Cinema com Rapadura

Colunas   quinta-feira, 21 de março de 2019

“Nós” e a representação dos negros no gênero de terror

De "Olhos da Múmia" a "Nós", quais foram os obstáculos que as atrizes e os atores negros enfrentaram para chegar protagonismo no cinema de terror?

Em 2017, “Corra!” chegou ao circuito mundial levantando as mais diversas questões. Com uma trama simples, porém cheia de camadas, o diretor e comediante Jordan Peele, conhecido pelas esquetes cômicas “Key & Peele“, brincou com o gênero, entregando um típico protagonista quase que alheio quanto aos percalços que o aguardam. Tal faceta costuma dar no espectador aquele incômodo, como quando é questionado o porquê de determinado personagem descer as escadas sem acender a luz, ou entrar em um porão sozinho, quando percebe-se que é de lá que vem o perigo.

Na trama, a inversão se dá quando o público vê Chris (Daniel Kaluuya), um jovem negro que está em um relacionamento inter-racial com Rose (Alison Williams), entrando no convívio de uma família branca tradicional, os Armitage. Os diálogos e ações dos personagens brancos têm um quê carregado de preconceito, o que faz o espectador quase que implorar para que o protagonista dê o fora de lá.

Já “Nós“, nova produção dirigida e roteirizada por Peele, não terá questões raciais como centro de sua trama. O roteiro é sobre membros de uma família que, durante um período de férias, enfrentam terríveis versões de si mesmos. Contudo, de forma alguma isto é um passo atrás na discussão racial e de representatividade. Pois para o próprio diretor, é importante contar histórias com negros como protagonistas, sem necessariamente ser criado uma discussão de raça. Sendo assim, o fato do longa ser centrado em uma família negra norte-americana já é muito significativo. Pensando nisso, o Cinema com Rapadura deu uma olhada no retrovisor do gênero terror, traçando um histórico de como os negros foram representados ao longo das décadas.

O início

Nos anos de 1920, filmes como “Olhos da Múmia” (1918) apresentavam sem a mínima repulsa atores brancos representando negros, isto é, a famosa prática do blackface. O roteiro do longa, dirigido pelo alemão Ernest Lubitsch, ainda flerta com a realidade da época, pois nele, um pintor britânico chega a ensinar a egípcios, naturalmente de pele mais escura, como se comportar, apresentando a eles os costumes do povo europeu, mostrando uma definição clara do que era visto como padrão na época. Já o curta “Haunted Spooks” (1920) trabalha com uma trama que soa ofensiva, por apresentar um homem branco que manda servos negros assombrem uma casa cheia de hóspedes, que acabam por não saber se o que os atormenta são fantasmas ou pessoas. Em certo ponto, uma criança branca fica extremamente assustada ao encontrar o filho de um dos criados.

Passando para as décadas de 1930 e 1940, há a necessidade de uma breve contextualização histórica. Naquele período, nada assustou mais a América branca como notar a superação em número de negros. E esse sentimento repercutiu na indústria, que produziu diversos filmes que exploravam o medo da “selvageria africana” e de costumes vistos pelos americanos como controversos, como o vodu. “King Kong” (1933) é uma dessas produções que são resultado do que os produtores daqueles anos acreditavam ser a África. O longa apresenta negros como primitivos violentos que sequestram mulheres brancas e adoram o primata gigante. Outro terror que segue a mesma premissa é “Lua Negra” (1934). Nele, é detalhado a prática acidental de uma mulher branca com o vodu. A protagonista acaba indo parar em uma ilha e sendo tratada como uma rainha por (advinha…) nativos negros selvagens. O conflito se dá na tentativa de como resgatá-la. Os habitantes da ilha quase não falam ou mostram personalidade, negando toda a qualquer possibilidade do aproximação público com as pessoas de pele escura. Nada é por acaso.

Nos anos seguintes, pouquíssimas mudanças relevantes. Em “O Filho de Drácula” (1943), nota-se um grande aumento de personagem negros, que contam também com linhas de diálogo. Contudo, são todos criados. Já em “O Espectro do Vampiro” (1945), clássico filme de monstro, diferencia-se dos demais por se passar em uma aldeia fictícia na África. E o que chama negativamente a atenção é a narração em off que prepara a audiência para o que será apresentado: “África: a terra escura onde os tambores de vodu batem à noite , onde as selvas são profundas e cheias de segredos, e a lua que as ilumina ainda é uma lua mística. África: onde os homens não se esqueceram do mal que aprenderam no alvorecer dos tempos“. Por mais críticas que o texto possa ter, nota-se uma pequena evolução, o uso da palavra homens ao se referir aos africanos, em vez de apelidos costumeiros como “primitivos” ou “selvagens“.

Por um bom tempo, a esmagadora maioria dos papéis destinados aos atores afro-americanos serviam apenas como uma morte irrelevante ou para garantir que as necessidades do personagem principal fossem atendidas. No próprio “Corra!“, a cena em que Chris afunda no chão e cai no Esquecimento serve de metáfora para esse ostracismo dos negros no cinema de terror. Um lembrete de que não importa o quão longe eles tenham chegado, ainda permanecem inferiores. É o afastamento da negritude em espaços brancos. Contudo, isso começou a mudar em 1968.

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Duane Jones e “A Noite dos Mortos-Vivos”

Citado por Peele como uma grande influência, “A Noite dos Mortos-Vivos” (1968), de George Romero, não só foi inovador em seus efeitos especiais, como também foi responsável pelas regras que viriam a guiar as modernas histórias de zumbis. Contudo, além das evoluções técnicas e narrativas, algo transformador no filme de Romero é que pela primeira vez que Hollywood havia escalado um ator negro para o papel principal em um filme de terror. Antes disso, os negros estavam relacionados a interpretar antagonistas sem personalidade ou ajudantes dos heróis brancos. O roteiro do longa segue a vida que Barbara (Judith O’Dea), que viaja com seu irmão para visitar o túmulo de seu pai. E quando o ataque de um morto-vivo no cemitério acaba matando seu irmão, ela decide por buscar abrigo em uma fazenda junto a outras pessoas, incluindo Ben (Duane Jones). Então, o grupo descobre que os corpos de pessoas recém mortas estão sendo reanimadas e entram em um conflito pela sobrevivência.

Jones, que deu vida ao protagonista Ben, era um ator afro-americano. E apesar de Romero sempre ter dito que não houve pretensão de discutir questões raciais – insistindo que Jones simplesmente se saiu melhor nas audições – não há como relevar este ponto. Pode, e deve-se, olhar para o clássico de terror, que estreou em meio ao movimento por Direitos Civis, protestos contra a Guerra do Vietnã e após seis meses do assassinato de Martin Luther King, com uma outra visão. Pois ao considerar as perspectivas raciais e a vivência diária com o racismo, entende-se o porquê de ser o homem negro, diante de um grupo de brancos, aquele a tomar as medidas que garantirão a sobrevivência dos demais. Ele está acostumado àquilo. Ironicamente, após resistir aos mortos-vivos, Ben morre baleado por um xerife branco.

Sem a escalação de Duane Jones em “A Noite dos Mortos-Vivos“, certamente o filme ainda se manteria como um grande choque inovador, muito porém, não teria atingido camadas culturais como atingiu. E embora Romero e sua produção não quisessem fazer um filme de terror de raça, eles acabaram por fazer escolhas cinematográficas que, pela configuração política da época, a interpretação racial se tornou inescapável.

As mudanças na representatividade

Apenas um ano depois do lançamento de “A Noite dos Mortos-Vivos”, o cinema francês apresentou aquele longa que ganharia um certo nível de notoriedade por seu conteúdo violento, “The Rape of the Vampire” (1968). O roteiro segue a Rainha dos Vampiros (Jacqueline Sieger) que deseja procriar uma raça inteira de vampiros enquanto toma medidas para esconder sua existência do mundo. O interessante deste filme B onde o vampirismo é causado por bactérias, é o fato de ser um dos raros filmes de terror a apresentar como antagonista uma mulher negra e gay. Outro com cara de filme B é a produção que conta com sapos assassinos, pôster e título pouco intimidadores, mas à frente de seu tempo, apresentando três personagens negros com desenvolvimento, relacionamento inter-racial e com espaço para discussão – mansa – de raça. Uau. Isso é “A Invasão das Rãs” (1972). A indústria estava atenta quanto as mudanças que ocorriam fora do mundo da ficção.

Outro lançado na mesma época e que recebe destaque, mas pelos motivos errados, é “Beware! The Blob” (1972). Sequência de “A Bolha Assassina” (1958), o filme ajudou a contribuir com uma das maiores lendas no tocante a representatividade no gênero de terror. O conceito de que a primeira vítima é, em grande parte, um personagem negro. Pois bem, este filme em particular vai além, tendo nas duas primeiras mortes papéis interpretados por negros. No caso, dois astros que estavam em ascensão na época, Marlene Clark e Godfrey Cambridge.

O movimento Blaxploitation no terror

Por meio da interseção entre identidade racial e estrutura narrativa em longas de terror, o movimento Blaxploitation produziu uma crítica potencial do racismo social e genérico, bem como uma variação significativa em como o gênero, até então, vinha expondo em tela a imagem do negro. Afinal, como ter um filme que conversa com os afro-americanos se toda a estrutura cinematográfica é branca? Aqui, cineastas, produtores, editores e roteiristas se não negros, entendiam a importância de não usar a raça como um marcador de preconceitos e maneirismos que, dada a época, chancelava o racismo. Vale dizer que não só no campo do cinema de terror, mas o Blaxploitation como um todo, ressignificou o negro como figura de protagonismo na sétima arte, tanto à frente das câmeras, como nos bastidores.

Não apenas por ser um dos primeiros e mais bem-sucedidos filmes do movimento, o icônico “Blácula, o Vampiro Negro”(1972) logo se tornou sinônimo de horror negro e por bons motivos. Embora tivesse limitações de orçamento, o longa é bom e consegue ser assustador. A trama segue o príncipe africano do século XVIII, Mamuwalde (William Marshall), que buscando pela liberdade de seu povo, viaja até a Trânsilvânia, onde pede ao Conde Drácula que não escravize os seus, e acaba por ser amaldiçoado. A partir daquele é momento, ele se torna um vampiro denominado Blácula.

Na tentativa de surfar no sucesso do anterior, foi lançado “Blackenstein” (1973). Nele, um veterano da guerra do Vietnã que perdeu seus braços e pernas aceita a ajuda de um sinistro cientista que promete recuperar parte do corpo do rapaz. Contudo, o procedimento não sai como esperado e ele acaba por se transformar em um monstro. Já um longa que foi na contramão e decidiu se apoiar em uma visão mais realista foi “Ganja & Hess” (1973). O roteiro se apoia na tentativa de dois vampiros tentando viver da forma mais normal possível, onde até se alimentar de bancos de sangue é uma opção. E justamente por não apostar em um festival de horror sangrento e voltar o diálogo e reflexões de sua dupla de protagonistas para questões acerca da revolução sexual e de movimentos pelos direitos civis, o filme se destaca dos demais.

Provando a diversidade de ideias, veio “A Fera Deve Morrer” (1974), no qual um milionário convoca oito pessoas ordinárias e os informa que um deles é um lobisomem. O ricaço ainda lhes propõe um desafio: descobrir qual dentre eles é a besta. O longa é a junção ideal de um filme de monstro ao maior estilo Agatha Christie. Outro que se destaca é “Lord Shango” (1975), que em sua proposta, retrata a relação entre espíritos, divindades a vida e a morte. Tudo tendo como plano de fundo um casal com uma filha que decide procurar a religião como via para permissão para ter uma outra criança. E para mostrar que por vezes um filme é tão ruim que se torna bom, “Bem-vindo de volta, irmão Charles” (1975) mostra a história de redenção de Charles (Marlo Monte), que é preso e quase castrado por um policial racista e em seu momento de reclusão, perde a sanidade, jurando vingança contra policiais, promotores e juízes.

Por fim, “O Monstro Sem Alma” (1976) não busca apenas satirizar o original “O Médico e o Monstro”. No longa, um cientista (Bernie Casey) desenvolve uma fórmula regeneradora de células humanas, e acaba por se colocar como cobaia do próprio experimento. Ele termina transformando em uma criatura albina e assassina. Além de contar com boas atuações, em especial do protagonista, o filme também utiliza a cor da pele como ironia e reviravolta para a história clássica, escrita em 1886.

O cenário pós Duane Jones e o Blaxploitation

Com o sucesso dos filmes de Blaxploitation, foi aberto o caminho para que rostos negros fossem incluídos nos grandes filmes e franquias. O que não necessariamente significava sobreviver até o final do longa ou ter um papel bem desenvolvido. Afinal, mais tempo na tela significava uma chance maior de morrer ou ser um personagem estereotipado. E é justamente o que alguns longas dessa geração sofrem.

Nos subgêneros de terror que dependem de cenas de mortes sangrentas, conhecidos como slashers – “Halloween” , “Sexta-Feira 13“,” A Hora do Pesadelo” e outros – qualquer personagem negro considerado grande o suficiente para ter um nome e uma linha de diálogo tem uma proporção maior a morrer. Na já citada franquia que tem como antagonista o mascarado Jason, por exemplo, 16 dos 19 personagens negros morrem. É claro que não é como se cineastas pensassem: “Ele é negro, então ele tem que morrer“. Mas como durante tanto tempo artistas afro-americanos foram sistematicamente relegados a nenhum papel, acaba que o dado passa a ser relevante.

Já sobre os estereótipos, existem vários que podem ser encontrados em Hollywood. O “Magical Negro“, por exemplo, é o conceito de quando um personagem negro só existe como apoio, isto é, ajudar seu companheiro branco na busca pela redenção, vitória ou sobrevivência. Em “O Iluminado“, para ilustrar, Dick Hallorann (Scatman Crothers) cumpre tal papel. Chefe de cozinha do Overlook Hotel, é ele quem recebe a família Torrance, além de orientar Danny no aprendizado de suas habilidades telepáticas e o alertá-lo para não entrar no quarto 237. No final, quando Dick tenta resgatar a família de Jack Torrance, o mesmo enlouquece, praticamente se sacrificando. Morte justificada e público aliviado pelos personagens principais (brancos). Carimbo de “Magical Negro”.

Outro dos estereótipos mais utilizados é o de melhor amigo. Basicamente, ele consiste em unicamente apoiar o personagem principal. Um exemplo é o do papel da atriz Elise Neal em “Pânico 2“. Aqui, ela interpreta Hallie, melhor amiga de Sidney (Neve Campbell) e formada em psicologia. E como diz a própria personagem em uma linha de diálogo, toda a sua função é ser uma terapeuta de Sidney. Além disso, há típico o “alívio cômico“, utilizado nos mais diversos filmes e por fim, o clichê máximo: matar o único personagem negro após o mesmo ser o primeiro a verificar o “barulho estranho” no local mais sombrio possível.

Foi no início década de 90, também, que foi produzido um remake de “A Noite dos Mortos-Vivos”. O longa conseguiu a proeza de manter a mesma sensação de terror solitário e isolado de seu original. Também se utilizou de efeitos especiais práticos de qualidade, e tem como trunfo a acertada escolha para o papel de Ben, anteriormente interpretado por Duane Jones, o ator Tony Todd. Ele veio a se tornar uma referência para uma nova geração do gênero, e viria a participar de diversos longas, entre eles está “O Mistério de Candyman” (1992), no qual desempenhou seu mais icônico trabalho. O personagem título talvez seja o que mais personifica terror negro. O homem afro-americano livre no século XIX que foi torturado por manter uma relação amorosa com uma mulher branca. Moderado, sedutor e com um gancho no lugar onde deveria estar a mão, Candyman ficou por muito tempo no imaginário coletivo do público.

A libertação do Esquecimento

Hoje, o status dos afro-americanos em filmes de terror está intrinsecamente ligado a forma como a indústria vê os afro-americanos no cinema como um todo. Isto é, foi percorrido um longo caminho desde os tribais ditos “selvagens” de “King Kong” até notar o aumento significativo de papéis destinados a negros, tendo por exemplo, filmes com protagonismo negro feminino, como “Extermínio” e “A Rainha dos Condenados“; produções atuais como“The Cloverfield Paradox”, “Melanie – A Última Esperança”, “Uma Noite com a Família Blacks“; e por fim, com Lupita Nyong’o e os demais atores negros em “Nós”. Mas ainda há avanços significativos a serem feitos no que diz respeito a uma parcela mais igual de papéis, com personagens de liderança que não são dependentes de estereótipos raciais.

Conclui-se que ao pensar na grandeza do poder do cinema como arte de se conectar às pessoas, entende-se o porquê de se celebrar a evolução dos papéis relacionado aos negros no terror. Ora, voltando a “Corra!“, quem não pensou que Chris seria preso com a chegada da viatura da polícia? Pois é, basta um protagonismo e um bom roteiro para que, por apenas duas horas, as pessoas saibam o que é se colocar no lugar de um negro. A empatia é um dos mais poderosos instrumentos do cinema.

Para complementar o assunto, não deixe de ouvir o Rapaduracast 553, onde foi abordada a história dos negros no cinema.

Raife Sales
@raife_sales

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