Do movimento heroico ao obscurantismo ideológico: as versões da Ku Klux Klan que o cinema ajudou a propagar
"O Nascimento de Uma Nação", "Tempo de Matar" e "Mississippi em Chamas": alguns dos filmes que mostraram a Klan como a mocinha ou como a vilã da história americana.
Um dos cineastas mais aclamados das últimas décadas, o diretor Spike Lee (“Faça a Coisa Certa”) é, indiscutivelmente, dono de uma das filmografias mais ousadas de toda a história do cinema mundial. Seu longa mais recente, “Infiltrado na Klan” (leia aqui a crítica do Cinema com Rapadura), é mais um ótimo exemplar de uma galeria notória por abordar com recorrência um dos assuntos mais incômodos aos EUA dos últimos três séculos: a segregação racial. De tão enraizado, esse mal ainda se faz amplamente presente na nação mais desenvolvida do planeta, ao ponto de afetar a livre manifestação da pluralidade em uma das sociedades mais diversificadas do mundo.
No caso de “Infiltrado na Klan”, o próprio título do filme já indica que o foco narrativo repousa em um dos elementos mais sombrios e polêmicos de toda essa problemática questão: a misteriosa Ku Klux Klan, também conhecida como KKK, ou simplesmente “Klan”. A Ku Klux Klan, por sua vez, é um amálgama entre três movimentos distintos, todos de viés reacionário e de extrema direita, que floresceram nos Estados Unidos da América em períodos diferentes a partir do século XIX. Embora alegadamente protestante, a Klan nunca contou com a aprovação da maioria das denominações desse ramo do Cristianismo, que, na verdade, sempre a combateu.
A origem do primeiro movimento data de 1865, no Sul, tendo como alvo líderes afro-americanos, que foram vítimas de constantes e violentos ataques. O segundo grupo, de abrangência nacional, teve início em 1915, e seu assédio era direcionado aos judeus e aos católicos, sobretudo aos imigrantes oriundos desses dois grupos. A ferrenha oposição à Igreja Católica sempre fora uma das características basilares do movimento. Já a atual Klan surgiu na década de 50 do século XX, sem possuir um comando central, estando, portanto, diluída em diversos segmentos – o combate ao movimento dos direitos civis constitui-se como o principal elo e o objetivo em comum desses grupos.
Os bizarros chapéus cônicos – usados para dificultar a identificação de seus usuários -, os compridos trajes brancos, as palavras e os códigos secretos, os rituais de queimas de cruzes e os intimidadores desfiles em praça pública são algumas das peculiaridades que, propositalmente, ajudaram a dar um estigma aterrorizante à Ku Klux Klan no imaginário popular. A supremacia branca, o nacionalismo exacerbado e a “purificação” social dos EUA por meio de ideias anti-imigração são outros princípios que norteiam a ação da Klan, até ao ponto de suas práticas, que em casos extremos incluem até mesmo assassinatos, serem consideradas ações terroristas. Outra aberração que figura entre os pressupostos do movimento, e que vergonhosamente o aproxima de ideologias tão nocivas e perversas como o nazismo, é a defesa da eugenia, sempre relacionada ao mito do “puro sangue” – neste caso, o sangue anglo-saxão, supostamente oriundo dos nativos americanos do século XIX.
Com todo esse histórico negativo, a Ku Klux Klan tem servido de inspiração para a concepção de incontáveis obras ficcionais que, lançando mão da imagem de extremismo vinculada à Klan, a apontam, de maneira inequívoca, como a grande antagonista de suas histórias. Dentre essas obras, destacam-se algumas produções cinematográficas que, dado o caráter exclusivista da Klan, contribuíram para desnudá-la perante uma parcela considerável dos espectadores e da opinião púbica. Tendo isso em vista, seguem abaixo dois exemplos de filmes que, por meio da utilização da temida Ku Klux Klan como tema, manifestaram ao mundo o poder nefasto de seu segregacionismo, que, de forma velada ou explícita, permaneceu nas últimas décadas pulsante no coração da América. Em contrapartida, também segue listada uma obra de cunho favorável à Klan, pois engana-se quem acredita que o cinema nunca teve a ousadia de produzi-la. Veja abaixo:
“O Nascimento de Uma Nação”
Em 1915, ainda na vigência do cinema mudo, o diretor D.W. Griffith (“Intolerância”) causou grande alvoroço com o lançamento de “O Nascimento de Uma Nação”, sobre a Guerra de Secessão (1861-1865) e suas consequências. Realizada ainda nos primórdios da indústria cinematográfica, a produção foi pioneira ao apresentar uma longa história em escala épica. O sucesso foi tão estrondoso que o filme é considerado como o mais rentável entre os que foram lançados antes de “E O Vento Levou…” (1939).
Apesar do sucesso de “O Nascimento de Uma Nação”, Griffith, reconhecidamente um grande expoente da sétima arte, caiu em desgraça perante a opinião pública ao conceber uma obra descaradamente racista e que apresentava os adeptos da Ku Klux Klan como heróis. O filme defendia que a primeira Klan seria a responsável por restaurar a ordem no Sul pós-guerra, então sob a “ameaça” dos afro-americanos e de seus aliados. Coincidência ou não, o fato é que a Ku Klux Klan, que passara por um grande período de inatividade, renasceu justamente no ano de lançamento de “O Nascimento de Uma Nação”, e o filme foi, por muito tempo, utilizado pela Klan como ferramenta para o recrutamento de novos membros.
“Tempo de Matar”
Baseado no livro homônimo e obra-prima do célebre autor americano John Grisham, “Tempo de Matar” (1996), do diretor Joel Schumacher (“Garotos Perdidos”), apresenta a história do jovem advogado Jake Brigance (Matthew McConaughey, da série “True Detective”), que enfrenta a oposição de uma cidade inteira ao aceitar defender Carl Lee Hailey (Samuel L. Jackson, de “Dupla Explosiva”), um homem que matou os dois estupradores de sua filha, uma garotinha de apenas dez anos de idade. Na trama, enquanto a brutalidade cometida pelos rapazes, que são brancos, é tratada com total descaso pelas autoridades locais, em contrapartida, os assassinatos cometidos por Lee, um homem negro, são tratados com extremo rigor em um julgamento arranjado a fim de puni-lo com a pena de morte ou a prisão perpétua. Pressionado a abandonar o caso e perseguido por extremistas e autoridades corruptas, Brigance, sua família e amigos passam a ser alvos de uma sinistra força que há muito acreditava-se extinta, a Ku Klux Klan, que, por meio de violentos atentados, torna a vida na pequena cidade de Canton, no Mississippi, um verdadeiro inferno.
“Tempo de Matar” é um drama forte e tocante, tendo sido considerado por muitos a melhor adaptação para o cinema de uma obra de Grisham, um escritor famoso por criar impactantes histórias de tribunais. Um dos vários méritos do filme é a abordagem contemporânea da Ku Klux Klan, que, à época – meados dos anos 90 -, imaginava-se extinta. O ponto alto do longa é o comovente discurso que Brigance faz em defesa de Lee no tribunal, um poderosíssimo momento no qual o latente racismo de muitos é confrontado da maneira mais singela e desconcertante possível.
O filme ainda contou em seu elenco com nomes como Sandra Bullock (“Oito Mulheres e Um Segredo”), Kevin Spacey (“Em Ritmo de Fuga”), Ashley Judd (da série “Twin Peaks”), Kiefer Sutherland (da série “24 Horas”) e Donald Sutherland (da série “Trust”).
“Mississippi em Chamas”
Em meados da década de 60, dois agentes do FBI, Rupert Anderson (Gene Hackman, de “Operação França”) e Alan Ward (Willem Dafoe, de “Projeto Flórida”), são enviados a uma cidade no interior do Mississippi para investigarem o desaparecimento de três jovens ativistas pelos direitos civis. Os policiais se deparam então com uma comunidade tomada pelo medo e pela segregação. O clima de terror no pequeno município é imposto pela Ku Klux Klan, que possui como eminentes membros as principais autoridades locais, desde a polícia até aos políticos da região. As coisas se complicam quando os indícios da investigação apontam para o envolvimento da Klan no estranho sumiço dos garotos.
“Mississippi em Chamas” (1988), dirigido por Alan Parker (“O Expresso da Meia-Noite”), causou polêmica na época de seu lançamento, por mostrar os agentes federais como heróis, quando, ao contrário, tanto o FBI quanto o Departamento de Justiça dos EUA foram acusados de serem negligentes quanto aos clamores que vinham do Sul naquele turbulento período. As situações em que a trama do longa baseou-se foram apresentadas no documentário televisivo “Ataque ao Terror: O FBI versus a Ku Klux Klan” (1975), cujos relatos também originaram outro especial para a TV, “Assassinato no Mississippi, Aleluia” (1990). O filme, que ainda teve a participação de Brad Dourif (“Um Estranho no Ninho”) e Frances McDormand (“Três Anúncios Para Um Crime”), é um impactante suspense dramático indicado ao Oscar de Melhor Filme.
Em suma, cada um dos filmes citados acima contribuiu a seu modo para expor uma visão particular da Ku Klux Klan como uma personagem de destaque na história dos EUA. Sendo assim, que a sociedade americana escreva um novo roteiro para o futuro de sua nação, reservando à Klan um papel que lhe seja adequado nesse arco dramático. Resta apenas saber qual: protagonista, coadjuvante ou mera figurante?