Cinema com Rapadura

Colunas   segunda-feira, 06 de julho de 2020

[Opinião] A série Dark precisa mesmo de explicação?

Jantje Friese e Baran bo Odar fizeram de uma história um fenômeno. Mas "Dark" não os pertence. E agora que você assistiu, o que é esta série para você?

Entre a oitava continuação daquela franquia que começou há quinze anos, a adaptação de um livro famoso e o terceiro remake da mesma história que ninguém aguenta mais, estamos nós, na ânsia por algo original. E de repente surge um título novo com um enredo instigante. E a cada temporada lançada o boca a boca vai levando a série mais longe, para outros tipos de público que nem são tão assíduos assim. 

O que tem de especial em “Dark“? Ora, o mínimo: um bom roteiro, cinematografia interessante, um elenco alinhado e comprometimento com a história que quer contar. Até a quantidade de temporadas e quando foram lançadas estão a serviço da narrativa e não da pressão de sua popularidade. Ao contrário de outras séries que, por se tornarem populares, sofrem com queda na qualidade, pois além de não ter mais enredo pra preencher o excedente de temporadas – à medida que continuam renovando devido ao sucesso – o tempo para executar um bom trabalho se torna reduzido pela pressão do lançamento. Desse mal até as franquias de cinema sofrem (alô, “Star Wars”!) 

Então não é espantoso que uma simples série de sci-fi tenha ganho tanto destaque, estamos sedentos por algo novo e minimamente bem feito. Porém ao mesmo tempo, ficamos muito mal acostumados com o que o mercado nos tem oferecido. Filmes e séries sendo produzidos a granel, no cinema, mas principalmente nos streamings. Suas tramas, interessantes, – até divertidas – mas em sua maioria, nos dá tudo de bandeja. Não entendeu? Esse diálogo auto-explicativo aqui responde. Só pra garantir, tem um voice-over explicando também. Não importa que a fotografia e o figurino apontem nitidamente que essa cena é um flashback, melhor inserir a data escrita na tela. Assim, não precisamos mais pensar.  

“Adoráveis Mulheres” (2019) – o uso das cores para indicar passado e presente

Por que uma parcela da audiência não entendeu “Dark”?

Tenho algumas teorias:

1- Por ter se popularizado demais, a obra chegou ao conhecimento de quem não está acostumado com o gênero. Para essas pessoas, muitos conceitos apresentados são novos, diferentes. Toma um certo tempo até se acostumar com eles. 

2 – Falta de familiaridade com nomes alemães, sendo que o volume de personagens que são introduzidos de uma vez pode sobrecarregar quem assiste. 

3- Achar erroneamente que há flashbacks ou flashfowards. A narrativa das duas primeiras temporadas caminha somente para frente e os acontecimentos nos três anos são simultâneos. Ou seja, se é 4 de novembro de 2019, também será 4 de novembro de 1986 e de 1953.

O tal do barato doido do espaço-tempo

4- Não dar uma janela de respiro. Maratonar séries virou o usual, deixamos de ter de esperar uma semana pelo próximo capítulo e para esta trama o período de espera entre um episódio e outro seria essencial. A ansiedade de consumir tudo encurta o nosso tempo de absorção, de pensar no que assistimos. 

5- O costume de assistir histórias já familiares e obras que já vêm mastigadas, como mencionado anteriormente. Ficamos habituados a não perceber o subtexto nas cenas, isto é, o que é contado através das cores, dos enquadramentos, de sutilezas na atuação etc. E essas características são justamente o que enriquecem uma peça audiovisual. 

6- E finalmente, a falta de comprometimento ao assistir. Hoje em dia, ver filmes e séries não mais significa, necessariamente, sentar e ter aquele momento de imergir no que se assiste. Com as redes sociais e o excesso de informação que recebemos, perdemos muito da nossa capacidade de focar em uma única tarefa. Ou vai dizer que você nunca assistiu um filme sem olhar para a tela do seu celular?

Os vídeos de “explicado”

Muitos criadores de conteúdo vêm promovendo um debate acerca deste formato, com bons argumentos contra e a favor. Talvez todo o contexto que discutimos acima tenha colaborado para o surgimento desse tipo de temática e sua popularização retroalimenta esses fatores. Tornou-se um hábito terminar de assistir uma obra e ir atrás desses vídeos imediatamente ao invés de buscar por si mesmo as respostas, afinal alguém já pensou por você. É como ter o gabarito de um livro de exercícios ao seu dispôr. 

Além de ficar viciado em não pensar por si só no significado de uma história, há de se considerar que não existem respostas certas, portanto não se pode assumir que a percepção de uma obra se limita ao que o seu criador disse que é. Arte é comunicação, sua substância é a mensagem, seu emissor é o artista e o receptor, sua audiência. O autor se baseia em experiências próprias e imprime sua visão e emoções no que cria, porém cada um de nós temos nossas experiências e visões também. Em “Dark”, os que estão inteirados nas questões energéticas que a Alemanha enfrenta, vai enxergar o debate sobre o desligamento das usinas elétricas. Mas há quem se relacione mais com as referências mitológicas, os que farão uma análise a partir das referências bíblicas. Quem gosta de filosofia, terá outro entendimento. E é possível apenas curtir as dinâmicas familiares e se divertir com a discussão sobre paradoxos e viagens no tempo. Arte é subjetividade, cabe a nós, audiência, o que fazer com ela. Afinal, tal como a arte, nós também temos diversas camadas.  

EMISSOR    ===== MENSAGEM =====>    RECEPTOR

Assim como para nos comunicar com alguém precisamos falar o mesmo idioma, as obras audiovisuais têm sua própria linguagem. Nos primórdios do cinema, havia um narrador durante as exibições explicando o que estava acontecendo em tela, pois o público estava diante de algo novo, que não compreendia. Com o passar do tempo, a linguagem cinematográfica foi se modificando aos poucos e hoje estamos acostumados com seus signos. Se vemos um plano cortar para outro, entendemos quando se trata da mesma cena ou não, mas nem sempre foi assim. Hoje em dia não é preciso um narrador ou explicações, pois embora não seja uma estudiosa das técnicas cinematográficas, uma pessoa é capaz de entender a mensagem que certos recursos comunicam, ainda que não saiba explicá-los. Instintivamente associamos o amarelo do perigo de radiação com o amarelo que se destaca da fotografia lavada de “Dark” e ficamos mais atentos. Mesmo sem perceber que duas cenas foram filmadas de forma quase idênticas, podemos sentir a sensação de déjà-vu que isto proporciona. 

O uso da cor em “Dark”

Isto posto, os críticos de cinema e criadores de conteúdo sobre obras audiovisuais podem nos ajudar a guiar o olhar, ampliar o debate, se assim desejarmos, mas não cabe a eles o papel de detentores da verdade. É compreensível que exista uma pressão para que se produza argumentos desse tipo, o mais rápido possível – atendendo uma demanda de mercado que se baseia em algorítimos de engajamento – e que uma parcela dessas publicações apenas utiliza o termo “explicado” como clickbait enquanto entrega um conteúdo que enriquece a discussão. Porém acredito que, para uma fração da audiência, este título é limitante e pode desencorajar, denotando que há somente um caminho ao analisar uma obra. Por que chamar de “explicado” quando podemos chamar de “análise”, “debate”, “discussão”?

O que podemos concluir?

Não é culpa do público não entender uma trama a partir de seu subtexto. Ao mesmo tempo, não é preciso explicar “Dark”, ou qualquer outra obra, para que alguém possa usufruir dela. Se sentir confuso, em dúvida ou ainda o desgostar, emoções distintas representam a individualidade de quem se conecta com uma peça artística. Não há respostas certas. Tudo bem que você termine a série sem saber quem são os Nielsen, quem são os Doppler. Pessoalmente, até hoje não sei o que é o líquido amarelo de “Mãe!”, mas sei descrever as sensações catárticas que senti ao final deste filme. 

Podemos consumir filmes e séries apenas para nos divertir ou deixar aflorar aquela inquietação no nosso íntimo, quando sentimos algo a mais. Vamos propor maiores debates, ainda que sejam internos. Assim, poderemos até exigir que o conteúdo que a indústria oferece seja melhor e que nós enquanto espectadores não tenhamos a nossa capacidade de nos conectar com a arte subestimada. Talvez, numa realidade paralela, tivéssemos mais conteúdos originais, em diversos gêneros, talvez “Dark” tivesse ficado no underground, um grande nome dentro de seu próprio gênero. 

Tayana Teister
@tayteister

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