Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 17 de junho de 2022

Tudo Em Todo O Lugar Ao Mesmo Tempo (2022): o verdadeiro multiverso da loucura

Passeando entre gêneros e sensações, filme com Michelle Yeoh é uma viagem multiversal divertida e emocionante, feita para nos lembrar dos prazeres simples da vida.

O título ajuda a definir a experiência de assisti-lo. “Tudo Em Todo O Lugar Ao Mesmo Tempo” não se refere apenas ao multiverso explorado nas peças comerciais — este aproveitado como nenhuma outra obra da mesma temática —, mas também ao fato de se aventurar por diferentes gêneros, abraçando inúmeras referências, e com a capacidade de gerar sentimentos contrastantes. Além disso, consegue usar algo tão abrangente como o multiverso como mecanismo para gerar reflexões sobre questões tão elementares como a vida e os relacionamentos familiares, de forma tão divertida quanto emocionante. Tudo isso em apenas 2h19 de uma experiência que certamente não será esquecida tão cedo.

Quem foi previamente conquistado pela premissa do multiverso pode ficar um pouco impaciente enquanto a família de Evelyn Wang (Michelle Yeoh) é apresentada. Mas a vida problemática da protagonista, em crise financeira, conjugal e familiar, é fundamental para encontrar alguma lógica na loucura que virá a seguir. Evelyn é dona de uma lavanderia com problemas de impostos, vivendo um dia deveras estressante: ela está no prazo limite para corrigir as declarações tributárias, ao passo que precisa lidar com o desejo da filha Joy (Stephanie Hsu) de apresentar a namorada ao rígido avô que está prestes a chegar e, para completar, seu marido acabara de entrar com um pedido de divórcio.

Quando os personagens estão no prédio da Receita Federal prestes a serem multados, Evelyn é abordada por uma versão alternativa de seu marido, Waymond (Ke Huy Quan), que assume o corpo da contraparte deste universo e traz o convite à aventura para a protagonista. Ela pode ser a única de infinitas versões de si capaz de derrotar Jobu Tupaki, um ser multiversal que planeja destruir todas as realidades. O que se vê depois é uma sequência de cenas com uma criatividade e inspiração visual única, a começar pela luta de Waymond com os capangas de Jobu Tupaki, armado apenas de uma pochete e muita habilidade. Em seguida, o longa se torna uma constante caçada, chegando ao momento em que Evelyn descobre como pegar habilidades “emprestadas” de outras versões suas no multiverso.

A apresentação dos planos multiversais é embasbacante. A forma como todos os technobabbles para acessar as diferentes versões de cada um são despejados em meio à uma perseguição já dão o tom necessário para aproveitar a obra ao máximo: se deixe levar e não se importe com as tecnicalidades. Se prender à necessidade de explicações é desperdiçar as mais variadas sensações causadas ao ver Evelyn acessando uma nova contraparte. Não bastasse a necessidade de uma ação aleatória para ativar um coeficiente X que permite a conexão — o que rende bizarrices divertidíssimas —, as realidades imaginadas são incrivelmente variadas, abrangendo de decisões simples, como Evelyn ter ou não escolhido casar com Waymond, e o quanto isso altera a vida de ambos; até as mais inusitadas, como uma existência em que os seres humanos evoluídos foram os que possuíam salsichas no lugar dos dedos.

O mais gratificante é que cada plano desses não existe apenas pelo apelo visual, sendo deixado de lado quando a narrativa avança. Pelo contrário. Tudo tem impacto no decorrer da história, rimando com a própria ideia de que cada pequeno momento tem sua importância, desde observar o quanto Evelyn e Waymond são capazes de evoluir longe um do outro e ainda assim quererem ficar juntos, até a mais inusitada realidade em que a protagonista treinou os dedos mindinhos à exaustão. Tudo funciona como um amálgama de coisas que parecem nunca terem sido pensadas antes, e então são executadas como se fosse óbvio que dariam certo juntas. As limitações orçamentárias não são empecilho para os Daniels (Dan Kwan e Daniel Scheinert, diretores e roteiristas) e para a história que querem contar. Não por acaso, grande parte do filme se passa dentro do prédio da Receita Federal, e mesmo assim somos transportados por infinistas realidades. Poucos efeitos práticos e muita disposição dão um banho de criatividade em produções de orçamentos milionários.

Ao longo do filme, o deslumbre e a expectativa de qual absurdo poderá acontecer a seguir vão se mantendo. Até que, após algumas revelações, a narrativa toma um caminho totalmente inesperado, porém condizente com o que foi mostrado nas cenas iniciais. É muito fácil imaginar centenas de realidades diferentes, dando poderes quase ilimitados e gerando pequenos conflitos para os personagens resolverem — de preferência com muita porradaria. Mas qual seria o propósito no fim?

Essa pergunta surge não só para público, mas também para Evelyn e Jobu Tupaki, e cada um tem uma resposta para esse questionamento. É na prolongada “discussão” entre esses pontos de vista que reside o núcleo emocional da obra, capaz de soar bobo na mesma intensidade em que transcende até o multiverso. E a forma como as sucessivas epifanias são retratadas mostram que, apesar de tudo parecer aleatório, cada realidade teve sua importância e conseguiu se encaixar naquele momento. E a montagem encaixa tudo de modo tão magistral que não se sabe o que foi mais difícil: organizar o texto para que todas as ideias se encadeassem perfeitamente, ou se seria possível retirar qualquer peça sem desmoronar todo esse quebra-cabeça.

Certamente nada disso seria tão impactante sem as atuações precisas de todo o elenco. Michelle Yeoh exala um cansaço carismático que torna impossível não embarcar em sua jornada. O alcance da sua versão “original” vai do deslumbre pelas novas habilidades e possibilidades a um conformismo em que, apesar de tudo, ela ainda é capaz de sorrir. Já Stephanie Hsu incorpora uma visão cética e pessimista essencial para sua personagem, e Ke Huy Quan (o eterno Data de “Os Goonies”) entrega diversas facetas de seu Waymond com a mesma qualidade, do marido adorável ao lutador habilidoso. Destaque também para Jamie Lee Curtis, completamente solta e se divertindo no papel da desequilibrada auditora fiscal Deirdre.

Essa jornada sentimental envolvendo a família de Evelyn (em especial a relação com a sua filha) pode parecer um desperdício de potencial perante toda a qualidade vista no primeiro ato. Mas a reflexão proposta tem poder, sobretudo em um conjuntura da sociedade em que o imediatismo e a superficialidade dominam cada segundo dos nossos dias. O filme possui cenas de ação primorosas e momentos em que é difícil distinguir se foram feitos para rir, chorar, gritar, ou tudo de uma vez. Mas em meio a tudo isso, a lição da protagonista é simplesmente aprender a reconhecer o valor de cada pequeno momento de felicidade, mesmo que sejam passageiros, mesmo que nos levem a um destino indesejado. E “Tudo Em Todo O Lugar Ao Mesmo Tempo” nos faz passar pela mesma experiência para aceitar que essa realidade é o que nos faz humanos.

Martinho Neto
@omeninomartinho

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