Fora-de-Quadro #03 – Gêneros cinematográficos e a função social de um filme
As convenções do faroeste, terror e musical e o que tais gêneros podem significar para a sociedade.
Gênero é uma palavra que estamos habituados desde quando estávamos na escola, para classificar e agrupar algo. No cinema não é diferente. Porém, os gêneros cinematográficos não são tão bem definidos quanto os gêneros propostos por ciências biológicas, por exemplo. Independente disso, os gêneros cinematográficos estão ligados a fatores sociais, eles refletem isto, e mudam no decorrer do tempo.
A terceira edição do Fora-de-Quadro é baseada na discussão proposta por David Bordwell e Kristin Thompson no livro “A Arte do Cinema: Uma Introdução”. Três gêneros serão mais explorados e conceituados: o faroeste, o terror e o musical. Porém, conceituar e demonstrar todos os gêneros e subgêneros não é o objetivo principal deste artigo, mas sim o que Bordwell e Thompson chamam de ‘função social do gênero’.
O que é gênero?
Como dito anteriormente, o conceito de gênero no cinema não é fácil de ser definido concretamente como os da biologia, por exemplo. O conceito de gênero cinematográfico se complica porque assim como há filmes que seguem à risca tudo que se espera de determinado gênero, há outros que englobam mais de um ou não seguem tão à risca. O gênero comédia, por exemplo, pode incluir tanto uma comédia-romântica “A Barraca do Beijo” (2018) como quanto paródias como “Austin Powers” (1997). O termo filme de suspense é outro que pode-se notar isto, quando ele pode englobar tanto filmes de terror quanto filmes de detetive. Os próprios Bordwell e Thompson citam que se você perguntasse para uma audiência dos anos 1950 e depois para uma audiência dos anos 1990 o que é um filme de suspense eles falariam alguns elementos e filmes distintos.
Acima: “Intriga Internacional” (1959) de Alfred Hitchcock e “Silêncio dos Inocentes” (1991) de Jonathan Demme– dois filmes de suspense. Ambos contém aspectos e entendimentos diferentes do gênero suspense, que mudou no decorrer dos anos.
Isto significa que a percepção do público sobre os elementos do que significa gênero muda com o passar dos anos. O gênero é definido por um pensamento do senso comum sobre algo, para que quando o público visualize algum objeto, por exemplo, em cena, já remete algum gênero cinematográfico. Como o senso comum muda durante os anos, o gênero no cinema muda também.
Há também casos em que o filme se encaixa em mais de uma classificação, como “Feitiço do Tempo” (1993), que é tanto uma comédia-romântica quanto fantasia. Ao combinar mais de um gênero no filme, o cineasta está renovando o modo de fazer Cinema, e pode até mesmo criar um subgênero a partir disto.
O ritmo da indústria cinematográfica utiliza de forma abrangente a classificação em gêneros. Os musicais nos anos 1960 eram produzidos em maior escalo devido ao consumo do material, mas hoje em dia já não são tão populares. Atualmente, muito se fala em um subgênero ou até mesmo um gênero próprio de “filmes de heróis”, que costumam estar no topo das bilheterias, como é o caso de “Vingadores: Ultimato” (2019), que se tornou a maior bilheteria global de todos os tempos.
Tanto para a publicidade ou para a grande mídia, um gênero é a maneira mais fácil de classificar um filme, já que o público logo irá entender do que se trata. Bordwell e Thompson, por fim, definem o conceito como: “Uma categoria usada para descrever e analisar filmes, não para avaliá-los.”
Para o público, o gênero normalmente fornece um modo de selecionar qual filme assistir com base no gosto pessoal. Ao analisar mais a fundo um longa, porém, o que define um gênero são determinados elementos da trama que vários filmes têm em comum. Isto é chamado de convenção de gênero e podem ser personagens, aspectos técnicos ou algum elemento que caracterize aquele gênero. Ele também pode ser determinado pelo que é chamado de iconografia convencional, que são imagens simbólicas que carregam significados de determinado gênero.
Exemplos de convenções de gênero é a utilização de um tema narrativo, como em musicais quando dois personagens se apaixonam simplesmente porque ambos conseguem cantar bem. A iluminação escura de um filme de terror também é um exemplo, assim como o personagem do detetive durão em filmes de ação.
A iconografia de gênero trabalha mais com o simbolismo. O próprio livro dá o exemplo de que se o primeiro plano de um filme for de uma arma de cano curto sacada de um Ford dos anos 1920, nossa mente já remete a um filme de gângster. Assim como espaçonaves, alienígenas e o espaço no geral, nos remetem a ficção científica.
Porém, um filme ainda pode negar estas convenções e fazer parte de um gênero. O maior exemplo disto é “2001: Uma Odisseia no Espaço” (1968) que quebrou diversas ‘regras’ da ficção-científica mas até hoje ainda é considerado um dos melhores longas do gênero.
Conhecendo estas convenções, o público começa a compreender melhor o filme através destas referências que o gênero faz. A seguir serão analisados mais a fundos os três gêneros que marcaram a história da indústria cinematográfica dos EUA: o faroeste, o terror e o musical.
O faroeste
“Três Homens em Conflito” (1966) de Sergio Leone.
O faroeste surgiu e se popularizou já no início das produções cinematográficas, ao redor da década de 1910. Os filmes de faroeste baseiam-se não somente na realidade norte-americana como também em canções e contos antigos. O tema convencional desde o início foi a dualidade entre a civilização e a fronteira sem lei.
A iconografia convencional mostra esta dualidade, normalmente mostrando um objeto mais moderno e tecnológico, como o trem, em contraste com objetos mais antigos, como a canoa. O personagem central, normalmente retratado como um homem heroico e másculo normalmente também reflete a dualidade, muitas vezes mudando de lado no decorrer da história.
Bordwell e Thompson afirmam que conforme o gênero foi se desenvolvendo, ele adquiriu uma ideologia social implícita. Isto devido à retratação do branco progredindo para o oeste dos EUA como uma missão história enquanto a cultura indígena foi tratada como primitiva e selvagem. Os filmes de faroeste são recheados de estereótipos racistas dos nativos americanos.
Contudo, chegou a acontecer um movimento, mais tardio, a partir dos anos 1950, de retratar os nativos americanos como uma figura enobrecidas pelo seu envolvimento com a natureza, mas que enfrenta com o fim de seu estilo de vida, como em “O Último dos Moicanos” (1992).
Os ataques dos indígenas à vagões de trem, porém, se tornou uma iconografia convencional do gênero. Pode-se citar também como convenções: o cowboy cantor; a arma Colt.45; a dualidade de bem contra o mal; assaltos a bancos e o tiroteio clímax em ruas da cidade. Nos faroestes de Sergio Leone todas convenções são ampliadas em detalhes pequenos. Por exemplo, o tiroteio clímax de “Três Homens em Conflito” é filmado para remeter uma briga de búfalos.
O terror
“Nosferatu” (1922) de F.W. Murnau.
O faroeste tem convenções muito marcadas pelo visual e tema do filme. Em contrapartida, o terror é marcado e reconhecido pelo efeito emocional que tenta causar: o medo. É isto que dá ritmo ao gênero. Normalmente um monstro está presente nestes filmes justamente para nos aterrorizar.
O enredo básico de terror é a ameaça do monstro descontrolado na cidade que deve ser impedido pelos protagonistas. Outra convenção que é guiada a partir do monstro é a reação dos personagens do filme, que podem, e muitas vezes guiam, as nossas próprias reações.
Já a iconografia convencional do terror é marcada por lugares escuros, normalmente lugares onde o monstro pode se esconder. Ou também por lugares em que os monstros podem surgir: como o cemitério para os mortos-vivos, ou um laboratório para algum experimento que dá errado.
Muitas vezes os filmes também se passam em determinada época no passado, ampliando o medo do desconhecido sem as tecnologias atuais. A iluminação escura também é uma característica marcantes do terror, sendo difícil encontrar algum filme clássico do gênero com iluminação clara.
Os monstros no terror podem muitas vezes ser metáforas para acontecimentos sociais e medos reais, como “Godzilla” (1954). O longa também se encaixa no gênero de ficção científica e ação, porém, o monstro retratado é uma consequência para as armas nucleares de uma perspectiva japonesa.
O musical
“Os Embalos de Sábado a Noite” (1977) de John Badham.
O faroeste e o terror estão presente desde o primórdio do cinema, em especial por poder contar uma história sem utilizar palavras, o que é impossível acontecer nos musicais. O gênero surge a partir de uma inovação técnica a partir de conseguirem introduzir, de maneira bem-sucedida, faixas de som gravadas em filmes.
Tanto que no início, os musicais eram como apresentações com pouco ou nenhuma ligação narrativa entre si. Isto fez com que o mercado estrangeiro comprasse este tipo de filme, já que a dublagem e legenda estavam em seus primórdios ainda, o telespectador conseguiria apreciar o filme sem entender as letras das músicas.
Conforme esta barreira linguística foi sendo superada, começaram a surgir histórias e narrativas mais complexas em que os cineastas colocariam intercaladas com cenas musicais. A partir daí, nos anos 1930, surgem dois padrões de musicais: os musicais de bastidores e os musicais diretos.
Os musicais de bastidores contam a história dos bailarinos e quem se apresenta no palco. Normalmente, o enredo é a partir da história de algum desses personagens, do ponto de vista de fora do palco; e as apresentações acontecem no próprio palco, mas isto pode ter alguma variação.
Já o musical direto, as pessoas dançam e cantam em situações cotidianas, sem a estranheza dos personagens ao seu redor. O musical direto normalmente é um romance, ou comédia-romântica, em que o personagem conquista o outro a partir de suas performances. Tanto nos musicais diretos quanto nos musicais de bastidores, o enredo costuma ser de um romance.
A função social do gênero
Os fatores sociais estão extremamente ligados aos gêneros cinematográficos, seja por a popularidade de um gênero com determinado grupo social, ou até mesmos pelas convenções como a relação entre os indígenas e o faroeste previamente mostradas. O motivo de alguns gêneros ainda serem popular, segundo Bordwell e Thompson, é como os gêneros funcionam para a população, como uma forma de recompensar certo comportamento.
Ou seja, desde “O Resgate do Soldado Ryan” (1998) até “Mensagem Para Você” (1998), o ato de heroísmo é recompensado e ânsia do amor foram validados, e isto é o suficiente para arrepiar os telespectadores e ressaltar pensamentos culturais como o bem compensa e que todo mundo tem uma alma-gêmea.
Há uma discussão entre a Academia cinematográfica sobre as tramas dos gêneros. Alguns acreditam que estas caracterizações de pensamentos culturais cotidianos servem também para distrair o público de problemas sociais reais. Porém, outros acreditam que os gêneros vão além e exploram atitudes sociais de maneira metafórica. A partir desta vertente, as convenções de gêneros geram emoções porque têm origem em incertezas sociais profundas, segundo Bordwell e Thompson.
Esta mistura de gênero com problemas sociais faz com que muitos filmes respondam a tendências ideológicas. Como já citado previamente, o “Godzilla” (1954) respondeu diretamente a um medo de armamento nuclear presente durante os anos 1950, por exemplo. Nessa década, foram diversos filmes de ficção científica que abordaram este tema de medo da tecnologia. Assim sendo, as convenções de gêneros refletem dúvidas e anseios do próprio público e sociedade.
Pode-se citar “Alien, O Oitavo Passageiro” (1979) como um exemplo de filme influenciado, ou que se baseou nos movimentos feministas da década de 1970. A protagonista Ellen Ripley (interpretada por Sigourney Weaver) é uma personagem corajosa e agressiva, mas que ainda tem um lado maternal afetuoso.
“Alien, o Oitavo Passageiro” (1979), de Ridley Scott.
Isto foi uma novidade no gênero da ficção-científica. Bordwell e Thompson citam que o movimento americano feminista de 70 foi marcado por dizeres que mulheres poderiam ser corajosas e ainda sim manter seu lado materno, o que se reflete no filme. Conforme as ideias de um movimento social foram espalhadas pela opinião pública, filmes como este puderam der papéis de protagonismo e heroísmo, comumente masculinos, para personagens femininos.
Estas formas de olhar para o gênero são chamadas de reflexivas já que supostamente seriam um reflexo dos problemas sociais, como um espelho da sociedade. Quando observamos um filme mais de perto, conseguimos ver esses reflexos no enredo. No próprio “Alien, o Oitavo Passageiro”, todos os personagens oscilam entre características ditas como masculinas e femininas, por exemplo.
A partir desta discussão proposta por Bordwell e Thompson conseguimos entender a atual luta por representatividade. Afinal, quem em 1989 poderia imaginar “A Pequena Sereia” com uma protagonista negra? As lutas de negros e da comunidade LGBTQ+ se difundiram na sociedade e hoje a pauta é diferente, necessária e presente.
Após 10 anos, o Universo Cinematográfico da Marvel (o MCU na sigla em inglês) ainda não conta com nenhum herói da comunidade LGBTQ+, por exemplo, o que em 2009 não era tão questionado, e hoje em 2019 já é. Este cenário irá mudar, visto que já temos confirmação de futuros heróis LGBTQ+ no Universo. É importante relembrar que o casamento entre pessoas do mesmo sexo foi legalizado em todo o território dos Estados Unidos apenas em 2015, ou seja, o MCU é mais antigo do que isto.
Mas assim como os gêneros cinematográficos, as pautas e movimentos sociais mudam. Para a indústria do cinema continuar se renovando ela tem que abordar estas mudanças que ocorrem no mundo. Querer que a Ariel do final dos anos 1980 seja a mesma de que do final dos anos 2010 é impossível. Por isto o debate entre a função social do gênero cinematográfico é tão importante. Para que haja menos nativos americanos saqueando o herói branco do faroeste e mais Ariel negra dando voz à luta social de uma minoria tão oprimida.