Cinema com Rapadura

Colunas   segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Quem vigia os vigilantes? – Como Batman e Demolidor respondem à questão levantada em Watchmen

Uma visão sobre como a trilogia de Christopher Nolan e a série da Netflix podem oferecer uma resposta à principal questão levantada pela obra de Alan Moore.

Em 2015, a Marvel fez história ao produzir, em parceria com a Netflix, a série “Demolidor”, adaptando para a plataforma de streaming um dos personagens mais interessantes da Casa das Ideias. Com uma atmosfera tensa e sombria, somada à ação intensa, a atração mostrou muito sangue e violência em incríveis cenas de luta. A abordagem dos realizadores, ainda que arriscada, mostrou-se um tiro certeiro. A produção também obteve grande êxito ao retratar com propriedade a realidade das ruas de Nova York. Em termos narrativos, “Demolidor” pôs em evidência uma das atribuições mais notáveis dentre aquelas exercidas pelos heróis que atuam em grandes cidades, a de vigilante.

A DC Comics, por sua vez, já havia dado sua parcela de contribuição à “causa dos vigilantes”, só que no cinema, com a trilogia “O Cavaleiro das Trevas”. Christopher Nolan (“Dunkirk”), ao realizar seu “Batman Begins”, já havia idealizado, exatamente uma década antes de “Demolidor”, um aspecto mais realista ao universo de um personagem baseado em quadrinhos. Dessa forma, é provável que os criadores da série tenham buscado referências na obra cinematográfica e nas respectivas continuações que essa gerou.

O Batman de Nolan e o Demolidor da série são personagens que apresentam muitas semelhanças entre si, como o fato de ambos atuarem em grandes cidades dominadas pelo crime. As duas figuras também sempre agem à noite, período em que as escórias de Gotham City e de Hell’s Kitchen expõem suas entranhas e revelam o terrível submundo camuflado por trás das imponentes estruturas das grandes metrópoles. Além disso, os dois personagens variam suas formas de combate de acordo com o adversário que enfrentam, entrando em intenso confronto corpo a corpo contra adversários que lhes exijam um excelente preparo para tal; mas também agindo como verdadeiros detetives na luta contra as grandes mentes, sejam elas de mafiosos, traficantes ou corruptos de modo geral, em embates muitas vezes mais psicológicos do que físicos.

Em comum, Bruce Wayne e Matt Murdock passaram por grandes traumas durante a infância: o primeiro teve os pais cruelmente assassinados em um beco escuro; enquanto o segundo ficou cego depois de sofrer um acidente, e também teve o pai assassinado. Suas perdas os motivaram a criar meios pelos quais seu desejo e sede de justiça seriam canalizados em algo muito maior do que a realização da chamada “justiça com as próprias mãos”. Os dois tornaram-se uma espécie de braço auxiliar da lei, mesmo que, a princípio e por necessidade, agissem sem prévia autorização da mesma.

Na trilogia de Nolan, a colaboração mútua entre Batman (Christian Bale) e o comissário Gordon (Gary Oldman) é, na prática, o reconhecimento que o próprio Homem Morcego faz quanto à necessidade de que suas ações estejam sempre submetidas a algum tipo de controle. Essa atitude do Cruzado Encapuzado demonstra sua consciência quanto à sua capacidade real de exceder os limites estabelecidos pela lei. As vistas grossas de Gotham quanto à relação entre o mascarado e o policial é, de certa forma, o símbolo da aprovação implícita que a cidade confere ao Cavaleiro das Trevas como o seu legítimo vigilante. Isso pelo menos até que o próprio herói decida transferir essa prerrogativa a um representante da ordem legal, como mostrado em “Batman – O Cavaleiro das Trevas” (2008) por meio da tentativa em tornar o promotor público Harvey Dent (Aaron Eckhart) no Cavaleiro Branco de Gotham.

Um contraponto interessante a essa abordagem pode ser visto em “Batman vs Superman: A Origem da Justiça” (2016), de Zack Snyder (“Liga da Justiça”), filme no qual o Homem Morcego é retratado como um vigilante totalmente fora de controle. O comissário Gordon nem mesmo é citado na obra. Ao agir à revelia da lei, Batman (Ben Affleck) termina por produzir junto à população civil, ainda que não intencionalmente, um clima de temor relacionado à sua figura, situação essa que se mostra no mínimo contraditória em relação ao propósito para o qual o personagem foi concebido.

Em “Demolidor”, essa preocupação do vigilante quanto ao excesso de suas ações também pode ser percebida logo na primeira cena da primeira temporada, na qual Matt Murdock (Charlie Cox), ao realizar sua confissão a um padre, deixa evidente sua necessidade de prestação de contas. O protagonista, assumidamente católico, também procura seguir, de alguma forma, e guardadas as devidas proporções, os preceitos de sua fé, que incluem o respeito às leis estabelecidas, seja como o advogado defensor da justiça durante o dia, ou como o vigilante de Hell’s Kitchen durante a noite. O personagem é plenamente consciente de suas ações e, antes ou depois do combate ao crime, sempre procura ajuda por meio da confissão a um sacerdote.

Felizmente, do ponto de vista da diversidade de abordagens nem todos os vigilantes da ficção são capazes de demonstrar a mesma nobreza de espírito. Se o Batman justiceiro criado por Snyder em “Batman vs Superman” for interpretado como uma tentativa bem-sucedida do diretor em retratar um vigilante totalmente fora de controle, pode-se dizer que o cineasta passou por seu “estágio preparatório” ao adaptar às telonas “Watchmen” (2009), a famosa série em quadrinhos escrita pelo britânico Alan Moore nos anos 80. A obra é, em sua essência, a descaracterização plena do conceito de vigilante da forma como esse foi absorvido recentemente pelo senso comum sob influência do Batman de Nolan e do Demolidor da série.

Quem vigia os vigilantes? Essa instigante indagação foi inicialmente proposta pelo filósofo grego Platão (século IV a.C.) em “A República”, no contexto da discussão sobre a separação de poderes em uma democracia. Moore, apropriando-se da polêmica questão e adaptando-a à trama fantástica que havia concebido, a utilizou como tema principal de sua obra. No obscuro futuro alternativo em que os eventos de “Watchmen” transcorrem, todo e qualquer ato heroico de um vigilante é tratado com desdém, descrédito ou cinismo, ou apenas um resquício de um passado glorioso e distante em que os protagonistas haviam vivido sua era de ouro.

As figuras do detestável Comediante (Jeffrey Dean Morgan) e do enigmático Rorschach (Jackie Earle Haley) são os maiores símbolos do vigilantismo corrompido presente em “Watchmen”, em total desacordo com o Batman de Nolan e o Demolidor da série. A visão niilista da dupla, em contrapartida à fé de Matt Murdock e ao apreço de Bruce Wayne por seus entes queridos (afinal, como ele mesmo explica, a máscara serve para proteger aos que ama), é responsável pela total ausência de empatia em relação ao próximo, e também por alguns dos atos mais vis perpetrados contra o ser humano. A participação do Comediante no “combate ao crime” serve apenas como desculpa para a prática impune do mais genuíno sadismo, enquanto Rorschach é um ser absolutamente implacável que faz da vingança o seu único propósito na existência.

Na ficção, uma das grandes contribuições que os vigilantes têm a oferecer aos instrumentos de repressão ao crime devidamente constituídos, além de emprestar suas valorosas habilidades no combate direto, é o estímulo extra para que tais poderes exerçam o seu papel na sociedade com mais dedicação e empenho. Para isso, é necessário que o vigilante esteja imbuído de bons propósitos, firmeza de caráter, integridade de espírito, valores e princípios éticos admiráveis, enfim, maneiras pelas quais ele conquiste o merecido reconhecimento daqueles a quem ajuda e protege.

Por fim, o Batman de Christopher Nolan, o Demolidor da série e a contradição que ambos manifestam em relação aos Vigilantes de “Watchmen” podem ser um interessante ponto de partida à discussão proposta por Alan Moore. Quem vigia os vigilantes? Uma possível resposta aponta para as próprias consciências desses vigilantes, que os vigiam em relação ao próximo, à sua missão e, sobretudo, em relação a si mesmos, quer acusando-os ou avalizando-os. O próprio Platão corrobora, dando a seguinte resposta à questão: os guardiões irão se proteger deles mesmos.

Fernando Gomes
@rapadura

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