Cinema com Rapadura

Entrevistas   segunda-feira, 11 de julho de 2022

[Entrevista] The Boys | Jensen Ackles e Antony Starr falam sobre o retrato da masculinidade tóxica na série

Intérpretes dos personagens mais poderosos — e excêntricos — da série, atores também falaram sobre as cenas mais polêmicas da temporada e o que esperam que fique para os espectadores.

[Entrevista] The Boys | Jensen Ackles e Antony Starr falam sobre o retrato da masculinidade tóxica na série>
(Imagens: divulgação/Amazon Prime Video)

Que “The Boys” não é uma série comum, todos nós sabemos. Concluída com sucesso na última sexta-feira (8), a terceira temporada reforçou ainda mais os traços que a consolidaram como uma das principais em exibição atualmente: a irreverência, os banhos de sangue, as excentricidades e perversões de seus super-heróis e, claro, sua coragem para tocar em feridas abertas no nosso próprio mundo.

Ainda que o principal chamariz da série sejam de fato o uso excessivo de violência e sexo (e um pouco de escatologia também), o que destaca “The Boys” em meio ao oceano de conteúdo disponível atualmente é o reflexo extremamente sincero e sem papas na língua que ela propõe a quem assiste.

Em entrevista concedida ao Cinema com Rapadura durante evento realizado pelo Prime Video em São Paulo, os atores Jensen Ackles e Antony Starr ofereceram um olhar direto e sensível sobre seus personagens, Soldier Boy e Capitão Pátria, os processos para levá-los às nossas telas neste terceiro ano da série e o que ela mostra por trás de todo o sangue, lasers e sexo.

A verdade é que gravar cenas com tantos elementos distintos e personagens tão malucos não deve ser fácil. Em tom de brincadeira, Ackles comenta que era difícil acreditar no que Soldier Boy, apresentado ao enredo da série na nova temporada, faria ao ler o roteiro:

“Quase todos os dias. ‘O que estou fazendo aqui? Eu tenho filhos! Minha mãe vai ver isso!’ Mas no fim das contas, o que faz essa série ser tão boa é justamente ela ser maluca, ultrajante e divertida. Ela vai a esses lugares incomuns. Ela nos força a refletir sobre o nosso mundo. Ela leva os personagens ao limite, levanta a cortina e mostra camadas que nós não necessariamente veríamos em um filme ou outras séries. Então foi uma viagem.”

Para Starr, a coisa já flui mais naturalmente depois de três anos ambientado ao estilo de “The Boys”. O sentimento de incredulidade continua constante a cada novo roteiro — “da primeira página até o final, e literalmente qualquer uma com o Profundo e o polvo!”, ele diz entre gargalhadas. Mas ele já havia lido os quadrinhos que deram origem à produção, e afirma que a série até que não pega tão pesado:

“É engraçado, na verdade. Conheço muitos atores que, quando fazem cenas com coisas que são horríveis na televisão, dizem: ‘Me senti horrível fazendo aquilo!’ Eu não me sinto assim quando faço, porque é tão surreal, eu sei que não tem como ser real. Você faz coisas que nunca poderiam ser feitas na vida real. Eu nunca tive que fazer nada muito ruim. Mas eu lembro quando a Tempesta matou Kenji [no terceiro episódio da segunda temporada], ela falou algumas coisas bem racistas. Aya [Cash, intérprete de Tempesta] é uma das pessoas mais doces que eu conheço e ficou enojada por dizer aquilo tudo. Eu nunca tive que fazer nada como aquilo.”

Uma das principais cenas do Capitão Pátria na temporada fez Starr ficar frente a frente consigo mesmo. Durante o famigerado episódio “Supersuruba”, antes da grande orgia de super-heróis e da luta que segue, o personagem passa por um momento de insegurança e conversa com uma versão de si próprio através de um espelho. Ainda que a estrutura e o formato da cena não sejam novos, Starr ressalta que o que deixou a cena tão marcante foi forma como foi escrita:

“É algo que já foi feito antes, não é uma ideia original. Um personagem falar consigo mesmo através de um reflexo. Willem Dafoe fez isso em ‘Homem-Aranha’ com o Duende Verde, temos Gollum e Sméagol em ‘O Senhor dos Anéis’… Se formos olhar a origem disso, provavelmente é Narciso com seu reflexo na lagoa. Então não é um sentimento original, mas é uma ferramenta útil, uma forma de evocar ideias e reflexões através dessa estrutura de arquétipos e mitologia. Não precisei de muitas referências pois estava claro aonde queríamos chegar com aquilo.”

Ainda sobre a escrita, o ator revelou que a cena, originalmente, teria um toque diferente:

O que nós pensamos inicialmente foi bem diferente do que saiu no episódio. Tive uma ideia que mandei para o Eric por e-mail. Ele é ótimo, trocamos muitas ideias. Como o Capitão Pátria foi criado em um laboratório, sem pai e mãe, e se fosse ele conversando com uma noção infantil que ele tinha de como pai e mãe seriam postos em uma personalidade representada por seu reflexo? Algo que, ao longo dos anos, com ele tendo que se criar sozinho, se tornou algo mais e mais corrupto e degenerado? Eric adorou, conversamos e ele escreveu o roteiro. Mas houve um ponto em que tive que escrever para ele: ‘Cara, tem um personagem totalmente diferente aí, com uma voz diferente, porte físico diferente…’ E a resposta dele foi: ‘Isso me deixa bem apreensivo, na verdade’. Eu falei: ‘Eu também, mas estou animado!’ E ele respondeu: ‘Se você está animado, eu estou animado também, então vai fundo’. E deu no que deu. Foi um dia de trabalho duro, mas foi bem divertido.”

O segredo, conta Starr, é mergulhar na escrita e aproveitar a oportunidade de dar vida a um personagem tão incomum e complexo como o Capitão Pátria, que o público ama odiar:

“Eu amo o trabalho, eu aproveito. Se faz parte, eu faço. E é legal fazer esse tipo de coisa mais sombria e complexa. Acho que os dois lados são legais, a luz e a sombra. Os momentos mais sensíveis e mais íntimos com o filho dele são tão legais quanto as coisas mais sombrias. Então, na prática, você não percebe muito o que está fazendo. Eu não estou voando e matando as pessoas com laser, estou apenas pendurado fazendo movimentos com a cabeça. Claro que há um limite, mas não há muitas surpresas nessa série em relação ao que temos que fazer.”

Para o público, contudo, “The Boys” guardou diversas surpresas para esse terceiro ano, uma das maiores sendo a revelação de que o Capitão Pátria teria sido concebido nos laboratórios da Vought a partir do material genético de Soldier Boy. Se no Brasil temos a máxima de que “pai é quem cria”, para o grande anti-herói, que foi literalmente gerado a partir de um tubo de ensaio, se apegar pode ser mais fácil do que para nós, meros mortais. A revelação do “parentesco” no penúltimo episódio da temporada, inclusive, foi um dos que Starr mais gostou de gravar:

“Uma das cenas mais legais, se é que posso dizer isso, foi quando descobrimos ser pai e filho no final do sétimo episódio. Um dos aspectos do Capitão Pátria que eu sempre gostei foi sua necessidade por figuras paternas. Primeiro o doutor Vogelbaum, e depois toda a raiva que ele sente… Há um ditado em alemão que não se traduz exatamente, que é ‘os doces do papai são sempre os melhores’. Não se traduz mesmo. Mas há algo sobre a ausência de um pai e a ausência de sabedoria. Há uma ausência disso no mundo atualmente. Então eu realmente gostei de fazer essa cena e ter essa relação. Explorar a masculinidade tóxica e os relacionamentos masculinos.”

O tópico da masculinidade é uma constante ao longo da temporada, frequentemente levantado por Soldier Boy. Jensen Ackles é uma figura que marcou uma geração toda de fãs com o sucesso de outra série, a longeva “Supernatural“, e agora ele espera que seu trabalho em “The Boys” traga uma oportunidade para o público velho e novo refletirem sobre seus papéis no mundo atual:

“Esse personagem, em particular, foi trazido para a série por diversas razões. Uma dessas, tocando no aspecto mais satírico da série, é essa representação de uma geração mais velha, que é muito presente até hoje e que transmite essa masculinidade tóxica para as gerações mais jovens, e revelar isso nos dias atuais… Aqui você tem esse cara que não esteve presente por todos os processos pelos quais nós passamos. Ele perdeu as pessoas se emancipando, ele perdeu a internet, ele perdeu o treinamento de mídia [risos].”

Ainda assim, ele alerta que, apesar da importância de se olhar a lacuna geracional pela qual Soldier Boy foi involuntariamente submetido, existem certos comportamentos e posturas que precisam evoluir com a sociedade ao longo do tempo. A relação do vilão com Hughie Campbell (Jack Quaid) é o ponto-chave para entender essa necessidade, segundo Ackles:

“Uma das minhas coisas favoritas no personagem, um dos aspectos que resumem o que o Soldier Boy representa, foram as cenas com Hughie. E teve coisa que não apareceu, tínhamos bastante material, mas é comum nem tudo chegar até a versão final dos episódios. Mas o Hughie fala: ‘Tudo que sai da sua boca é nojento.’ Há um momento em que ele aponta para um homem e pergunta: ‘O que ele está fumando, ele está vaping [com um cigarro eletrônico]? Bom, eu gosto de gaping [que traduz para “abrir buracos muito grandes”, em um trocadilho machista]!’ Ele diz essas coisas rindo. Hughie fica mortificado, mas ele não acha que há problema algum.”

A masculinidade tóxica de Soldier Boy pode até ser consequência da lacuna geracional pela qual ele passou, só que os tempos agora são outros. Ainda que boa parte do público ria dos absurdos ditos pelo personagem, eles revelam, na verdade, o trauma sofrido por ele durante seu crescimento. Esse é um vício que se perpetua sendo passado de uma geração para outra, e que causou muitos danos. Ackles entende que masculinidade é algo que se expressa de formas diferentes, mas é preciso que nossa compreensão do termo também evolua com o tempo:

“Para Soldier Boy, é assim que homens falam. ‘Nós não choramos, não ficamos com medo!’ Então, acho que poder interpretar isso e expor esse tipo de coisa, o público claramente entende que isso é uma representação satírica. Acho que nos possibilita falar um pouco mais sobre isso e conversar sobre o que há por trás. Sou um pouco mais velho que vocês, mas ainda sinto essas ideias impressas em mim, de que homens têm que agir de uma certa forma. ‘Você tem que ser durão, não mostre suas emoções!’ Eu tive que lutar contra isso na vida. Tive que me perguntar: ‘Por que tenho que ser assim, manter essa pose de grande e forte, desprovido de emoções?’ E acho que as gerações mais jovens podem aprender que talvez essa não seja a melhor forma de agir. Masculinidade é algo necessário, nós precisamos dela. Mas precisamos que ela seja correta e que haja compaixão. Se seguirmos essa linha, estaremos em um lugar melhor.”

A terceira temporada de “The Boys” já está disponível na íntegra no Prime Video. Leia nossa crítica.

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Julio Bardini
@juliob09

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