Livros: O poder das escolhas – O mundo distópico de Divergente
Autora usa sociedade que classifica pessoas por traços de personalidade para falar sobre a busca da identidade e a pluralidade humana.
As adaptações de romances de literatura Jovens Adultos ou YA (Young Adults, no original em inglês), está bastante em alta em Hollywood nos últimos anos – em especial a vertente de fantasia distópica, impulsionada pelo sucesso estrondoso de “Jogos Vorazes”. O mais recente exemplar do gênero, “Divergente” chega aos cinemas brasileiros em 17 de abril e é baseado no livro homônimo escrito por Veronica Roth.
A história de “Divergente” se passa em uma versão futurista de Chicago onde, após ser devastada por uma guerra, a sociedade se reergueu sobre um sistema de facções que divide as pessoas baseado em traços de personalidade. São elas a Franqueza, a Amizade, a Audácia, a Abnegação e a Erudição – os que valorizam a honestidade, a fraternidade, a coragem, o altruísmo e o conhecimento, respectivamente. Aos 16 anos, cada jovem deve passar por um teste de aptidão e escolher entre continuar com sua família ou deixar sua facção de origem e se transferir para outra.
O livro conta a história de Beatrice “Tris” Prior. Nascida na Abnegação, Tris nunca sentiu se encaixar em sua facção. Parte do conflito interno de Tris, que admira os atos de altruísmo que vê diariamente, mas sente-se incapaz de incorporá-los com naturalidade, é respondido logo no início. Após um teste de aptidão bastante incomum, Tris recebe a notícia de que é uma Divergente, ou seja, não se encaixa em apenas uma facção. Com ela, vem o aviso: esse resultado é extremamente perigoso e deve ser mantido em total sigilo a qualquer custo. Na Cerimônia de Escolha, Tris toma a difícil decisão de deixar sua família: a garota se torna uma transferida e vai parar na Audácia, onde precisa concluir o teste de iniciação se não quiser virar uma sem facção e viver na miséria, às margens da sociedade.
“Divergente” tem todos os elementos de uma história adolescente. A busca pela identidade e por seu lugar no mundo está presente o tempo todo no discurso de Tris, que se questiona a cada nova ação. A personagem passa por conflitos e indecisão, questionando seu caráter, suas escolhas, seus sentimentos e a pessoa que está se tornando. É interessante ver o desenrolar dessa luta, que acontece simultaneamente às batalhas físicas da iniciação. Tris deixa o conforto e a organização da Abnegação e os troca pelo caos da Audácia, onde os iniciados são forçados a lutar entre si até perderem a consciência e as atividades principais dos membros envolvem tarefas como saltar para dentro e fora de trens em movimento, pular de prédios e transformar as tarefas mais banais em desafios perigosos.
Não demora muito até a protagonista perceber que a linha tênue que separa bravura e estupidez se perdeu em meio às intrigas da nova liderança em sua facção. Conforme a protagonista vai descobrindo uma conspiração da Erudição para derrubar o governo da Abnegação (que comanda a cidade com base no princípio do altruísmo), a participação da Audácia vai ficando mais clara. O leitor mais atento não demora a perceber o papel crucial dos Divergentes e porquê eles representam tanto perigo – aqueles que não se encaixam em um molde único não podem ser facilmente controlados.
A narrativa tem ritmo rápido e impede que o leitor se canse facilmente; os capítulos são bem divididos e quase nenhum se passa sem desenvolver a trama, que nunca se distancia da personagem principal. Roth constrói coadjuvantes carismáticos que, mesmo não sendo sempre tão multifacetados, ilustram muito bem os pontos de reflexão da narrativa. Enquanto a história se passe em um regime autoritarista, a autora se empenha em mostrar o quão ingênua e simplista é a ideia de uma sociedade polarizada quando o humano é um ser tão ambivalente.
Pouco a pouco, Tris percebe que o senso de comunidade inflado em cada cidadão desde o nascimento – a ordem do sistema é “facção antes do sangue” – é inconsistente. Em uma sociedade em que somente aqueles que se encaixam num grupo específico podem participar como cidadão e o restante é condenado à exclusão para preservar a paz, as inconsistências começam a aparecer no primeiro sinal de conflito. O medo da mudança e do conflito, que se esconde nas camadas sociais mais interiores, parecem estranhos a Tris quando a garota descobre que os muros que envolvem a cidade, construídos para guardar a população de uma ameaça desconhecida, é na verdade trancado por fora – e não por dentro, como seria de se esperar.
Como não poderia faltar, o romance também está presente no livro. Embora tenha alguns momentos água com açúcar, a relação entre Tris e Quatro, seu supervisor de iniciação que também guarda importantes segredos, é bem construída e não cai no clichê de relacionamentos abusivos. Roth consegue construir uma protagonista de personalidade forte, que não é definida pelo homem por quem se apaixona e não deixa seus ideais se confundirem com os dos outros. Tris e Quatro são suas próprias pessoas e não se olham através de um filtro cor-de-rosa, como acontece em muitos romances adolescentes.
Escrito como a primeira parte de uma trilogia, “Divergente” termina de maneira intrigante, deixando várias questões para serem respondidas nos próximos volumes. A continuação “Insurgente”, embora perca um pouco do ritmo de seu antecessor, continua a história de Tris de maneira satisfatória e expande a narrativa, que introduz novos personagens e sai do complexo da Audácia. Outro ponto significativo é a introdução dos sem facção, que ganham grande importância na trama. Quem chegar ao fim do livro será surpreendido com uma revelação arrasadora, que deixa a promessa de uma bela história para o final da trilogia.
Ao contrário de outros autores do gênero, Roth escreveu “Divergente” enquanto ainda estava na universidade (o livro foi lançado em 2011, quando a autora tinha apenas 22 anos), o que a aproxima mais de seus leitores. Ativa nas redes sociais, ela usa as ferramentas como canal de comunicação direta com seu público e por lá divulgou várias novidades sobre a trilogia. Lançado no fim do ano passado, o romance “Convergente” trouxe o desfecho da saga e um final explosivo, que causou polêmica e dividiu opiniões ao render várias ameaças à autora vindas de fãs extremistas. Embora a trilogia seja essencialmente sobre a heroína Tris, aqui seu ponto de vista é dividido e Roth perde um pouco o foco, contando metade da história da perspectiva de Quatro. Mesmo assim, parece ser unanimidade entre críticos e fãs que Roth tomou uma decisão arriscada com o fechamento da trama – e valeu a pena.
Apesar de não ter causado tanto furor no Brasil, a trilogia “Divergente” foi um enorme sucesso de vendas nos EUA, ficando várias semanas em primeiro lugar na lista de mais vendidos do The New York Times, resultado repetido a cada continuação. O romance gerou ainda dois spin-offs centrados no fan favorite Quatro, ambos inéditos no Brasil: “Free Four”, um pequeno conto que na verdade é o capítulo 13 do primeiro livro contado sob a perspectiva de Quatro; e “Four: A Divergent Collection”, uma coleção com quatro contos que mostra o mundo de “Divergente” pelos olhos de Quatro e revela detalhes de seu passado e personalidade. Este último será lançado nos EUA em julho deste ano, tendo atualmente apenas o primeiro dos quatro contos disponíveis no mercado.
A Summit Entertainment, produtora da adaptação para os cinemas, espera ter encontrado em Tris sua nova galinha dos ovos de ouro e está investindo pesado em divulgação. A continuação do filme já está garantida e tem data de estreia: 20 de março de 2015. Com um elenco de jovens semidesconhecidos e alguns nomes de peso como Shailene Woodley (“Os Descendentes”), Kate Winslet (“Contágio”), Ashley Judd (“Crimes em Primeiro Grau”) e Maggie Q (da série “Nikita”), a adaptação de “Divergente” deve alavancar as vendas dos livros no Brasil. Resta esperar que a produção mantenha o nível da obra literária.