Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 22 de abril de 2019

Los Silencios (2018): é ensurdecedor

Co-produção entre Brasil, França e Colômbia destaca o drama contemporâneo dos refugiados na América Latina e desloca o espectador das confortáveis bolhas urbanas para os problemas dos rincões do nosso país.

Em “Los Silencios”, Amparo (Marleyda Soto, “A Terra e a Sombra”) e sua família são um grupo de refugiados colombianos tentando refazer a vida numa pequena cidade às margens do rio Amazonas. Seu marido (Enrique Díaz, da série “O Mecanismo”) era um revolucionário local e foi dado como morto pelo governo. A mulher, então, tem de reestruturar sua vida e a dos filhos pequenos em meio às instabilidades da região da tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru, enquanto poderosas forças locais ameaçam a comunidade de despejo, a fim de explorar economicamente a região.

Escrito e dirigido pela brasileira Beatriz Seigner (“Bollywood Dream – O Sonho Bollywoodiano”), sua obra é, assim, um panfleto necessário de denúncia sobre o que vem acontecendo de modo cada vez mais acentuado numa parte do Brasil em que raramente habitam os interesses da grande mídia e da mentalidade nacional. Diferente da grande maioria dos filmes passados no contexto amazonense, ao exemplo de “Ex-Pajé” de Luis Bolognesi, este não escolhe o caminho mais óbvio da trama indigenista, mas opta por uma história familiar local, inserida nas opressões de contextos pouco desenvolvidos, onde ainda impera os desmandos das autoridades locais e as ameaças do poder econômico.

A família que guia a trama é também seu maior trunfo e de onde emergem as melhores cenas, como a da ceia silenciosa trabalhada sob um tom sépia. De tão banal e corriqueira, a protagonista, de olhar abatido e expressão cansada, poderia ser de qualquer um desses três países em que a história se passa, reforçando as semelhanças culturais e étnicas entre os povos da América Latina, fato que regularmente insistimos em esquecer. Com bons momentos de roteiro que nos fazem compadecer do drama da protagonista, quem conseguir se identificar com Amparo e sua família certamente poderá se condoer pela dor e o desespero de tantos outros que hoje vivem nas mesmas condições de fuga, fome e precariedade.

Quem sobra na trama, porém, é o personagem do pai, vivido pelo sempre ótimo Enrique Díaz. O problema dele é transitar entre o sonho e o real, sem nunca engatar em um desses locais. Enquanto Amparo dá entrada nos órgãos legais, a fim de receber uma indenização pelo seu desaparecimento, o marido participa da história de forma pouco explicada ou funcional, ainda que se note a intenção de envolvê-lo numa aura misteriosa, quase onírica, especialmente sob o olhar dos filhos. Estes porém, vividos pelos estreantes Maria Paula Peña e Adolfo Savilvino, exalam completa espontaneidade em cenas deliciosas, que enriquecem a narrativa e a experiência audiovisual, e por vezes brilham (literalmente) em cena.

Quanto à direção, Seigner limita-se a clássica escolha dos “filmes de arte” por planos parados em pelo menos noventa por cento das cenas, o que pode facilmente enfadar o espectador. Embora falte dinamismo em seus planos, eles não deixam de se assemelhar (se de forma intencional, não sabemos) ao estilo do cinema asiático contemporâneo, de excelentes exemplos, como Apichatpong Weerasethaku  (“Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas”), e servem para a aproximação entre regiões que têm mais em comum do que inicialmente podemos supor, como as amazonense e índica, especialmente a indonésia e tailandesa.

Nesse sentido, a diretora realiza o bom trabalho de não optar pelas conexões óbvias, antes trazendo novas estéticas e novas histórias ao cinema brasileiro, assim como já havia feito em “Bollywood Dream”. Justamente por isso, este novo filme é visualmente encantador. Ainda que falte movimento aos planos, o enquadramento fotográfico de Seigner extrai as composições mais ricas do contexto filmado, transformando cada plano em uma fotografia em movimento. Ademais, sua interação com a comunidade local fica clara na participação de atores não profissionais, inseridos na narrativa relatando seus próprios dramas pessoais, em meio aquele imbróglio internacional.

Assim, “Los Silencios” é daqueles filmes que oferecem um novo universo de reflexão aos espectadores que buscam, pelo cinema, não apenas entretenimento, mas um entendimento complexificado das questões do mundo. Nos faz pensar e sentir sobre o drama de outros contextos que, mesmo retratados na forma de ficção, são reais, urgentes e estão acontecendo agora mesmo (e até quando?). Por fim, faz lembrar o famoso “Canto das Três Raças, eternizado pela voz de Clara Nunes, que grita a dor dos povos indígenas e negros que formaram o Brasil sob o jugo português, mas também pode ser transposto para o contexto desse filme. Uma vez nesses dramas ensurdecedores, ainda são poucos os que se atentam aos soluçares de dor.

Vinícius Volcof
@volcof

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