Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 26 de abril de 2018

Ex-Pajé (2018): gente de verdade

Plástica e tecnicamente impecáveis, a realização de Luis Bolognesi se enfraquece ao adotar uma abordagem muito coesa para retratar a história de um povo que luta contra a exploração dos brancos há quase um século.

Na fronteira dos estados de Rondônia e Mato Grosso habita o povo Paiter Suruí, grupo indígena do tronco linguístico Tupi, contatado oficialmente em 1969, época de projetos de desenvolvimento como o da BR-364, que ligou o Sudeste à Amazônia. Desde então, eles têm enfrentado a invasão dos brancos com postura guerreira, lutando contra sua entrada destruidora pela floresta. Atualmente habitando e protegendo uma área florestal de 248 hectares, embora detenham a posse da Terra Indígena Sete de Setembro desde 1983, ainda vivem sob a ameaça dos madeireiros e garimpeiros que agem ilegalmente na região, destruindo seus meios de subsistência, perseguindo-os e até matando-os.

O documentário de Luiz Bolognesi (“Uma História de Amor e Fúria”), que estreou no Festival de Berlim e venceu o prêmio da crítica no último festival É Tudo Verdade (evento dedicado exclusivamente à cultura do documentário na América do Sul), acompanha uma história mínima entre o povo Suruí, da catequização forçada de um xamã, o protagonista Perpera, proibido de exercer suas funções ritualísticas sob acusação de feitiçaria. Contudo, por meio desse fio narrativo – construído compartilhadamente com os nativos, segundo o diretor –, se faz uma crítica histórica sobre as relações entre o Estado e a sociedade brasileiras com seus povos originários. Através das escolhas estéticas do realizador, o filme é ainda uma representação simbólica da cosmologia Suruí em seus mitos pré e pós-contato, construindo passagens narrativas e cenas que agregam uma sobrecamada à crítica social encenada.

É de fato surpreendente saber que Bolognesi, mais conhecido como roteirista, ganhando renome com trabalhos como “Bicho de Sete Cabeças” (2000), realizado em parceria com sua esposa, Laís Bodanzky (“Como Nossos Pais”), realizou essa produção com uma equipe mínima, restrita a cinco pessoas em campo. Também impressiona a propriedade teórica que serve de base ao realizador: o filme começa com uma citação de Pierre Clastres, antropólogo francês que, junto à sua esposa Helene, estudou nos anos 1970 povos amazônicos das terras baixas no Paraguai, como os Guayaki, a partir do qual estabeleceu o conceito de “sociedade contra o Estado” (mais do que sociedade “sem Estado”), que renegam e resistem às imposições das estruturas institucionais que sempre os incorporaram como cidadãos de segunda classe. Talvez o termo não se aplique aos Suruí, que mesmo com um longo histórico de guerras contra o cerco dos branco, hoje em dia, através de lideranças como Almir Narayamona Suruí, vem desenvolvendo estratégias de resistência por meio do Estado e de suas instituições privadas e públicas. Foi assim que eles firmaram, em 2007, uma parceria com a Google Outreach para o desenvolvimento do Mapa Cultural Suruí, pelo qual mapeiam, via Google Earth, as invasões e os desmatamentos da reserva. Assim, segundo Rebecca Morre, cientista da computação e responsável pelo programa, o povo Suruí substituiu os arcos e flechas pelos laptops.

Mas a rotina da vida Suruí, tal como mostrada no longa, é mais contraditória e problemática do que isso. Embora tenham carros e celulares – e comprem margarina no supermercado, em cena memorável do longa por sua beleza plástica –, existem elementos da sua ordem de mundo que se quebraram com o contato. Isso é manifesto no protagonista, forçado a frequentar a igreja semanalmente e vestido de acordo, ou seja, como um branco. Perpera, porém, resiste mantendo um silêncio obsequioso e uma velada desfaçatez, com que ignora a pregação religiosa, prostrando-se sempre de costas ao altar, admirando abelhas ou lendo os sinais do mundo. O velho xamã mostra ainda que de ex não tem nada, nem indígena, nem feiticeiro. No desenrolar de uma trama simplória, onde uma das mulheres da tribo é picada pela serpente (animal mítico da cosmologia de diversos povos amazônicos) e mergulha num estado de coma, revela-se os mitos daquele povo, que explicam através dos animais e das relações com a natureza (indissociáveis dos vínculos sociais) a visão da tribo sobre seus acontecimentos históricos, da origem ao fim do mundo.

O maior problema da obra, contudo, é ter sua estrutura narrativa demasiadamente amarrada para um filme que afirma não ter tido um roteiro a priori, tendo sido construído de forma compartilhada com os nativos. Distinto da linha do cinema compartilhado iniciado pelo etnólogo e cineasta francês Jean Rouch na costa do ouro africana entre os anos 40 e 60, como no filme “Os Mestres Loucos” (1954), o resultado final de Bolognesi é uma narrativa tão bem montada que escapa mesmo ao que concebemos pela forma documental, encaixando-se talvez melhor no docudrama. Infelizmente, o resultado dessa montagem sobreposta, e até por vezes picotada, é uma narrativa que não atinge toda sua potência crítica sobre a violência moderna. Assim, num dos únicos momentos em que Perpera de fato vocaliza contra a igreja, a voz que ouvimos é em off, sobreposta numa sequência que melhor agrade o realizador, como que num palimpsesto nada selvagem, pois de fato bastante ocidental e moderno marcantes ao cinema narrativo.

Nesse sentido, filmes como “Piripkura” (2016) e “Martírio” (2015) funcionam melhor, embora não dotados de tanta beleza estética. O problema da estetização das culturas é que tendemos a vê-las sobre os nossos termos. Dessa forma, o filme de Bolognesi não se diferencia muito, enquanto obra, da cena inicial do longa, que mostra Perpera recebendo em mãos a tese de um antropólogo francês sobre seu povo: por ser em francês, o pajé não entende nada, embora diga que “parece bem feito”. Assim, por maior que seja o engajamento do diretor para vocalizar a luta dos Suruí, inserindo, inclusive, imagens históricas do contato, falta uma espontaneidade que deixe mais acessível esse retrato de um povo que no próprio nome se classifica como “gente de verdade”.

Vinícius Volcof
@volcof

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