Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Bacurau (2019): um filme (e um pássaro) que não se apequena

Com ótimo som direto, múltiplos protagonistas e uma câmera deslizante, a obra combina um Brasil profundo com tecnologias espaciais, ficção científica com faroeste-terror, e projeta com muita cor e sangue um futuro que se equilibra na tradição.

É uma homenagem e, também, uma crítica. “Bacurau“, o nono filme da carreira do diretor pernambucano Kléber Mendonça Filho (“O Som ao Redor”), é dirigido em parceria com Juliano Dornelles, com quem trabalhou em “Recife Frio” (2008). A obra estreia no Brasil depois de ter conquistado o Prêmio do Júri no último Festival de Cinema de Cannes, prometendo tanto aplausos dos espectadores brasileiros como críticas dos onipresentes haters .

Situando no Nordeste o ponto central da trama, a partir de onde tudo se desenvolve, e o protagonismo nas (muitas) mãos dos moradores do sertão, o enredo se constrói através das experiências íntimas e coletivas de um povoado blindado por encantaria e amor-próprio. Encantam, também, as atuações orgânicas de mulheres, homens e crianças locais (atores ou não) que dividem as cenas com nomes já conhecidos – e aplaudidos – do audiovisual nacional, como Sônia Braga (“Aquarius“) e Silvero Pereira (da novela “A Força do Querer”).

O filme não perde em nada por ser de difícil categorização, aproximando referências do cinema clássico, do faroeste e até do terror com uma estética retrô-futurista que toma como pano de fundo o cangaço brasileiro. Assim, mostra que sabe usar em seu favor a bricolagem cinematográfica que o torna denso, interessante e profundamente contemporâneo. 

As duas horas e quinze minutos de exibição são atravessadas por muitos afetos – nenhum, provavelmente, relacionado ao tédio. Caixões transbordando água, sucatas de antigos ônibus escolares transformados pelos moradores de Bacurau em hortas comunitárias e personagens um tanto místicos, como a recém-falecida dona Carmelita (quanto “absurdos”), são alguns dos elementos que ajudam a tecer um enredo pouco óbvio e muito rico em referências e simbolismos.

A trama parece buscar produzir, assim, um efeito de inversão das forças que disputam o imaginário social e a construção da nossa percepção ideológica, fortalecendo uma narrativa local, sul-americana, brasileira e nordestina em detrimento à colonização dos hábitos e da cultura produzida pelos países do Norte, com seu estilo de vida centrado no consumo e histórias de super heróis. Ao mesmo tempo, advoga ainda pela grandeza da região e das tradições do Norte-Nordeste do nosso país, através de closes-in em figuras anônimas, da fauna e flora local e de costumes estranhos à vida nas grandes cidades. A crítica, assim, é direcionada de forma expressiva às regiões (globais ou nacionais) com maior concentração de renda, como às regiões ao Sul do país e os norte-americanos, marcados não apenas por seus hábitos de consumo, mas também pela empáfia e desinteresse que dispensa às mazelas dos mais pobres. 

A cidade em que se passa a história, tirada do mapa via truque de vilão, resiste pela união, afeto e uso inteligente das ferramentas de comunicação on-line contra forças externas de duas naturezas: uma, estrangeira, de cunho imperialista; outra daqueles aqui de dentro que não têm vergonha de explorar a própria terra em prol de um neocapitalismo de cunho religioso ou de uma velha política repaginada como “nova”.

O filme instiga, no mínimo, a uma desconfortável reflexão sobre nosso conturbado tempo atual, encontrando na experiência e na tradição, ou seja, naquilo que é para muitos considerado como “passado”, a esperança de um futuro comum, possível e diverso. Um futuro não pautado pelo número de mortes que se produz, mas equilibrado pela empatia, laços fortes e comunhão, características  dos povos nativos e afrodescendentes que compõem o mosaico heterogêneo de nossa cultura.

Bacurau, o pássaro, é bicho que só sai à noite e pode ser visto em todo o Brasil. “Bacurau, o filme, estreia em um mundo também mergulhado em sombras, nepotismo e destruições em massa. Ambos ilustram o que temos de melhor: nossa natureza e nossa cultura em plena vida, ainda que sob a constante ameaça de desaparecimento. Assim, Bacurau – o pássaro, o filme, a cidade inteira – canta o recado: o que não é bom a gente enterra. Nossa terra, tropical e antropofágica, sabe digerir.

Escrita em colaboração com Naiara Chaves Azevedo.

Vinícius Volcof
@volcof

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