Cinema com Rapadura

Colunas   quarta-feira, 16 de maio de 2018

Conversando com o público: filmes que quebram a Quarta Parede

Este recurso narrativo, que possibilita um contato direto entre os personagens de um filme e os espectadores, é a ferramenta ideal para criar um vínculo de confidência entre os dois grupos.

Apesar de não se saber a origem exata, o termo “quarta parede” é originado das peças teatrais executadas na Idade Média e refere-se a uma parede imaginária, que separaria a ficção contada nos palcos (e, portanto, os atores presentes neles) do público. Quando uma narrativa “quebra a quarta parede”, englobando várias outras mídias além do teatro, tais como séries de TV, filmes, videogames e livros, a história estabelece um contato direto com o seu interlocutor. Com o uso do recurso, um ou mais personagens reconhecem que estão dentro de uma trama, que tudo aquilo que se passa “é de mentirinha” ou apenas uma encenação e, por isso mesmo, a prática é utilizada, na maioria das vezes, como ferramenta para criar humor e dinamizar a obra de outra forma.

No cinema, clássicos como “Psicose“, “Noivo Neurótico, Noiva Nervosa” e “Os Bons Companheiros” são apenas algumas das obras que utilizaram o recurso narrativo ao longo dos anos. Com a estreia de “Deadpool 2“, que promete reutilizar uma das características mais conhecidas do personagem (e que foi uma das chaves para o sucesso do longa de origem do anti-herói, em 2016), o Cinema com Rapadura lista algumas das produções cinematográficas que exploraram a quebra da quarta parede, reinventando a forma de se narrar uma trama e criando um laço único com os espectadores.

Curtindo a Vida Adoidado (1986)

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Uma das mais célebres comédias dos anos 1980 é, também, uma das melhores referências a quebra da quarta parede que se tem. Em seu último ano no ensino médio, Ferris Bueller (Matthew Broderick, da série “American Crime Story”), exímio matador de aula, quer aproveitar mais um dia ensolarado longe das salas de aula. Simulando que está doente, ele sai pelas ruas de Chicago ao lado de seu melhor amigo Cameron (Alan Ruck, de “Gringo: Vivo ou Morto”) e da namorada Sloane (Mia Sara, de “As Bruxas de Oz”), aproveitando o que a vida tem de melhor a se oferecer.

Não é apenas a qualidade do humor e da comédia, sobretudo a que rodeia o diretor Ed Rooney (Jeffrey Jones, de “Tudo Pela Honra do meu Pai”) – que tenta, de todas as formas, provar que Ferris está mentindo sobre seu estado de saúde -, que tornam o longa de John Hughes (“Clube dos Cinco”) o clássico que ele é. O sentimento de rebeldia de Ferris conquista o telespectador pela união de sua carisma com o recurso narrativo de quebrar a quarta parede, criando uma sensação de confidência entre o protagonista e o espectador, à medida em que ele explica a importância de se faltar a aula. Um ótimo trunfo do longa é posicionar, de forma precisa, os momentos mais dramáticos e pesados da trama, aproveitando-se para desenvolver os seus personagens e relações – além de melhorar as já boas atuações de Broderick e Ruck.

Quanto Mais Idiota Melhor (1992)

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A dupla de metaleiros Wayne (Myke Myers, de “Shrek para Sempre”) e Garth (Dana Carvey, de “Sandy Wexler”) apresentam um programa humorístico e alternativo de televisão, o “Wayne’s World’, com acesso público gratuito. Apesar do relativo sucesso, um ambicioso produtor, com intenção de explorar o trabalho da dupla, oferece para eles a chance do show ser transmitido por um grande canal comercial de TV, colocando-os em um mundo desconhecido, na qual suas personalidades e estilos não são tão bem vistos assim.

Tudo bem que o longa, baseado num quadro humorístico da série “Saturday Night Live”, pode não ser o mais lembrado do comediante Myke Myers. Às vezes, o humor e, principalmente, as caretas do ator, são forçados, mas a comédia tem seus bons momentos, conseguindo divertir. A produção apresenta algumas peculiaridades ao explorar a quebra da quarta parede, quando um outro personagem tenta conversar com o público, mas Wayne protesta, dizendo que “somente ele pode fazer isso” – evidenciando a “regra” não dita que apenas alguns personagens podem quebrar a quarta parede. O término do filme, explorando três finais distintos (o triste, o feliz e o super feliz) é outra artimanha para destacar o recurso narrativo, além da ótima sacada envolvendo o product placement de várias marcas, em uma das melhores sequências do longa.

Violência Gratuita (1997)

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Uma visita à casa de campo para uma período de férias calmo e tranquilo parecia o roteiro ideal para o casal George (Ulrich Mühe, de “Nemesis”) e Anna (Susanne Lothar, de “Anna Karenina”), acompanhados de seu filho, aproveitarem um tempo de descanso. Entretanto, durante a estadia, a família recebe a visita de dois jovens desconhecidos, que são muito mais perturbados do que aparentam. Dessa forma, o que era para ser uma viagem relaxante se transforma em um completo pesadelo.

O longa europeu, dirigido e roteirizado pelo austríaco Michael Haneke (“Amour”), arrebata o espectador por ser um terror psicológico que incomoda tanto como “Oldboy” ou “Corra!”, apresentando uma situação perturbadora e que é assustadoramente fácil de acontecer. A tensão da obra é reforçada por estratégias da direção, como o uso da câmera estática, da movimentação limitada da câmera dentro dos ambientes internos, da exposição crua da violência e humilhação sofrida pela família e da escassez de luz em várias cenas, ocultando a face dos personagens, sobretudo dos jovens antagonistas. A grande sacada de Haneke, contudo, é o uso da quebra da quarta parede ser feito não pelos protagonistas, mas pelos vilões. A estratégia é utilizada em momentos pontuais do longa, mas é o suficiente para construir uma desconfortável relação de cumplicidade entre o espectador e os criminosos da obra. Em 2007, o filme ganhou um remake americano, com Naomi Watts (“O Castelo de Vidro”) e Tim Roth (“Os Oito Odiados”), e que foi dirigido pelo próprio Haneke.

Clube da Luta (1999)

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Jack (Edward Norton, de “Beleza Oculta“) é um homem deprimido que, apesar de levar uma vida confortável como investigador de seguros e ter um apartamento aconchegante, se vê cada vez mais desiludido com o padrão medíocre de sua vida. Para piorar, ele ainda enfrenta graves crises de insônia, encontrando a “cura” para o problema em grupos de autoajuda. É durante essa rotina que ele encontra outras pessoas problemáticas, como Marla (Helena Boham Carter, de “Alice Através do Espelho“), e conhece o misterioso Tyler Durden (Brad Pitt, de “War Machine“), um homem cheio de ideias que o convida a criar um rígido grupo, na qual homens podem lutar entre si e, assim, terem a chance de extravasarem as tensões e angústias do dia a dia.

Nos últimos 20 anos, poucos foram os filmes que se tornaram tão cultuados quanto o longa dirigido por David Fincher (“Garota Exemplar“). Adaptando a obra homônima de Chuck Palahniuk, o roteiro demonstra esmero ao apresentar e desenvolver temas como a crítica ao consumismo exagerado da sociedade, ao domínio das grandes corporações e a crise da masculinidade e do que significa “ser um homem”, ao mesmo tempo que desenvolve seus protagonistas e suas relações, vitais para a condução da obra. A ambientação proposta por Fincher resulta em um longa envolvente, que consegue ser visceral e catártico para além das cenas de luta. Muito do mérito disso esta no caráter metalinguístico que a obra apresenta por meio da quebra da quarta parede, como quando surgem as “marcas de cigarro” no topo direito da tela ou com a inserção de frames com um pênis no decorrer da projeção – brincadeiras e aspectos de um longa metragem que são explicados por Durden, um ex-editor de filmes. O grande plot twist serve para coroar uma das raras produções que não apenas se iguala ao material original, mas mesmo a supera.

A Nova Onda do Imperador (2000)

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Kuzco é um jovem imperador que tem tudo que quer, com todas as suas exigências prontamente atendidas e desfrutando de uma vida de rei (literalmente). Após ser demitida pelo regente, Yzma, sua ex-conselheira real, decide armar um plano para assassinar Kuzco, com a ajuda de seu serviçal, Kronk. Entretanto, ao invés de dar o veneno para o imperador, a dupla acaba transformando Kuzco em uma lhama, o que faz com que ele vá para longe da cidade imperial e entre em uma jornada de aprendizado ao lado de Pacha, um aldeão do império.

A animação da Disney pode até não ser uma das mais lembradas do estúdio, mas é uma dos poucos desenhos que explora o recurso – o que é até um tanto estranho, visto que o formato poderia utilizar a conversa com o público de diversas maneiras interessantes, como os cartoons da década de 40 e 50 já demonstraram. O uso não é extensivo, mas é o suficiente para dinamizar a animação e torná-la mais engraçada. A história apresenta um roteiro cheio de clichês, mas isso não torna-se necessariamente um problema. Apesar de sua arrogância e mesquinhez, que o deixam chato, a excentricidade do protagonista é a característica que o ajuda a ser mais carismático, com sua dinâmica com Pacha funcionando e conseguindo carregar o filme. Yzma está longe de ser uma das maiores vilãs da Disney, mas Kronk é um dos melhores sidekicks de vilão que o estúdio já teve, responsável por vários dos momentos mais cômicos da obra. Por fim, aplausos para a dublagem, encabeçada por Selton Mello, Marieta Severo e Guilherme Briggs, e que tornam a obra ainda mais divertida.

O Lobo de Wall Street (2014)

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O longa do diretor Martin Scorsese (“Silêncio”) entra de cabeça no mundo de drogas, bebidas, gastos descontrolados e crimes que o corretor Jordan Belfort (Leonardo DiCaprio, de “O Regresso”) proporcionou na vida real, enquanto geria a sua própria firma de corretores em Wall Street. A trama acompanha toda a ascensão de Belfort, ao lado do sócio Donnie Azoff (Jonah Hill, de “Cães de Guerra”), construindo um império e tornando-se um dos maiores nomes da Bolsa de Valores de Nova York, até a derrocada de seus esquemas, resultando em sua prisão.

O longa parece ter sido feito sob as diretrizes de valorizar a esbórnia, o deboche e o escárnio que toda a situação envolvendo a vida de Belfort invocava, em uma das obra mais distintas e divertidas da carreira recente de Scorsese. As três horas de duração (o que talvez seja um pouco demais) são preenchidas por um turbilhão de acontecimentos, com ritmo frenético e desenfreado mas que, quando tem que parar para tomar algum fôlego, acaba ficando lento demais. A atuação de DiCaprio, que cria um protagonista para lá de carismático (algo que a quebra da quarta parede só potencializa, tornando ele e o público ainda mais próximos), é um dos pontos altos da produção, em um de seus melhores trabalhos, na qual ele merecia o Oscar muito mais do que pela sua atuação de “O Regresso” – como não achar brilhante a cena dele se arrastando, drogado, para chegar no carro?!

A Grande Aposta (2016)

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A crise imobiliária que abalou a economia dos EUA e do mundo em 2008 ganha ares de tragicomédia no longa do diretor Adam McKay (“Tudo por um Furo”). Adaptando o livro de Michael Lewis, o filme mostra como alguns investidores, com visões de mundo distintas, previram o tamanho do desastre que Wall Street enfrentaria, com cada um deles enxergando – e se aproveitando – da situação de uma forma diferente.

A produção levou para casa o prêmio de Melhor Roteiro Adaptado, mas deve ser lembrada para além disso. A edição, indicada ao Oscar daquele ano, é eficiente e dinâmica, alternando entre os três principais núcleos da obra de maneira ágil e envolvente. O roteiro apresenta um tom sério e explicativo – por vezes, até demais, já que há o uso de vários termos técnicos do meio de economia -, mas esse lado é muito bem misturado com uma faceta cômica arrojada, ácida e peculiar, que lembra o humor presente nos filmes dos irmãos Coen (“Ave, César!”). Momentos em que há a quebra da quarta parede, como a da atriz Margot Robbie (“Eu, Tonya”) dando uma aula de economia dentro de uma banheira enquanto degusta um champagne, servem para reforçar essa boa qualidade da produção. Coroando a obra, a grande atuação de Steve Carell (“Guerra dos Sexos”), no que deve ser um dos melhores trabalhos da sua carreira.

Eu, Tonya (2018)

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Já é possível criar uma lista de filmes que envolvem Margot Robbie e a quebra da quarta parede, pois “Eu, Tonya” é o mais novo longa a ter a atriz e explorar a técnica. A produção narra a história da ex-patinadora de gelo Tonya Harding (Robbie), que na década de 1990, era uma das maiores esperanças dos EUA para a conquista do ouro olímpico dos Jogos de Inverno no esporte. A atleta enfrentou uma infância pobre e cheia de abusos antes de se tornar uma das melhores da categoria. A sua meteórica carreira, contudo, desmoronou após o episódio da lesão da também patinadora Nancy Kerrigan (Caitlin Carver, da série “Cara Gente Branca“), arquitetado por Tonya e seu marido, Jeff (Sebastian Stan, de “Vingadores: Guerra Infinita“).

Mistura de drama com mockumentary (subgênero de ficção em que é simulado a narrativa e a estrutura de um documentário, porem falso), a produção, indicada a três Oscars neste ano, é mais uma obra que te coloca do lado vilões, assim como “Lobo de Wall Street”, mas que o roteiro é pensado para que você, de certa forma, até torça por eles. O texto contrasta as atitudes injustificáveis de Tonya com sua sofrida história de vida, passando de um relacionamento conturbado e opressivo ao lado da mãe, LaVona (Allison Janney, de “A Garota no Trem“) até a relação abusiva com o marido. O tom pesado do longa é reforçado pelo humor, muitas vezes macabro, que são os momentos mais comuns para a quebra da quarta parede. As ótimas atuações de Robbie, Stan (um babaca que você detesta do começo ao fim) e de Janney, que levou a estatueta de Melhor Atriz Coadjuvante para casa, são os elementos cruciais que tornam o filme marcante.

Teve alguma outra produção que você lembre que utilizou muito bem a quebra da quarta parede e ficou de fora? Deixe sua opinião nos comentários e ajude-nos a incrementar a lista!

Luís Gustavo
@louisgustavo_

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