Câmera na mão e sangue na tela: como o terror se aproximou do documentário
Filmes que levaram o mockumentary a virar mania no gênero terror.
Conta-se que, em 1895, durante a exibição de “A Chegada do Trem à Estação”, dos irmãos Lumière, as pessoas acharam que o trem realmente estava chegando e saíram correndo desesperadamente do local, fato que é mostrado em uma pequena passagem de “A Invenção de Hugo Cabret”, de Martin Scorsese (“Os Infiltrados”). A situação descrita pode não ter acontecido, mas ilustra bem o poder de ilusão que a imagem em movimento tem para nós, o que é ampliado ainda mais em uma sala de cinema, escura, com uma tela grande e som estridente.
Apesar de a invenção dos Lumière estar longe de ser novidade, os cineastas continuam a buscar a verossimilhança alcançada por aquela primeira exibição e, naturalmente, alguns buscaram se apropriar da realidade para enganar o espectador. Foi isso que fez surgir um movimento cinematográfico chamado mockumentary (do inglês, a união da palavra mock, que quer dizer falso, com documentary, que significa documentário).
O filme “No Lies” (1974), de Mitchell Block, é tido como um marco do estilo. No curta, o câmera entrevista sua amiga durante uma noite. Após algum tempo, o entrevistador descobre que a personagem havia sido estuprada e passa a fazer várias perguntas sobre o assunto, pressionando a garota. A natureza fictícia só é revelada nos créditos finais, quando então descobrimos que a menina é, na verdade, uma atriz.
Sendo um curta, a obra acabou não tendo um reconhecimento tão grande, e o termo mockumentary só surgiu em 1984, com a comédia de Rob Reiner, “This is Spinal Tap”, que usou entrevistas e imagens de turnês de uma banda de heavy metal fictícia, satirizando o estilo de vida desregrado das bandas da época. Com uma linguagem de documentário, Reiner criou um cult com uma legião de fãs fervorosos que persistem até hoje.
Aliás, a comédia foi bastante explorada pelo gênero dos falsos documentários, como em “Zelig”, realizado por Woody Allen (“Meia-Noite em Paris”) em 1983, que mostrava a carreira de uma celebridade falsa da década de 1920, e em “Borat – O Segundo Melhor Repórter do Glorioso País Cazaquistão Viaja a América”, filme de 2009 dirigido por Larry Charles (“O Ditador”), que levou um repórter aos Estados Unidos para estudar a cultura do país.
Contudo, foi no terror que a indústria cinematográfica encontrou a mina de ouro para o mockumentary, mostrada principalmente por “A Bruxa de Blair” (1999). Usando um meio de divulgação que ainda não tinha o alcance atual, Daniel Myrick e Eduardo Sanchez criaram uma campanha publicitária em um site, com documentos, imagens e entrevistas “reais” relacionados à história de uma bruxa que assombrava a floresta de Burkittesville. Foi assim que as filmagens dos estudantes que queriam fazer um documentário sobre o assunto e desapareceram se tornou um fenômeno, sendo orçado em US$ 60 mil e arrecadando aproximadamente US$ 250 milhões.
Na realidade, “A Bruxa de Blair”, embora tenha sido a de maior repercussão nos cinemas, não foi a primeira obra a tentar trazer veracidade à história de horror. Em 1897, na literatura, o escritor Bram Stoker, no clássico “Drácula”, contou tudo a partir de diários e gravações feitas pelos próprios personagens do romance, caracterizando uma narrativa, de certa forma, típica do documentário. No rádio, Orson Welles assustou toda a população americana com sua adaptação de “Guerra dos Mundos”, livro de H.G. Wells, em 1938, realizando, no dia de Halloween, um programa jornalístico sobre uma invasão alienígena à Terra.
Já nos cinemas, o cineasta italiano Ruggero Deodato causou grande controvérsia com “Holocausto Canibal”, em 1980. Contando a história de cientistas que faziam uma expedição à América do Sul para pesquisar as tribos canibais e acabaram desaparecendo, Deodato filmou animais sendo abatidos pelos próprios atores, determinou que estes desaparecessem por algum tempo e, por isso, foi chamado a se explicar à justiça sobre como havia feito o filme e onde estavam os atores. A polêmica gerada por “Holocausto Canibal” pode ser vista como um marco para o mockumentary de terror, já que muitas das convenções usadas pela obra ainda são adotadas, inclusive as jogadas de marketing.
No entanto, foi “A Bruxa de Blair” que revelou o potencial lucrativo desse tipo de filme para a indústria hollywoodiana, afinal, não são necessários nomes conhecidos ou um elenco vasto, nem muitas câmeras para filmar de vários ângulos, reduzindo bastante o orçamento. Outro fator que atiça a curiosidade do público é a mistura de uma estética documental com o aspecto fantástico que envolve o gênero terror, o que pode ser explicado pela associação que fazemos mentalmente com todos os elementos cênicos que nos são familiares. No caso, a rotina dos personagens, suas relações, atitudes, o lugar em que estão e a ausência de trilha sonora, além da filmagem amadora, imergem o espectador para que, ao enxergar um zumbi ou outro elemento fora do comum, ele passe a aceitar aquilo inconscientemente.
Alguns anos se passaram depois de “A Bruxa de Blair” e os mockumentaries de terror passaram por um incrível ostracismo. Diferente do que se esperaria da indústria, os produtores não aproveitaram de imediato os lucros descomunais do filme de 1999. Isso pode ter acontecido por conta do fracasso da continuação “A Bruxa de Blair 2: O Livro das Sombras”, realizada de maneira convencional, e que foi massacrada pela crítica, embora tenha conseguido uma arrecadação mediana, custando US$ 15 milhões e fazendo em torno de US$ 47 milhões mundialmente.
Quase uma década se passou e, em 2007, surgiram dois longas que alavancaram o movimento novamente. Na Espanha, “[Rec]” causou grande comoção em festivais pela Europa, o que fez a película ser notada em outros continentes. Já nos Estados Unidos, “Atividade Paranormal” foi ganhando público com um marketing gradual que usou bastante os fãs para ampliar a sua audiência. Com o sucesso de ambos, também surgiu a nomenclatura found-footage, ou filmagens achadas, que agora se encaixa aos mockumentaries de terror.
“[Rec]” é uma obra de origem espanhola, dirigida por Jaume Balagueró e Paco Plaza, que acompanha a jornada de jornalistas que ficam presos em um prédio cheio de zumbis. O filme estreou em 2007, no Festival de Veneza, e foi bastante elogiado pelos críticos. A partir daí, passou por festivais na Catalunha e em Málaga, até ser lançado no circuito comercial da Espanha, em novembro, arrecadando mais de 8 milhões de euros somente em seu país de origem, tendo custado 1 milhão e 500 mil euros. Embora a crítica e os festivais tenham um papel preponderante na repercussão e no sucesso do filme, foi outro fator que levou o filme a ser conhecido não apenas na Espanha, mas internacionalmente: o Youtube. A Filmax, produtora da obra, lançou, em seu canal no site, vários vídeos de divulgação.
O primeiro vídeo, postado em março de 2007, alguns meses antes do lançamento comercial no seu país de origem, foi um teaser trailer de pouco mais de um minuto que teve quase dois milhões de acessos, sendo, em seguida, traduzido para várias línguas, como inglês e italiano. Após a projeção nos festivais, a produtora colocou um novo vídeo, desta vez mostrando as reações da plateia que assistiu à película. Esse teve mais duas milhões visualizações e assim o filme foi ganhando seguidores. Desta maneira, o caráter multiplicador da internet fez com que a Filmax não necessitasse de gastos enormes com publicidade para fazer seu produto chegar a lugares longínquos. E a participação dos consumidores foi fundamental, já que, interconectados, eles foram responsáveis pela circulação do produto pelo mundo.
Já “Atividade Paranormal” é uma obra de origem norte-americana, dirigida por Oren Peli, que iniciou sua trajetória, assim como “[Rec]”, em festivais menores. O longa acompanha um casal que é assombrado por uma entidade maligna e foi mostrado pela primeira vez no Screamfest 2007, nos Estados Unidos, levando o prêmio de melhor atriz para Katie Featherston e, depois, em 2008, esteve no Slamdance Film Festival.
Após esses dois festivais, Oren Peli buscou alguém que se disponibilizasse a distribuir a obra comercialmente. Até que uma cópia chegou a Steven Spielberg (“Cavalo de Guerra”). Na época do lançamento comercial, veiculou-se que a porta do quarto de Spielberg havia fechado sozinha durante o tempo em que ele assistia ao filme, e que só com a ajuda de um chaveiro foi possível tirá-lo de lá. A realidade é que ele gostou da obra e, como um dos diretores da Dreamworks Pictures, resolveu distribuí-la, mas pediu para refazerem o final, pois achou que o filme precisava de algo mais forte. Enquanto o desfecho era refeito, a Paramount Pictures, associada da Dreamworks na época, começou a desenvolver sua estratégia de marketing para lançar o longa nos cinemas, enviando e-mails para alguns lugares que teriam interesse em exibi-lo.
A ideia da Paramount era criar uma atmosfera de mistério em torno do filme, estimulando a curiosidade do público e confiando em uma publicidade nas redes, difundindo o nome da película, por isso, focou no público jovem. O filme foi lançado em apenas 13 cinemas dos Estados Unidos, em cidades universitárias, com sessões à meia-noite. A estratégia mostrou resultado e gerou uma comoção na internet, dando ao longa a alcunha de “filme mais assustador de todos os tempos”. Este foi o mote para a produtora vender o seu produto, divulgando tal informação em cartazes espalhados pelos Estados Unidos. No entanto, a Paramount continuava a liberar poucas cópias do filme, visando aumentar a curiosidade do público.
Assim, o estúdio usou um site chamado Eventful.com, uma espécie de abaixo-assinado online em que as pessoas podem juntar moradores de uma região para trazer um evento para a cidade. A ideia era que cada um compartilhasse com os amigos e que fosse criada uma rede de pessoas de cada lugar, o que ampliou a fama da obra. Para divulgar e fazer com que os espectadores usassem a ferramenta do Eventful.com, em setembro de 2009 foi lançado um vídeo parecido com aquele feito pela Filmax para “[Rec]”, mostrando as reações da plateia durante as exibições da obra.
Não cabe a nós julgar se foi uma cópia ou não, mas o fato é que, nesta época, “[Rec]” já tinha se estabelecido como um sucesso internacional, e é pouco provável que a Paramount não tenha se inspirado na obra espanhola.
Assim, a produtora fez um mapeamento para saber para quais cidades o longa seria levado primeiro. A data de estreia definitiva de “Atividade Paranormal” foi 16 de outubro de 2009, quase dois anos depois da conclusão do filme. Até janeiro de 2010, só nos Estados Unidos, a obra arrecadou mais de US$ 100 milhões, tendo custado apenas 15 mil, um lucro que superou “A Bruxa de Blair” como o maior da história do cinema. No entanto, existem controvérsias quanto a este ponto, pois muitos acreditam que o filme custou bem mais que o valor informado, contando com o marketing e a refilmagem do final.
Os dois longas se tornaram franquias e “[Rec]”, mesmo com o sucesso em vários países do mundo, nem estreou nos Estados Unidos, sendo lançado apenas em DVD, dando lugar a uma refilmagem de gosto duvidoso chamada “Quarentena”, que não conseguiu tomar o lugar da obra espanhola. A sequência “[Rec] Possuídos” estreou em setembro de 2010 no Brasil e não foi tão elogiado, mas, ainda assim, rendeu outras duas continuações, “[Rec]³ Génesis”, que estreou em março na Espanha, mas ainda não tem previsão para outros lugares, e “[Rec] Apocalypse”, que ainda não tem previsão de lançamento.
“Atividade Paranormal” já teve duas continuações bem sucedidas e o quarto filme já tem estreia marcada para outubro de 2012. O cineasta Oren Peli, que não dirigiu as continuações, escreveu e produziu um novo projeto que chega aos cinemas americanos em 26 de maio, chamado “Chernobyl Diaries”, que será mais um found-footage mostrando jovens turistas que ficam presos nas ruínas da cidade ucraniana, esvaziada por um acidente nuclear.
Embora “A Bruxa de Blair” mereça os créditos pela ideia de usar a internet como divulgação, em 1999, o alcance da mídia não era tão vasto como em 2007, quando “[Rec]” e “Atividade Paranormal” apareceram. Estes acabaram influenciando a indústria cinematográfica que, desde a década de 1980, com a mania dos slasher movies e seus personagens como Jason e Freddy Kruger, vivia uma grande irregularidade, dependendo muitas vezes de refilmagens de obras japonesas.
Atualmente, são vários títulos que seguem a tradição dos mockumentaries de terror lançados anualmente, grande parte com uso de ferramentas da internet. Abaixo listamos alguns deles:
1.Cloverfield – Monstro: foi lançado em 2008 e mostra amigos que estão em uma festa de despedida de um deles, que irá trabalhar no Japão, e testemunham a invasão de Nova York por um monstro gigante. O filme usou uma estratégia muito sutil devido ao seu produtor J.J. Abrams (criador dos seriados televisivos “Lost” e “Fringe” e diretor de “Missão: Impossível 3” e “Star Trek”). Em todas as obras em que ele está envolvido, existem referências a uma bebida fictícia chamada Slusho e à empresa Tagruato. O blog Cloverfield Clues se dedica a identificar as aparições da Slusho em todos os filmes e seriados, e existem discussões sobre a relação da Tagruato na criação do monstro de Cloverfield, e se isso também teria alguma relação com os acontecimentos de “Lost”. Inclusive, o personagem que vai para o Japão, no filme, será empregado pela Tagruato.
Filmado com uma câmera digital, a divulgação da película começou com um vídeo publicitário da Slusho e uma foto de um cozinheiro japonês. Em seguida, um pôster em que a Estátua da Liberdade aparece destruída, com apenas uma data na parte inferior, foi lançado. O site trazia poucas informações e foi criado mistério sobre o design do monstro em si. Foram feitas inclusive páginas no MySpace para os personagens. Porém, J.J. Abrams foi o principal responsável por atiçar a curiosidade do público, ao implantar pistas em diversas mídias, deixando espaço para discussões entre os fãs.
2. Contatos de 4º Grau: em 2009 aconteceu uma polêmica gerada pelo filme “Contatos de 4º Grau”. Para divulgar a obra, que relata as pesquisas da psicóloga Abigail Tyler sobre fatos estranhos que acontecem com os habitantes da cidade de Nome, no Alasca, foi necessário retornar ao que foi feito em “A Bruxa de Blair”, com o intuito de dar credibilidade ao suposto documentário. Para tanto, foi criado um site chamado Alaska Psychiatry Journal, com artigos científicos e documentos de comprovação da existência da pesquisa, além de uma biografia de Abigail Tyler. O conteúdo do site mostrava, inclusive, atestados de óbito de pessoas da cidade e falsas notícias online de pessoas desaparecidas em circunstâncias estranhas.
Por esta razão, o site passou a ser acessado por pessoas que assistiam ao filme e procuravam saber se aquilo era real, servindo como comprovação. No entanto, a produção teve que fazer acordos com entidades indignadas com as mentiras do site, como o Alaska Press Club, que se revoltou contra as notícias falsas que foram plantadas, já que, na realidade, a história era inteiramente fictícia.
http://youtu.be/j5GrNvcRT4o
3. O Último Exorcismo: em 2010, o longa contou a história de um padre que pretendia encerrar sua carreira como exorcista e decide filmar o último ritual, com uma menina que tem problemas, no interior dos Estados Unidos. Pouco antes do lançamento, foram veiculados, no Chatroulette (site que permite conversas entre desconhecidos), vídeos que mostravam uma garota tirando a roupa sensualmente para a webcam, enquanto garotos realmente acreditavam que ela existia, e se transformava repentinamente em alguém possuído. Gravações divertidas das reações de quem assistia ao vídeo circularam nos sites especializados de cinema e no YouTube, como forma de divulgação da obra.