Cinema com Rapadura

Colunas   terça-feira, 27 de março de 2018

Jogador Nº 1 e a internet na era virtual

Com uma obra original leve porém cheia de boas intenções, o longa pode ser capaz de refletir toda a sociedade atual em que vivemos, premissa clássica da ficção científica.

Em um passeio de sábado pelo shopping podemos ver vários estandes e lojas onde clientes podem experimentar dispositivos de realidade virtual. Há até quem já os tenha em boa qualidade em casa. Pesquisa e desenvolvimento nesta área não para de crescer, com avanços frequentes. Essa foi uma das ondas nas quais surfou o autor norte-americano Ernest Cline, que em 2011 publicou seu romance de estreia “Jogador Nº 1“; a outra foi a nostalgia dos anos 1980 – a chamada “década perdida” -, como se ela não tivesse sido aproveitada o suficiente em meio às paranoias políticas da época. Ainda não havia “Stranger Things” ou o remake de “It – A Coisa“, videogames legais eram apenas os de última geração e a banda Rush tinha seu alcance restrito aos fãs de rock (apesar de sempre ter sido genial, que fique claro!).

Cline se baseou então no nosso mundo para criar um lugar onde é possível viver essa nostalgia, bastando apenas usar um óculos de realidade virtual. Em 2011, seu livro foi imediatamente para a lista de mais vendidos em diversas partes do mundo após o lançamento. E em 2015 foi anunciado que o lendário cineasta (e responsável por grande parte da imensidão de referências presente na trama original) Steven Spielberg dirigiria a adaptação da obra para as telonas. Para te ajudar a navegar neste meio, o Cinema Com Rapadura preparou um guia com os principais temas e elementos presentes na trama.

Em 2044, a Terra está esgotada. A grande maioria dos recursos naturais foi explorada à exaustão, o aquecimento global passou a causar variações climáticas quase que imprevisíveis e a superpopulação ao redor do globo gerou um caos socioeconômico, com índices estratosféricos de desemprego e população em miséria. Sem espaço no mundo real, as pessoas se voltaram então ao virtual, o OASIS. Criado pelo excêntrico James Halliday (Mark Rylance, de “Dunkirk“), a simulação funciona, na prática, como um MMORPG (Massive Multiplayer Online Role Playing Game“): o utilizador cria um avatar da forma que quiser e pode circular por diversos ambientes e mundo virtuais, interagindo em tempo real com outros usuários. Mas ao contrário do ambiente de jogos, no OASIS são oferecidos diversos serviços públicos e particulares até mesmo do mundo real, como escolas, empregos remunerados em moeda corrente, etc. Isso tudo destinado a um usuário que pode passar o dia inteiro sentado no sofá de casa.

Ainda que seja democrático e permita livre concorrência entre os serviços oferecidos e, além de não cobrar nada de seus usuários, não estamos falando de um espaço público. A administração do OASIS é monopólio da Gregarious Simulation Systems (GSS), empresa criada por Halliday junto a seu parceiro Ogden Morrow (Simon Pegg, de “Star Trek: Sem Fronteiras“) – em uma clara alusão aos Steves (Jobs e Wozniak), fundadores da Apple -, e, ainda que tenha um alto custo de manutenção, gera lucros imensos. Em um mundo que foi explorado e exaurido até exceder os limites, o OASIS não é mais apenas um ambiente virtual para interações sociais: é o último grande recurso financeiro.

A trama começa quando Halliday morre, publicando automaticamente em seguida um vídeo onde ele explica a existência de um easter egg no ambiente virtual. Quem encontrá-lo receberá o controle da GSS e, consequentemente, de todo o OASIS. Devido à sua paixão pela cultura pop da década de 1980, quem se dedica à busca acredita que as pistas estarão todas relacionadas a filmes e jogos do período, fazendo surgir uma febre de referências dentro de todo aquele universo virtual.

Usuários passam a customizar seus avatares de acordo com a moda vigente em uma década passada há mais de 60 anos; a-ha, The Cure, Van Halen e diversas outras bandas voltam às paradas musicais; veículos icônicos como o DeLorean de “De Volta Para o Futuro“, a Millennium Falcon de “Star Wars” e vários outros viram vista corriqueira. Os caçadores do easter egg de Halliday (“caça-ovos”, na gíria do livro) passam a documentar suas jornadas e descobertas em seus próprios canais dentro do OASIS. Empresas de tecnologia – como a Innovative Online Industries (IOI) – mobilizam setores inteiros para tentar encontrá-lo e lucrar em cima do controle deste que é o único lugar onde a vida ainda tem algum significado para a maioria das pessoas.

Apesar da extravagância de cultura pop anunciada nos primeiros relatos e nos trailers de “Jogador Nº 1”, este é um filme que tem muito mais a oferecer do que apenas uma boa aventura e referências a filmes, músicas e jogos – em muito, é um retrato da sociedade atual e do mundo em que vivemos. Talvez Cline ainda não tivesse ideia do quão similar o OASIS seria ao nosso contexto presente, mas um dos preceitos da ficção científica em suas diversas formas é a criação de cenários futurísticos com base na possível evolução social e tecnológica do presente, e em diversos aspectos ele antecipou o modo de vida que levaríamos e algumas das lutas que veríamos ser travadas, só que em situações diferentes do que às portas do Castelo Anorak – domínio de James Halliday no ambiente virtual.

Assim como o OASIS, a nossa internet é uma das formas mais empregadas atualmente de geração de lucro. Ainda não entendemos por completo quais são as fronteiras e os limites da rede mundial de computadores, ou até onde se estendem suas capacidades e possibilidades; em seu respectivo universo, o mesmo pode ser dito da criação de Halliday. No entanto, já existem diversas formas de se criar riqueza através dela – da simplicidade de vendas online até a complexidade das criptomoedas. Grandes corporações e cidadãos comuns disputam espaço e promovem inovações constantes, enquanto governos nacionais ainda tateiam as melhores formas de impor controle e regulamentação ao domínio virtual.

Nos Estados Unidos, o conselho federal de comunicações se prepara para impor barreiras que derrubariam a chamada “neutralidade de rede”, limitando o acesso e o consumo de dados dos usuários e favorecendo as empresas do ramo que forneçam acesso à internet (modelo já empregado em países como Portugal, por exemplo). Redes sociais e serviços online mantêm os dados de seus usuários, gerando polêmicas acerca do limite da privacidade para quem os utiliza – recentemente se tornando até um capítulo do embróglio relativo à eleição do presidente Donald Trump, cuja campanha fez largo uso de estratégias de marketing virtual.

Saindo do nível internacional e passando para o individual, no mundo todo temos cada vez mais pessoas se dedicando ao registro de suas atividades cotidianas e compartilhando o que fazem em redes sociais. Há até uma profissão que surge neste contexto: os youtubers. Mas seriam eles tão diferentes assim dos caça-ovos do universo de “Jogador Nº 1”, que também têm seus próprios canais de compartilhamento de vídeos e registros? Independente do que for, todos que se aventuram neste meio o fazem com algo em mente – de sucesso a apenas impressionar um crush. Mais ou menos como os caça-ovos em busca do easter egg de James Halliday, não?

Olhando agora para a sociedade, a evolução tecnológica promove constantemente a quebra de barreiras e fronteiras entre países e povos, aproximando as pessoas e favorecendo o surgimento de uma cultura global baseada no intercâmbio de influências e experiências que antes ficariam limitadas apenas a seus locais de origem. Essa é apenas uma das manifestações do processo de globalização. A partir daí que se torna possível, por exemplo, que jovens no Japão se engajem na cultura youtuber – ou se tornem caça-ovos, dependendo de qual universo estivermos olhando – enquanto ocidentais consomem vorazmente animes e mangás.

O protagonista Wade Watts (Tye Sheridan, de “X-Men: Apocalipse“), seria a incorporação desta sociedade: um jovem órfão, crescido em meio à pobreza de um mundo superpovoado e ao bombardeio constante de novas informações, que mora no trailer de sua tia e vai à escola através do OASIS – onde se baseia agora o sistema educacional público. Quando teve início a busca pelo easter egg de Halliday, ele imediatamente se engajou, ainda que sendo um caça-ovos independente e sem muitos recursos que o ajudem a incrementar seu avatar, Parzival. Sua imersão na cultura da década de 1980 se deu de tal forma que ele consegue recitar cenas inteiras até de filmes mais obscuros, como “Jogos de Guerra” e “O Feitiço de Áquila“, por exemplo.

Wade é apenas um dos personagens nesta busca, no entanto. Ser um caça-ovos sem o conhecimento de cada detalhe da cultura pop dos anos 1980 é estar fora da disputa, ou fazê-la por hobby – existem empresas inteiras se mobilizando para isso, como a própria IOI do vilão Nolan Sorrento (Ben Mendelsohn, de “O Destino de uma Nação“), o que deixa a luta desigual.

Mas enquanto o foco do livro está na “década perdida”, no filme de Spielberg teremos muito mais referências, expandindo o recorte temporal para os dias atuais (que em 2044 já estarão quase três décadas no passado). Nos trailers mais recentes, vimos desde o Gigante de Ferro até personagens do jogo “Overwatch“; de King Kong até a motocicleta de “Akira“. Listar apenas as referências em um filme como “Jogador Nº 1” é quase impossível. Este é um longa que continuará a entregar detalhes não descobertos anos após seu lançamento. Com uma história tão rica e tão cheia de acenos à nossas próprias vidas e lutas, seria um desperdício nos dedicarmos apenas a procurar personagens em uma multidão e ignorarmos todo o pano de fundo que esta obra nos proporcionará.

Julio Bardini
@juliob09

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