Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Entre Tempos (2018): o tempo não é linear

Segundo filme de Valerio Mieli se destaca pela destreza técnica e capricho visual de como compõe uma narrativa de múltiplas linhas temporais que se interconectam.

Uma história de amor banal, dessas tantas já vistas no cinema: menino conhece menina, eles vivem os altos e baixos do amor, vão morar juntos, enfrentam os desafios do relacionamento e, ao final, têm que decidir se continuam juntos ou não. Nas mãos de Valerio Mieli, roteirista e diretor de “Entre Tempos“, essa trama singela vira uma experiência proustiana potencializada, onde sua madeleine que desloca a outras temporalidades é mordida a cada cena, imbricando o passado, o presente e futuro dos personagens em uma única linha narrativa cheia de potência e visualmente espetacular.

O feito pode até parecer simples e de fato não é a primeira vez que foi tentado. Outros filmes já o fizeram, inclusive, com maiores níveis de sofisticação – por exemplo, a loucura dos irmãos Nolan em “Amnésia” (2000). A primazia do feito de Mieli, contudo, é construir esses “entre tempos” narrativos a partir de uma trama com a qual qualquer um com qualquer experiência em relacionamentos possa se identificar e sentir. Ressalta-se ainda o fato de ser apenas o segundo longa  de Mieli. Em alguns momentos essa obra torna-se algo como “uma faca só lâmina”, trazendo cenas muito sensíveis sobre a vida a dois.

Os personagens não têm nome, sendo creditados apenas como Ele (Luca Marinelli, de “Uma Questão Pessoal“) e Ela (Linda Caridi, de “Antonia“). Eles se conhecem numa festa, na primeira cena do filme, mas logo nela podemos notar o imbricamento temporal que faz com que Ele transite entre as sombrias memórias do passado, lembrando da infância abalada pela péssima relação dos pais, e também para jump cuts do futuro, em outro estágio da relação com Ela.

As coisas são belas porque acabam ou elas seriam menos belas justamente por isso? – esse é um dos questionamentos dos personagens em alguns dos melhores diálogos do longa, profundos ao refletir sobre o próprio ato de lembrar como compulsão e também como aquilo que nos constitui como indivíduos. Somos o que vivemos, mas também podemos ser consumidos pelas memórias, deixando de viver o presente por trauma ou nostalgia. Somos também um pouco dos outros com quem convivemos – é o que se nota pela progressiva modificação dos protagonistas, causada um sobre o outro: Ela se tornando mais triste, Ele se tornando um pouco menos.

A atuação de Linda Caridi é absolutamente encantadora, lembrando as antigas estrelas do cinema italiano, cheia de luz e beleza. Tal nostalgia de um cinema mais antigo não emana apenas de uma atuação clássica, mas também de certa homenagem a Fellini que os filmes daquele país ainda parecem carregar, para nossa alegria. “Ricordi?”, no título original, algo como “Recorda-se?” em português, parece muito “Amarcord “(“eu me recordo”), o filme memória de Fellini de 1973. Aqui, porém, Mieli exibe mais personalidade do que o próprio Paolo Sorrentino, dos conceituados “A Grande Beleza” (2013) e “Juventude” (2015). O tributo ao Maestro em Mieli aparece nas sequências surrealistas, geralmente materializações das memórias dos protagonistas, que pegam o público de surpresa pelo estranhamento, mas também deleitam pela beleza visual. É assim, por exemplo, na cena em que Ela se lembra que seu avô queria morrer no topo de uma árvore – visualizando sua cama sendo içada árvore acima (na verdade ele queria morrer aos pés de uma árvore). “A memória faz isso, engana” – Ele a explica.

“Entre Tempos” talvez tenha como limitação, a incapacidade de fugir do estereótipo narrativo de “menino encontra menina” para contar uma história de amor. Desde “Romeu e Julieta (e talvez antes) esse é o arquétipo das narrativas de romance, mas talvez não seja mais tão potente. O amor mesmo parece ter se mostrado mais do que apenas esse padrão. Seus afetos, porém, parecem traduzíveis a qualquer um que se pegou na inelutável crise de ver que o tempo é líquido e escorrega pelas mãos, como diria Zygmund Bauman. O cuidado visual de seu diretor também faz com que as memórias cumpram a função de traduzir sentimentos, seja de nostalgia ou de dor. As escolhas de planos, lentes e as cores fortes compõem, assim, um turbilhão de emoções, sentimentos e afetos que escorrem pela tela.

Ao final, ainda, uma surpresa: o filme não acaba. Sem estragar com spoilers, é importante que se note como, na cena de encerramento, a sequência vai lentamente evanescendo, sendo preenchida por uma música que surge visualmente em tela e parece representar todo o percurso de encontros e desencontros que acabamos de ver. De fato, não estamos aqui em busca de nenhuma conclusão, mas justamente para apreciar a jornada.

Vinícius Volcof
@volcof

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