Cinema com Rapadura

Colunas   segunda-feira, 23 de julho de 2018

Os traços de Hayao Miyazaki: entre o rigor estético e as sutilezas da vida

Conheça mais sobre a obra e as características dos filmes de Hayao Miyazaki, o mestre da animação japonesa, e criador de algumas das personagens mais icônicas do cinema.

Quem tem o costume de assistir diferentes filmes para conhecer melhor o cinema, em algum momento da vida tropeça em alguma obra de Hayao Miyazaki. O diretor, animador, ilustrador e roteirista japonês é um dos nomes asiáticos mais conhecidos no ocidente quando o assunto é cinema, além de ser dos maiores mestres das animações. Tal título não é um exagero, afinal, seus filmes são repletos de camadas e utilizam todo o potencial que um desenho pode oferecer. Ele dialoga com os costumes japoneses, faz filmes para adultos e crianças e foi co-criador de um dos mais importantes estúdios de animação do mundo: o Studio Ghibli.

Miyazaki nasceu em 1941, e sua obra demonstra como a Segunda Guerra Mundial afetou sua infância. Nunca estudou cinema, mas trabalhou, quando jovem, desenvolvendo modelos de aeronaves para a empresa em que seu pai trabalhava, e daí surge outra paixão do diretor: a aviação. Em comemoração aos 15 anos do lançamento no Brasil de seu mais conhecido trabalho, “A Viagem de Chihiro”, o Cinema com Rapadura relembra as principais obras do diretor e suas principais características.

 

Antes do Ghibli

O primeiro contato de Miyazaki com animação foi no início da década de 1960, quando começou a trabalhar para a Toei Animation, estúdio de animação responsável por animes como “Dragon Ball”, “Cavaleiros do Zodíaco” e “Pokémon”. Por nunca ter estudado cinema, seus primeiros trabalhos, principalmente como ilustrador e animador, fizeram com que ele conseguisse desenvolver uma visão narrativa que lhe seria fundamental futuramente. Os primeiros trabalhos como co-diretor, ainda pela Toei, intensificaram o olhar crítico para a animação e em 1979 ele lança “O Castelo de Cagliostro” pela TMS Entertainment (mesmo estúdio responsável pela adaptação de “Akira”).

Mas é com seu próximo longa, “Nausicaä do Vale do Vento”, que Miyazaki começa a desenhar seu próprio estilo como diretor. Um dos temas quase sempre presentes em sua obra, o conflito entre o urbano e o selvagem, é bem representado aqui, como parte da trama central, inclusive. O tom ecológico do filme é bem evidente e se entrelaça em uma história complexa, mas bem desenvolvida.

O filme também marca o início da parceria de Miyazaki com o compositor Joe Hisaishi, que o acompanha desde então. Variando entre o j-pop e a música orquestrada, Hisaishi consegue oferecer uma interpretação única para cada filme.

Os primeiros clássicos

“Nausicaä” foi lançado antes da criação do Ghibli, mas foi fundamental para seu nascimento. O reconhecimento que Miyazaki ganhou com o lançamento do filme o motivou a fundar o próprio estúdio ao lado de Isao Takahata (“O Conto da Princesa Kaguya”), Toshio Suzuki e Yasuyoshi Tokuma. “O Castelo no Céu”, primeiro longa do Ghibli, já mostra um Miyazaki mais maduro e consciente da produção que está dirigindo. Esta aventura steampunk apresenta uma das mais belas características do estúdio: o cuidado com a ambientação. Cada cenário, cada fumaça ou vento é preciosamente bem trabalhado. É possível ver que para cada plano, um grande quadro é desenhado, permitindo closes em detalhes ou panorâmicas.

Mas é com “Meu Amigo Totoro” que os detalhes inconfundíveis de Miyazaki começam a se destacar. Seu primeiro filme feito para o público infantil, o longa é uma aventura subjetiva de duas crianças que encontram na amigável imagem de Totoro um conforto para a adversidade da vida. E o diretor não diminui seu rigor narrativo com este filme. A doença da mãe é o mais próximo que há de um vilão aqui. Uma interpretação nada maniqueísta da vida, afinal a doença em questão não é um castigo ou uma maldição. Não é boa ou ruim, é apenas uma doença, que pode afetar mais uma pessoa do que outra. Nesse sentido, o respeito que o diretor demonstra com o público infantil ao oferecer um de seus mais belos trabalhos é admirável.

O Céu é o limite

Em 1989 chega a vez de Miyazaki nos emocionar com uma de suas maiores paixões: o voo. Máquinas voadoras estão presentes em quase todos os seus filmes e ele nunca escondeu seu amor pela aviação, mas com “O Serviço de Entregas da Kiki”, ele utilizou o conceito para uma belíssima analogia sobre a passagem da inocência para a vida adulta. A jovem bruxa Kiki também é utilizada para representar o conflito de gerações e classes. Por se tratar do filme mais simples do diretor, é uma excelente porta de entrada para novos fãs.

Seu próximo trabalho, “Porco Rosso: O Último Herói Romântico”, é sua mais evidente crítica à guerra. A frase dita pelo protagonista de que “É Melhor ser Porco do que ser fascista” demonstra bem a visão do diretor sobre o conflito, além de retratar no protagonista o que é a perda da humanidade. Fica claro ao longo do filme que a maldição que o transformou em um porco é ao mesmo tempo um sentimento de culpa por seus atos do passado.

Conquistando o mundo

Desde “Meu Amigo Totoro”, Hayao Miyazaki já era um cineasta reconhecido no Japão, mas em 1997 ele lança “Princesa Mononoke”, seu trabalho mais adulto e pesado. E com essa obra o mundo começa a prestar mais atenção no seu nome. Apresentando uma violência ainda não presente em seus demais filmes, aqui ele faz a sua análise mais profunda e contundente sobre as muitas faces do ser humano. Como já lhe é habitual, não há um trabalho com mocinhos e vilões, bons ou maus. Porém aqui ele é especialmente bem sucedido ao casar a trama com um belo retrato da mitologia japonesa. E com o sucesso do filme no mercado internacional, ele se prepara para lançar a sua mais conhecida obra.

“A Viagem de Chihiro” é uma das mais belas animações japonesas já feitas. Não apenas visualmente, destacando novamente a incrível habilidade de Miyazaki de lidar com seus filmes como se fossem live-action, mas pela sutileza com que trabalha tantas camadas em um único filme, sem torná-lo pretensioso. Soma-se a isso uma personagem que é um retrato fiel do cinema do diretor. Chihiro é uma garota jovem, que ao longo do filme passa por mudanças enormes que a obrigam a assumir riscos. Uma protagonista que evolui ao longo da obra para no fim se tornar uma outra pessoa, mais forte, independente e decidida. E é justamente o seu percurso ao longo dessa jornada que tornam o filme tão significativo.

“A Viagem de Chihiro” garantiu o Oscar de melhor animação para Miyazaki em 2003. Com isso seu nome teve um alcance ainda maior internacionalmente. Talvez isso justifique suas decisões com seu próximo longa, “O Castelo Animado”. Longe de se tratar de um filme de menor qualidade, esta é sua obra mais ocidental (o longa é uma adaptação do livro de mesmo nome da autora britânica Diana Wynne Jones). Isso, porém, não implica em um filme sem o estilo próprio do diretor. É uma fantasia riquíssima, cuja essência está na relação entre as personagens, mais do que nos conflitos em si. Em uma última análise, é apenas um diretor aplicando um olhar diferente no seu próprio trabalho.

A maturidade do artista

Em 2009, Hayao Miyazaki já era um dos nomes mais importantes para história da animação. E quando decide lançar seu próximo filme, “Ponyo: Uma Amizade que Veio do Mar”, ele opta por abandonar a animação digital que o acompanhou nos três trabalhos anteriores, para se dedicar ao clássico padrão de desenho. O filme marca também o retorno do diretor ao trabalho voltado principalmente ao público infantil. E novamente é possível perceber seu respeito ao fazê-lo. “Ponyo” é uma belíssima aventura sobre o verdadeiro poder da amizade e uma animação riquíssima esteticamente. As cenas dentro do mar são carregadas de detalhes, tornando cada plano de tirar o fôlego.

Com toda uma carreira dedicada a criar histórias fantásticas, Miyazaki reservou ainda um espaço para um projeto biográfico. “Vidas ao Vento” conta a trajetória de Jiro Horikoshi, um dos maiores projetistas da história da aeronáutica japonesa. Misturando sua habilidade de trabalhar personagens com sua grande paixão, esta despedida do Miyazaki da direção de longa metragens é seu trabalho mais consciente e seguro. Cada diálogo, cada plano e cada ação carregam o rigor que o diretor construiu ao longo dos anos, resultando numa fascinante homenagem.

Mesmo tendo anunciado o fim da carreira como diretor, Miyazaki tem um projeto anunciado. “Kimitachi wa dô ikiru ka”, sem uma tradução oficial ou data de lançamento, foi anunciado pelo Ghibli como “um filme de Miyazaki”. De qualquer forma, caso sua aposentadoria seja oficializada após esse projeto, seu legado jamais será esquecido, nem sua importância para o cinema. Suas personagens são tão reais quanto fascinantes e seus roteiros são repletos de um realismo que falta a diversos trabalhos de outros realizadores. Sua habilidade de trabalhar com a fantasia é única e não há como não reconhecer seus méritos.

Robinson Samulak Alves
@rsamulakalves

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