-se para o desafio de dirigir seus próprios filmes, Andy Serkis, ao lado do produtor Jonathan Cavendish, criou a empresa Imaginarium, uma companhia especializada em captura de performance com foco em produção. Serkis também já dirigiu a captura de movimentos para vídeo games. No passado, ele dirigiu alguns curtas, mas sua estreia como diretor de longas se dará, de fato, em “Mogli – Entre Dois Mundos”. Na realidade, este foi o primeiro projeto que Serkis entrou como diretor, mas com uma produção tão demorada, o cineasta ainda pôde dirigir e lançar outro filme nesse meio termo, o “Uma Razão Para Viver”. A principal experiência de Serkis nesse sentido foi como diretor de segunda unidade na trilogia “O Hobbit”.

Na história de “Mogli – Entre Dois Mundos”, criado por uma alcateia em meio às florestas da Índia, Mogli (Rohan Chand) vive com os animais da selva e conta com a amizade do sábio urso Baloo (Serkis) e da esperta pantera Bagheera (Christian Bale). Ele é aceito por todos os animais, exceto pelo temido e mortal tigre Shere Khan (Benedict Cumberbatch). Quando Mogli se defronta com suas origens humanas, perigos maiores do que a rixa com Shere Khan podem surgir.

O elenco do filme ainda conta com Cate Blanchett (“Oito Mulheres e Um Segredo”) como a sinistra cobra Kaa e Naomie Harris (“Rampage: Destruição Total”) como a loba Nisha. Também estão no longa Matthew Rhys (da série “The Americans”) como John Lockwood e Freida Pinto (“Quem Quer Ser Um Milionário?”) como Messua.

Andy Serkis esteve presente na CCXP18 para divulgar “Mogli”, e durante o painel do filme, em um vídeo exibido, foi dito a frase “a tecnologia evolui para acompanhá-lo”. Então é certo dizer que, se depender de Serkis, o motion capture só tende a evoluir.

Fernando Gomes
@rapadura

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