Cinema com Rapadura

Colunas   sexta-feira, 03 de fevereiro de 2012

Livros: Precisamos Falar Sobre o Kevin é eloquente e perturbador

Lionel Shriver usa uma narrativa caudalosa para bombardear o leitor com fatos que buscam responder apenas uma pergunta: quando tudo acaba mal de quem é a culpa?

A base da humanidade, segundo a Bíblia e a Igreja, é a família. Sem a família, seu fundamento principal e para onde todos nós corremos em uma hora de precisão, o mundo estaria perdido. Não se podem criar pessoas sem pai e mãe, afinal de contas todos nós viemos de algum lugar, por mais que alguns pais e algumas mães desistam da missão no meio do caminho. Seja por inexperiência ou por não terem mesmo nenhuma vocação para uma tarefa que deveria ser tão natural.

Eva Khatchadourian não desistiu no meio do caminho e é exatamente por isso, vivendo sozinha em uma casa duplex precária e evitando o convívio social ao máximo, que ela se pergunta todos os dias onde foi que errou na criação de Kevin. Tentando achar respostas para compreender como tudo chegou ao ponto em que está, ela escreve cartas diárias ao marido relembrando o começo do casamento, as reuniões com os amigos e como, do mesmo modo como todos começaram a casar, todos começaram a ter filhos. Menos eles.

O assunto era discutido e remexido frequentemente por Franklin, o marido amoroso e compreensivo, enquanto Eva se perguntava quando o tão famoso chamado da maternidade viria.  Mas não veio. E mesmo sem ter essa indicação, Kevin veio ao mundo em 1984. Saudável, mas uma criança um tanto peculiar. Não por vontade dela, mas para satisfazer a paternidade do marido que estava gritando por uma criança.

Kevin desde muito cedo demonstrou não ser uma criança comum. Não parava de chorar, demorou a pronunciar as primeiras palavras e levou mais de oito anos usando fralda. Foi por isso que aconteceu um dos primeiros incidentes entre ele e Eva. A mãe, muito contrariada pelo filho sujar a fralda na mesma hora em que era trocada, acaba se descontrolando e o joga com muita força na mesinha onde costuma trocar a fralda, o que acaba fazendo com que ele caia e quebre o braço.

Enquanto outros garotos se interessavam por brincadeiras inocentes, Kevin se interessou por praticar arco e flecha. Em meio a toda essa atmosfera de amor e ódio entre mãe e filho, nasce a irmã caçula, Célia, a quem Kevin dedica uma atenção especial em atormentar, ferir e assustar a todo custo. Eva descreve a filha, em uma das cartas, como sendo muito inocente por acreditar sempre no irmão e por esquecer, ou perdoar facilmente, tudo o que ele era capaz de fazer contra ela. Em um dos episódios narrados por ela, Kevin colocou filhotes de lagartas na bolsa da irmã, que foi para a escola sem desconfiar de nada. Ao abrir a bolsa, as lagartas estavam nos livros, no estojo e começavam a subir pelo seu braço, quando uma coleguinha gritou chamando a atenção da professora que veio em socorro das alunas.

Mas esse foi de longe o mais leve episódio envolvendo os dois. Eva nunca vai esquecer aquela segunda-feira, quando no trabalho, recebeu uma ligação de Franklin pedindo para que ela dirigisse com cuidado, que Célia estava no hospital e que tudo ficaria bem. Mas não ficou. Como resultado do incidente em casa, que ela mesma não conseguiu entender como ocorreu, a sua filha, aquele pedacinho de gente que acreditava em todos, tinha perdido um olho e a única certeza de Eva era que Kevin tinha alguma coisa a ver com isso.

Apenas uma vez, Eva se lembra do filho ter se comportado de uma maneira normal. Foi aos dez anos, quando pegou uma gripe e passou dez dias de cama. Somente naquela situação ele aparentou ser uma criança comum, pedindo colo, deixando ser cuidado, não tendo nenhuma reação mal criada, mas ao final de dez dias lá estava de novo, aquele sorriso enviesado de volta ao rosto. Um meio sorriso de desprezo. Um lembrete de quem ele realmente era e do que era capaz.

As atitudes de Kevin apenas pioravam a cada dia, enquanto Célia tentava levar uma vida normal, com uma prótese no lugar do olho. Kevin demonstrava cada vez mais um comportamento duvidoso, seja pendurando a irmã em um galho de árvore e deixando-a lá ou arremessando tijolos contra carros em movimentos na rua. Enquanto Célia encanta os amigos, Kevin consegue deixar a atmosfera de qualquer ambiente tensa. Do comportamento arredio em casa para os acontecimentos que levaram ao isolamento de Eva bastaram apenas alguns passos e uma boa mira. Naquela quinta-feira, como Eva costuma se referir ao dia, Kevin havia matado na escola, com seu arco e flecha do qual se orgulhava tanto, sete colegas e dois professores. Saber desde o início o que Kevin fez não tira o mérito do final estarrecedor que Shriver conseguiu dar a sua história.

No livro “Precisamos Falar Sobre o Kevin”, Lionel Shriver faz uma reflexão sobre a criação de um filho e a pergunta que todos nós sempre fazemos quando algo dá errado: as atitudes de um filho são realmente consequência da criação dada pelos pais ou é algo que já nasce com a criança e vai se desenvolvendo ao longo da vida? A culpa é de quem? Do estado? Eva vai nos fazer refletir sobre tudo isso enquanto ainda tenta ser uma boa mãe para Kevin, visitando-o no presídio em que cumpre pena e tendo de ouvir a cada duas semanas um: eu odeio você.

O longa baseado na obra de Shriver conta em seu elenco com Tilda Swinton (“O Curioso Caso de Benjamin Button”) no papel de Eva, John C. Reilly (“Gangues de Nova York”) como Franklin e Ezra Miler (“Confusões em Família”) como Kevin. O filme levou o prêmio de Melhor Filme no Festival de Londres, mas não participa da corrida pelo Oscar, mesmo após a elogiada performance de Swinton. A produção, dirigida por Lynne Ramsay, está atualmente em cartaz nos cinemas nacionais.

Leilane Soares
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