Cinema com Rapadura

Entrevistas   segunda-feira, 11 de julho de 2022

[Entrevista] The Boys | Karl Urban e Eric Kripke falam sobre o reflexo que a série traz do mundo atual

A terceira temporada trouxe desafios novos para os protagonista e para a produção, incluindo levar às telas uma orgia de super-heróis. Para Urban e Kripke, "comprometimento" parece ser a palavra-chave.

[Entrevista] The Boys | Karl Urban e Eric Kripke falam sobre o reflexo que a série traz do mundo atual>
(Imagens: divulgação/Amazon Prime Video)

Quando uma série como “The Boys” volta ao ar, certamente causará um belo alvoroço. Seja pelo tom irreverente, as tiradas sarcásticas que beiram o ultraje, as cenas de ação regadas a sangue ou o reflexo sombrio do nosso próprio mundo que ela propõe, a obra tem uma receita própria para o sucesso. Atualmente, ela pode se dar o luxo até mesmo de levar uma grande orgia de super-heróis para as telas do streaming e, surpreendentemente, produzir uma história extremamente questionadora com isso.

O segredo do sucesso para conseguir combinar tantos elementos distintos em um caldeirão pronto para explodir e, ainda assim, tudo dar surpreendentemente certo é a mente do criador e roteirista-chefe Eric Kripke e o poder do elenco liderado pelo astro Karl Urban. Em entrevista concedida ao Cinema com Rapadura a convite do Prime Video, a dupla falou sobre o impacto de “The Boys” na atual geração de espectadores, os desafios de levar ao ar uma série tão perversa (e pervertida!) e os rumos que eles esperam poder trazer na quarta temporada.

Logo de cara, o questionamento para Kripke: como alguém com um olhar e uma língua tão afiados como ele encara a realidade de todos os dias ao sentar para ler um jornal? Se para os espectadores a série é um bálsamo de humor e irreverência criado a partir da nossa própria irrealidade cotidiana, como alguém lida com o fardo de pegar isso tudo e criar o tal bálsamo?

A verdade, segundo Kripke, é que ele é apenas mais um de nós e descreve o sentimento sem quaisquer papas na língua (tal qual o material que ele escreve): “é como ter um abacaxi enfiado no c*”:

“Me sinto como muita gente se sente. Alterno entre medo, raiva, preocupação… Temos esse ditado sombrio na sala de roteiristas, que é: ‘ruim para o mundo, bom para a série’. Eu preferiria o oposto. Adoraria não ter material, seria ótimo dizer: ‘poxa, não tem nada para escrever’. Mas todo dia há uma mangueira de bombeiros dos horrores esguichando nas nossas caras e, às vezes, acaba sendo coisa demais para escrever.”

Então quer dizer que ainda há um excesso de pauta para a série? Kripke afirma que sim, a realidade pode ser mais assustadora que a ficção, às vezes. Mas se nós temos que encontrar formas de lidar com isso e extravasar cada um à sua própria maneira, para ele isso é através do trabalho. E que trabalho.

“A única coisa que posso dizer e pela qual sou grato é que é terapêutico. Não precisamos fazer uma série em que fingimos que as coisas que estão acontecendo no mundo não estão acontecendo, ou que contamos algum tipo de conto de fadas reconfortante. Nós seguramos um espelho em frente a todo mundo e discutimos as questões que são importantes para nós, ou que nos assustam. E é raro ter um emprego na indústria do entretenimento que faça isso. Então, por um lado, somos realmente gratos.”

Se é que nós, do lado de cá, podemos ser gratos, claro. Apesar das frequentes piadas de cunho sexual, “The Boys” é uma série feita para um público maior de idade e, espera-se, mais maduro, capaz de compreender as entrelinhas do que é mostrado na tela. Ainda assim, a série frequentemente ganha ares de um conto de advertência com as narrativas de seus personagens principais.

É o caso de Billy Bruto, interpretado por Karl Urban. Ator experiente, antes de “The Boys” ele ficou marcado por papéis como Éomer em “O Senhor dos Anéis“, Leonard “Bones” McCoy nos novos filmes de “Star Trek” e o Juiz Dredd em “Dredd“. Cada um desses personagens surgiu em momentos diferentes das últimas décadas, deixando sua marca em gerações diferentes. Bruto certamente deixará a sua, também, e Urban acredita que há muitas lições a se tirar da história trágica e brutal do anti-herói:

“É complicado, pois a ideologia do Bruto é, por vezes, muito sombria. Ele é aquele cara que fala coisas absurdas, do tipo: ‘se dependesse de mim, pandas seriam extintos’. Sabe? E esse não é necessariamente o exemplo moral que alguém gostaria de inspirar. Mas eu tento olhar as mensagens positivas do personagem. E mesmo que, em nove de dez vezes ele tome a decisão errada, o que a série acaba fazendo — e o que espero para o futuro — é que haja alguma oportunidade para ele ser o herói de verdade e fazer o que é certo. Mas no grande arco dele, acredito que haverá coisas positivas para o público manter dele, há diversos aspectos positivos que ressoam do Bruto. Muitos ensinamentos negativos para aprendermos a evitar tomar essas mesmas decisões.”

Uma das principais linhas narrativas da temporada é justamente o dilema de Bruto em utilizar o novo Composto V temporário como uma forma de enfrentar pessoalmente seu principal inimigo e maior antagonista, o Capitão Pátria (Antony Starr). É em sua busca quase cega por vingança que ele se alia a Soldier Boy (Jensen Ackles), outro herói poderoso, mas sem um pingo de bom senso.

O caminho desses verdadeiros três trens desgovernados se cruza pela primeira vez no famigerado episódio “Supersuruba”, aguardado ansiosamente pelo público pela promessa de levar às telas uma orgia entre super-heróis. Mas, por incrível que pareça, o capítulo ficou marcado justamente pelo encontro entre a maioria dos protagonistas da série. E, segundo Kripke, o objetivo era justamente esse.

“Sei que tem muita coisa pervertida que fica com os holofotes. ‘Orgia! Sexo!’ E coisa do tipo. Mas isso sempre foi como um Cavalo de Tróia, pois sabíamos, quando estávamos fazendo, que ela na verdade era sobre os confrontos emocionais. Porque ninguém espera, no meio de uma orgia, que é esse o rumo que as coisas tomam. A verdade é que a razão pela qual fizemos a Supersuruba inicialmente era que precisávamos de um evento grande o suficiente para fazer todos os personagens acabarem em um mesmo lugar. Óbvio, é um momento infame da graphic novel, mas nos permitiu juntar o Capitão Pátria, Soldier Boy, Bruto, Leitinho, Annie, Hughie, Trem-Bala, Profundo… É raro poder ter todo mundo se enfrentando desse jeito, e a Supersuruba nos deu essa oportunidade.”

Em meio às suas risadas características, Kripke ainda descreveu o momento como “um ‘Vingadores: Ultimato’ para maiores de idade”, algo que ele prometeu (ironicamente, claro) escrever até em sua lápide. Mas, uma vez definida a necessidade de adaptar a Supersuruba, o desafio era de fato fazê-la acontecer. Antes de mais nada, qual o segredo para aprovar algo desse tipo para exibição na televisão? Qual é o seu segredo, Eric Kripke?

“Surpreendentemente, a Amazon não impôs tantas restrições. Digo, não acho que teríamos conseguido algo assim na primeira temporada, mas estando na terceira e com um certo sucesso… Comparo a uma criança insistindo com os pais pela sobremesa e os pais finalmente permitem. Uma vez que conseguimos, aí é muito difícil gravar algo assim.”

Ao que parece, conseguir a permissão para a Supersuruba não foi tão difícil quanto de fato tirá-la do papel. Em meio às dificuldades impostas pela Covid-19 e pelo fato de serem dezenas de pessoas nuas, Kripke ressaltou a importância de um novo tipo de profissional no set, os coordenadores de intimidade. Com as diversas denúncias de abuso e assédio sexual trazidas à tona pelo movimento #MeToo anos atrás, o cargo passou a ser praticamente obrigatório para toda produção que se propõe a ter cenas de nudez e sexo. “The Boys” não foi diferente:

“Primeiro, foi durante a pandemia. Segundo, é muita gente nua, e você tem que garantir que todos estão sendo perfeitamente profissionais e seguros. Há esse novo cargo, os coordenadores de intimidade, que garantem que todo mundo esteja trabalhando de acordo. Tínhamos diversos deles. Então, o desafio logístico de se ter 50 pessoas nuas, todas simulando sexo ao mesmo tempo… Acho que, se eu soubesse o quão assustador seria filmar isso, o medo de algo dar errado… Acho que não teria feito exatamente da forma que foi! [risos] Então acho que não teremos outra Supersuruba em um futuro próximo, minha pressão sanguínea não aguenta, mas fico feliz demais com a forma que ficou.”

Felizmente para nós, a diferença entre as mídias é realmente algo importante para adaptar. O material base de “The Boys” — a graphic novel homônima de Garth Ennis e Darick Robertson — é conhecido por beirar a falta de amarras quase total. Se a Supersuruba foi o que foi na televisão, bom… Não há como fazê-la tal qual foi nos quadrinhos. Na hora de definir como e o que levar das páginas para as telas, Kripke compara sua função como produtor e roteirista-chefe, na verdade, à de um DJ:

“Não podemos adaptar de forma 100% fiel, pois, no fim das contas, são mídias diferentes. No fim das contas, quando as histórias tentam ser fiéis demais, elas acabam ficando sufocadas, é preciso deixá-las respirar. Nós, roteiristas, encaramos isso como se estivéssemos fazendo uma curadoria da graphic novel, ou talvez fazendo um remix. E, na verdade, nós apenas seguimos nosso instinto. Quais são os momentos que adoramos? Os momentos que queremos muito mostrar para o público? Seguimos essa bússola, se houver algo que algum dos roteiristas gosta muito, normalmente é um bom indicador de que aquilo terá algum significado para os fãs.”

Encontrar o tal significado é algo cada vez mais difícil atualmente. “The Boys” é apenas uma dentre as diversas obras de super-heróis que povoam a cultura pop entre cinema e televisão. Algumas são apenas entretenimento, outras buscam contornos mais artísticos. Há quem tente ser otimista, há quem goste de histórias mais sombrias. Nessa linha tênue, a série consegue dançar sem se importar muito com o que digam sobre ela. Mais que uma sátira sobre super-heróis, a obra é uma sátira política, apesar de haver quem insista em ignorar esse fato (“viver é fácil com os olhos fechados”, já diria John Lennon).

Para Karl Urban, um dos principais elementos da série é justamente a postura questionadora por trás de todo o sexo, drogas e superpoderes:

“Vejo isso sob dois aspectos. O primeiro é entreter o público em casa, queremos que eles se divirtam. E nós nos divertimos fazendo. Segundo, em um mundo em que nos sentimos tão consumidos com propriedades de super-heróis, é importante desconstruir o mito um pouco. Tomara que isso evidencie um pouco a grande verdade aqui, que é que super-heróis não existem. Ninguém vai aparecer para nos salvar. E qualquer pessoa que se levante e diga que pode está mentindo. No fim das contas, isso depende de nós, nos salvar e salvar nosso planeta. Então, se pudermos de alguma forma questionar esse tipo de posicionamento, é um trabalho interessante para a série.”

Ainda que superpoderes não existam de fato, a concentração de poder real em grupos tão pequenos é algo sentido de forma cada vez mais latente no nosso mundo, seja o poder político, financeiro ou qualquer outro. Quem concentra esse tipo de poder nem sempre está muito preocupado com o bem que pode fazer com ele. “Com grandes poderes vem a absoluta certeza de que você se tornará um filho da p***”, já diria Billy Bruto, e Eric Kripke não colocou essa frase, com essas palavras, na série à toa:

“Conseguimos encontrar nosso território nesse campo tão lotado tentando perguntar, com a maior disciplina possível: ‘como seria se super-heróis existissem de verdade?’. A verdade é que é uma ideia muito ruim. Seria um pesadelo se realmente tivéssemos super-heróis. Eles seriam muito mais próximos aos personagens de ‘The Boys’ do que dos personagens da Marvel ou da DC. Então existimos nessa tensão entre o nosso mundo e o mito absurdo dos super-heróis, que tem muita surrealidade. Se há uma mensagem na série, é o que Karl disse, depende de nós salvar a nós mesmos. E questione os seus heróis. Questione gente em posições de autoridade. Não há muito disso acontecendo.”

Quanto maior o poder, maiores as consequências das suas ações, e isso é algo que “The Boys” sempre trabalhou muito bem. Billy Bruto se tornou uma pessoa ainda pior uma vez que ganhou poderes, tornando-se um exemplo do que Urban e Kripke falam sobre como poder muda as pessoas. Mas Urban segue esperançoso quanto ao futuro do personagem, apesar de, a essa altura, estarmos assistindo às crônicas de uma morte anunciada, praticamente:

“Isso é como olhar em uma bola de cristal da cabeça desse cara [apontando para Kripke], então eu só posso especular sobre minhas esperanças e desejos para o personagem — algo que eu não posso fazer. Mas uma das coisas fantásticas sobre essa série é que nossos personagens são levados a novos territórios e forçados a explorar novas dinâmicas. A relação dele com Ryan e tentar ser um pai, o dilema moral de tomar Composto V para nivelar o jogo… E as consequências acabam indo de acordo com todas essas decisões que ele toma. Então é um desafio constante, não tenho dúvidas de que vamos ver algumas consequências bem sérias indo de encontro ao Bruto.”

Será que há alguma chance de melhora para o mundo de “The Boys” após o final da terceira temporada? Talvez com a mudança das posições de cada jogador no tabuleiro subvertido desse complexo jogo de xadrez? Infelizmente, não é o que parece, segundo Kripke:

“Há muitas linhas narrativas que são apresentadas no final da terceira temporada que funcionam quase como um piloto da quarta temporada. Mas o Bruto tem um problemão com o qual ele precisa lidar na quarta temporada, Victoria Neuman se encontra em um lugar novo, Capitão Pátria se encontra em um lugar novo… Então as coisas não vão melhorar, posso dizer isso.”

A nossa sorte, enquanto público ansioso por ver esse desfecho, é que quem de fato traduz as intenções do roteiro em ações na tela tem consciência do que faz. Incorporar esse tipo de escrita complexa e, por vezes, até sombria pode parecer um desafio, mas, para Urban, é mais simples do que parece:

“Você tem que se comprometer com isso. E aceitar a realidade que o que está escrito nem sempre deixa o melhor gosto. É um salto de fé. O segredo é seguir o roteiro e torcer pelo melhor.”

Nós também torcemos, Karl. Por vocês, por Billy Bruto e os meninos e por nós mesmos aqui do nosso lado da tela.

A terceira temporada de “The Boys” já está disponível na íntegra no Prime Video. Leia nossa crítica.

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Julio Bardini
@juliob09

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