Cinema com Rapadura

Colunas   quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Filmes sobre viagens espaciais: uma aula sobre competência, insistência e resistência

Retratar a exploração cósmica é o símbolo perfeito para representar que o ser humano é capaz de tudo (ou quase). Isso é visível ao perceber que, antes de chegar à fronteira final, foi necessário superar a fronteira inicial: nossas próprias limitações.

A capacidade de superação do ser humano sempre será impressionante. Os feitos, as invenções, as conquistas… nada parece ser capaz de parar nossa obstinação. E a escalada parece não ter fim. Sobrevivemos às intempéries de terras selvagens, conquistamos todo nosso planeta, fomos aos lugares mais profundos, até que só restava um caminho para seguir: o espaço.

E mesmo o cosmos sendo um lugar muito mais “internacional” atualmente, vale destacar as conquistas russas com o Sputinik, Laika – ou Kudryavka – e Yuri Gagarin (além de muitas outras não tão conhecidas), passando aos astronautas americanos e o famigerado Programa Apollo, que culminou na chegada do homem ao nosso satélite natural. Este último ato, retratado desde os primórdios do cinema no “Viagem à Lua” de Méliès, será novamente trazido às telonas, agora pelo diretor Damien Chazelle (“La La Land”) com seu “O Primeiro Homem”. E aproveitando a estreia da cinebiografia, que traz Ryan Gosling no papel do icônico Neil Armstrong, o Cinema Com Rapadura se propôs a listar sete outros filmes sobre astronautas – ou cosmonautas -, exploração espacial e, principalmente, essa capacidade inata do ser humano de superar seus limites.

2001: Uma Odisseia no Espaço – da aurora do homem à além do infinito

Difícil não fazer uma associação imediata do tema com esta que, apesar de gerar as mais diversas sensações nos espectadores – da paixão à repulsa -, é certamente uma das obras mais marcantes do cinema mundial. Há quem diga que Stanley Kubrick nos deu um filme impossível de compreender. Mas o que é o cinema, senão a experiência de assisti-lo? E nesse quesito, é certo que quanto mais ativo e interessado se esteja ao embarcar na odisseia de Kubrick e Arthur C. Clarke, mais nuances da história serão percebidas e apreciadas.

O ato principal da história de enredo simples mostra os percalços de uma missão espacial de cinco astronautas ao planeta Júpiter. Controlando a nave, está o lendário computador HAL 9000, uma das máquinas mais conhecidas da sétima arte. Arrogante por considerar a si mesmo “infalível e incapaz de erro”, Hal se recusa a admitir que seus atos ocasionaram uma falha na espaçonave, preferindo perseguir os passageiros do que ter seu orgulho ferido.

De fato, o objetivo da obra não é mostrar a trajetória de personagens indo de A a B, muito menos retratar fielmente uma viagem espacial, pois por vezes flerta até mesmo com o surrealismo. O que Kubrick propõe com sua odisseia espacial, sempre mostrando mais do que falando, é um – talvez longo demais – momento de contemplação, de suposição e, acima de tudo, de reflexão. Um momento onde isso fica claro, apenas para citar, é o tão simples quanto genial match cut entre um osso que acaba de ser utilizado como arma/ferramenta e um satélite espacial, simbolizando a passagem de milhões de anos e representando a nossa (r)evolução humana.

Solaris – o infinito que está dentro de nós

Se “2001” busca mostrar e enaltecer, através de muitos planos descritivos, as convicções ocidentais de exploração espacial e avanço tecnológico, além de transcrever fortes sentimentos de descoberta e utopia, “Solaris”, como bom exemplar da Reversal Russa, representa o exato oposto. O diretor Andrei Tarkovski, adaptando uma obra antagônica não apenas do filme de Kubrick, mas do gênero ficção científica em sua totalidade, desconstrói totalmente o sentimento de grandeza difundido especialmente pela cultura americana. E, ao fazer isso, prega que o universo nada mais é do que um imenso vazio, nos restando apenas a solidão inexorável.

A trama aborda uma sequência de eventos aparentemente inexplicáveis ocorrendo um uma estação espacial soviética em órbita do planeta Solaris. Um misterioso oceano, que ocupa toda a extensão do astro, apresenta um mistério: ele é capaz de explorar a mente dos cosmonautas próximos e materializar suas memórias em criaturas vivas. Esses seres são limitados pelo conhecimentos que os cosmonautas têm dos “clonados”, e não podem ser eliminados, sempre retornando de tentativas frustradas de abatê-los.

Enquanto “2001” olha para o infinito (e além) e apresenta uma iluminação ao descrever o encontro do homem com seu criador, “Solaris”, niilista raiz como um bom russo, mostra o universo como um grande espelho, onde devemos olhar para dentro de nós para entender (ou não) o nosso propósito. Mesmo um reflexo das limitações orçamentárias e ideológicas, o longa também se diferencia ao trabalhar com o aparato tecnológico apenas de forma sugestiva, dando total ênfase ao que realmente importa. Com um final ambíguo e surpreendente, “Solaris” mostra a eterna peleja entre o homem e suas mentes: consciente, inconsciente e subconsciente.

Interestelar – quão maior é o “bem maior”?

Pendendo muito mais para o lado do “científica” do que para o “ficção”, o diretor Christopher Nolan entrega três horas de questões físicas, astronômicas e, sobretudo, antropológicas. Se em “Solaris” o objeto principal da trama era o interior humano, em “Interestelar” nos debruçamos em uma visão mais macroscópica, focada na sociedade. Apesar de toda maravilha que é a exploração espacial realista, cheia de inserções como buracos de minhoca e teoria da relatividade, o que vale de verdade são as reflexões sobre o homem como indivíduo e como espécie, e qual o limite de cada um desses pontos de vista.

A narrativa mostra que as reservas naturais do planeta Terra estão findando, e a população enfrenta uma forte escassez de comida. Para contornar o problema, será preciso abandonar a casa condenada e partir em busca de outro planeta para que a nossa espécie possa persistir. Para isto, um grupo de astronautas embarcam em uma jornada pelo desconhecido, com cada vez menos certeza que irão voltar para casa.

É interessante notar como cada ser responde de maneira diferente aos chamados sociais, especialmente em momentos de desprovimento e hostilidade. Você afirmaria com 100% de certeza se abriria mão de sua família e seu “mundinho” pelo “bem da espécie”? Pense bem, porque esta questão está longe de ser simples. Além disso, a obra acerta em cheio nossa essência ao retratar o momento pós-apocalíptico, contrastando esse medo de perder nossas pequenas coisas com a infinita imensidão do universo. Admirar os belíssimos takes de Hoyte Van Hoytema só reitera o quanto somos um monte de nada se comparados ao cosmos. Ainda que seja um filme longo, é bem possível que, depois de certo momento, a passagem do tempo seja imperceptível para você (<– piadinha).

Gravidade – nunca se entregar

Assim como em “Interestelar”, este projeto de Alfonso Cuarón é um show à parte nos quesitos técnicos e estéticos. Com planos que retratam maravilhosa e, até certo ponto, fielmente a imensidão do cosmos, parece até que o diretor de fotografia Emmanuel Lubezki levou todo seu equipamento até o espaço para registrar as melhores e mais impactantes imagens para o longa. Mas apesar de todos esse primor, o que realmente se destaca em “Gravidade” é sua simples e visceral história de agonia, angústia e, mais do que tudo, sobrevivência.

O longa mostra um grupo de astronautas realizando a instalação de novas peças no famoso telescópio Hubble. Tudo corria bem até que a equipe é alertada sobre uma nuvem de detritos em rota de colisão com eles. Rapidamente a missão sofre com os impactos, restando apenas à novata Dra. Ryan Stone (Sandra Bullock) e ao experiente Matt Kovalski (George Clooney) buscar uma forma de sobreviver, contando apenas um com o outro.

A obra é capaz de trabalhar perfeitamente com a perda e a esperança. A Dra. Stone é o retrato de como o ser humano é insignificante perante o universo mas, mesmo assim, agarra-se a qualquer chance que garanta sua sobrevivência. Ela, que já havia perdido sua filha, encontra-se em sua primeira missão espacial onde, acredite, qualquer pedrinha pode causar uma morte instantânea. E a sequência de fatalidades e tragédias pelas quais ela passa é capaz de exaurir até mesmo quem está apenas assistindo. Ainda assim, até quando ela já não aguentava mais e estava pronta para se entregar, uma fagulha de esperança se acende, e ela volta a acreditar em si. E o humano é um ser tão fascinante que ele mesmo pode acender essa fagulha.

Perdido em Marte – “eu me recuso a morrer”

Enquanto “Gravidade” mostra o instinto de sobrevivência rompendo limites, aqui o tema é trabalhado de forma diferente. Assim como o ímpeto humano é algo surpreendente, outras características nossas que saltam aos olhos são a cognição e a capacidade de adaptação. Nosso mundo é repleto de ambientes muito diferentes entre si, e mesmo assim nós estamos presentes em quase todo lugar onde existe terra seca. E essas habilidades certamente não seriam diferentes em outros planetas.

Quando uma missão à Marte é obrigada a abortar e evacuar devido à uma forte tempestade, um dos tripulantes, Mark Watney (Matt Damon), acaba sendo atingido por destroços. Contra todas as possibilidade (foi dado como morto e deixado para trás), ele sobrevive e passa a registrar seu dia a dia em vídeo enquanto aguarda a vinda da próxima missão, na tentativa de voltar para casa.

“Perdido em Marte” se mostra um instigante filme de encorajamento. É sobre usar suas habilidades e conhecimentos ao seu favor, e também sobre aliar perspicácia e capacidade de improvisação para contornar uma situação adversa. E mais: sobre ver o lado positivo das coisas, afinal, difícil imaginar outra forma de sobreviver absolutamente sozinho em um lugar como Marte. Todas essas competências, inatas ou não, se mostraram e ainda se mostram vitais para nossa constante evolução. Mas além disso, também é interessante notar como fica evidente a comoção geral em favor do resgate de Watney. Isso mostra que, apesar de toda a capacidade cognitiva e de amoldagem do ser humano, não seríamos o que somos – ou o que ainda podemos vir a ser – se não fosse nossa organização social, onde nossa premissa básica, pela qual todos lutam instintivamente, é a continuidade da espécie.

Alien, O Oitavo Passageiro – “no espaço, ninguém pode ouvir você gritar”

O terceiro exemplar seguido de “homem (ou mulher) perdido em um ambiente hostil (espaço)” aposta em concentrar o perigo no icônico Alien, deixando o espaço “apenas” como plano de fundo. Ao fazer isso, Ridley Scott (que também dirigiu “Perdido em Marte”) converge nossa foco à figura e desvia, de forma brilhante, nossa atenção do que realmente assusta: o que não se vê.

Diferente das missões de descoberta e reconhecimento, aqui o objetivo da missão da Nostromo é rebocar milhões de toneladas de minério para a Terra. Porém, a nave recebe uma transmissão estranha vinda de um asteroide e envia uma equipe para investigar o local. Até que um dos tripulantes é atacado por um ser misterioso, que acaba depositando o embrião de um alienígena no corpo da vítima. O “nascimento” dessa criatura altamente agressiva é apenas o início da incessante luta da tripulação pela sobrevivência.

Tão forte quanto a investida do Alien contra os ocupantes da Nostromo, foi o ataque de Ridley Scott aos nossos medos mais profundos. Não satisfeito em utilizar um organismo por si só assustador, o diretor o mantinha sempre no escuro, à espreita, esperando a oportunidade de atacar. E nós, mantidos reféns juntos da tripulação, dentro de uma nave tão apavorante quanto a própria situação, não podemos fazer nada a não ser ficar aterrorizados. É essa essência de terror psicológico que tanto fez falta nos filmes mais recentes da franquia. Quando não conhecemos ou não conseguimos explicar algo que nos dá medo, costumamos dar a isso uma forma, um nome, algo que o torne mais palpável e menos amedrontador. É fácil fazer isso com o Alien. Mas como fazê-lo com o silencioso vazio?

Lunar – uma mente sozinha tende à loucura

Embora seja comum a representação da solidão do Homem perante o universo, aqui, assim como em “Perdido em Marte”, vemos uma reprodução mais microscópica, mostrando um homem só em um ambiente inóspito, porém conhecido. Dessa forma, sentimentos como aquela leve angústia e aquele aperto no coração, gerados quando pensamos em por que estamos aqui, tornam-se bem mais críveis. Afinal, é fácil sentir a saudade quando se trata de um ente querido, ou a loucura depois de se passar muito tempo sozinho.

Enquanto Matt Damon ficou sozinho em Marte por conta de um acidente, aqui o ator Sam Rockwell dá vida a outro Sam, o Bell, que assina um contrato de três anos com uma empresa para ficar isolado no lado escuro da lua, tomando conta de uma operação mineradora. Sua única companhia: o calmo computador Gerty, visivelmente inspirado (porém longe de ser uma cópia) em HAL 9000. Cada dia mais ansioso para finalizar o contrato e retornar à sua família, acaba sofrendo com alguns delírios e um pequeno acidente, que faz o restante de sua estada ser atormentadora.

Quando boa parte das grandes produções vistas aqui apostam em expandir ao infinito, “Lunar” é singelo, arriscando suas fichas na simplicidade e originalidade. E assistir esta obra, que está muito mais alocado em uma categoria alternativa do que propriamente nos grandes blockbusters de Hollywood, é um belo exercício de “deveria ser do mesmo jeito se fosse comigo”. É intrigante perceber que, quanto mais expostos a um ambiente desfavorável, mas vamos nos tornando parecidos. Quando todo o universo está – ou parece estar – contra você, não existe esquerda nem direita, rico nem pobre, valente nem frouxo, etc. Na insana solidão, só existe instinto de sobrevivência. E ele é igual para todos.

Estes são apenas alguns exemplos (esperamos que você nos indique mais nos comentários), mas o importante é perceber que viagens espaciais são, acima de tudo, uma concreta manifestação da capacidade humana. Capacidade de persistir em um lugar que só apresenta hostilidades. Capacidade de encontrar as mais diversas brechas e ali se encaixar. Capacidade de buscar entender seu lugar e propósito no universo, mesmo que tudo aponte para a ausência deles. E, especialmente, a capacidade de superar seus próprios limites e os que mais lhes forem impostos.

Martinho Neto
@omeninomartinho

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