Filmes natalinos: fogueiras, esperança e as histórias que nos transformam
Faltando pouco para o Natal, venha pensar conosco sobre a importância do cinema para os nossos laços e nossas perspectivas de transformação.
Contar histórias é um dos traços que nos define como gente. Nossa capacidade de nos comunicarmos e relatarmos experiências – sejam elas reais ou não – é uma característica que nos distingue das demais espécies, e uma habilidade que fomos aprimorando ao longo do tempo. Antes ilustrávamos paredes e nos reuníamos em volta do fogo para ouvir aventuras pessoais ou lendas das tribos, e o tempo se encarregou de transformar o espaço: as fogueiras se tornaram mesas ou lareiras; das cavernas fomos para as escolas, igrejas e círculos de amigos em torno de uma pizza fria madrugada afora, sem jamais as histórias pararem de ser contadas. Mesmo com a mudança dos ambientes e do meio pelo qual a contação ocorre, ainda nos reunimos em torno de uma luz para ouvirmos e contarmos histórias, com a expectativa de que elas nos confortem e, se possível, nos transformem. O cinema, seja na tela grande ou na caseira, perpetua essa tradição, que se torna ainda mais visível em nossas épocas festivas de fim de ano.
Um exemplo clássico dessa capacidade do cinema de nos agregar em torno de histórias que se tornam tradicionais é visto em “A Felicidade Não se Compra“, filme de 1946 de Frank Capra (“Aconteceu Naquela Noite“) com James Stewart (“Um Corpo que Cai“) e Donna Reed (“A Um Passo da Eternidade“). No longa, George Bailey (Stewart) é um homem desgostoso com a vida e completamente desesperançado, em vias de cometer suicídio, quando seu anjo da guarda Clarence (Henry Travers, “Rosa da Esperança“) vem resgatá-lo de si mesmo, mostrando para George como seria sua cidade caso seu desejo tivesse sido atendido e ele jamais tivesse nascido.
É fácil ver porque “A Felicidade Não se Compra” é um filme natalino por excelência, ao ponto de movimentar toda uma cidade para realizar festivais anuais em sua homenagem e sendo reprisado nas TVs estadunidenses todo Natal há décadas. Fantasiado de uma trama de causa e consequência, o longa também é uma história sobre o poder que a tradição tem de mudar uma realidade; mesmo em meio ao caos da vida de Bailey, à beira da falência e da prisão, há esperança simplesmente porque é Natal, a época perfeita para o necessário improvável acontecer. Em meio à insegurança, o ser humano tende a se voltar para as histórias tradicionais para encontrar apoio. É isso que acontece com Bailey, e é isso que fazemos com o próprio filme ao assisti-lo ano após ano: buscamos na tradição do Natal o potencial de encontrarmos milagres para nossas realidades.
“Milagre na Rua 34“, inclusive, versa exatamente sobre isso, embora com um caráter mais lúdico. Mesmo com várias versões, provavelmente a mais próxima de nossas memórias brasileiras está no remake de 1994, protagonizado por Richard Attenborough (“Jurassic Park: Parque dos Dinossauros“) e Mara Wilson (“Matilda“). Na história, um homem chamado Kris Kringle (Attenborough) é contratado para ser o Papai Noel de uma loja de departamentos, com o pequeno detalhe de que ele afirma ser o verdadeiro Bom Velhinho. As crianças logo acreditam nele, com a exceção da pequena Susan (Wilson), e a loja de departamentos passa a faturar mais pela chegada do novo Noel. Após uma armadilha, Kris acaba no banco dos réus, e subitamente o caso se torna sobre aceitar ou não a existência de Papai Noel.
Se “A Felicidade Não se Compra” fala sobre a capacidade que tradições têm de serem pequenos milagres que colocam em perspectiva o que é importante de fato, nos inspirando gratidão, “Milagre na Rua 34” já traz um mundo cínico que é obrigado a lidar com o impossível dentro dos limites impostos por sua lógica. Da sua própria forma, “Milagre na Rua 34” também é uma ótima fogueira para sentarmos em volta e compartilhar de sua história por trazer à tona o potencial do que há de fantástico no mundano se nos dedicarmos a procurá-lo. Os dois filmes, por caminhos diferentes, demonstram o anseio que todos temos ao fim de mais um ano: que nós – e, por conseguinte, nossas vidas – sejamos melhores no ciclo vindouro.
A expectativa de transformação que essas fogueiras natalinas nos inspiram está presente mesmo em filmes que não se passam ao cair da neve. O processo pelo qual Jack Skellington atravessa em “O Estranho Mundo de Jack” é bem natalino, mesmo que ele viva nesta estranha cidade do Halloween: Skellington está descontente com a repetição e a monotonia de seu mundo de horrores, e busca se reinventar… Exatamente na Cidade do Natal. Lá, dentre os presentes e flocos de neve, Jack identifica o poder transformador da tradição, observando que há “um deleite” e as pessoas dando as mãos, felizes, em união. É nesse universo do Natal que Jack encontra a possibilidade de mudar de vida – sua própria versão da realidade paralela de George Bailey -, se redescobre e finalmente volta a aceitar sua identidade como Rei da Abóbora (ou “do Horror”, na nossa dublagem). É o maior filme de Natal que o Dia das Bruxas já produziu.
Criatura por criatura, o Grinch também é uma das histórias mais repetidas nas nossas fogueiras modernas. Embora na gringa seja mais comum lembrar do especial de TV de 1966 – por si só um clássico de fim de ano nos EUA -, o nosso contato se deu de forma mais marcante com a versão de 2000, “O Grinch“, estrelada por Jim Carrey (“Sim Senhor“) e Taylor Momsen (da série “Gossip Girl”). Aqui, o Grinch (Carrey) amargamente inveja e deseja destruir o Natal dos Quem, mas é confrontado inesperadamente pelo afeto de uma garotinha de seis anos chamada Cindy Lou (Momsen).
Em paralelo com “Milagre na Rua 34” e sua outra criança de seis anos, “O Grinch” também realça a necessidade da inocência para que, paradoxalmente, amadureçamos de forma saudável, sendo esta inocência um componente que é ressaltado na sociedade na época quando as casas se decoram e a neve (no outro hemisfério) desce sobre os telhados. É essa capacidade de olharmos o mundo através dos olhos de uma criança que nos permite ter a tal esperança para um ano que vem melhor do que o ano que foi.
Todos esses filmes, com suas inspirações à gratidão e à inocência, têm em comum algo maior e mais perene: eles continuam sendo assistidos. Ano após ano, Natal após Natal, da árvore do 30 Rockefeller Plaza em “Esqueceram de Mim” à arvore na casa dos Parrish em “Jumanji“, esses filmes são fontes de luz ao redor das quais nos reunimos como família – seja a de sangue ou a que escolhemos – de mãos frente ao corpo para nos aquecermos com as histórias que nos acalentam desde pequenos. Embora não sejam novidade e muitas vezes já conheçamos suas falas, a exposição a elas faz com que nos sintamos seguros mesmo quando defrontados às incertezas e possíveis transformações que a expressão “Ano Novo” traz às nossas mentes.
Estamos ainda no começo de dezembro e, por mais que esta coluna que o Cinema com Rapadura preparou para você pareça adiantada, ela vem exatamente em tempo de você revisitar o calor que algumas dessas histórias – ou todas, ou outras que aqui não foram mencionadas – representam para nós. Esteja você em casa ou longe daqueles que você ama, ou tenha você feito uma nova casa com novos amores, o cinema tem a capacidade maravilhosa de criar um lar onde quer que você esteja, e de nos aconchegar em noites mais frias. No fim das contas, estes e tantos outros filmes se apresentam exatamente desta forma ao mesmo tempo tão primitiva e tão perfeita para nossos tempos: são uma nova fogueira em torno da qual podemos encontrar conforto.