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Notícias   terça-feira, 05 de novembro de 2019

Em coluna, Martin Scorsese defende seu ponto de vista de que filmes da Marvel não são cinema

O diretor escreveu para o jornal New York Times e tentou esclarecer suas recentes declarações sobre o estúdio.

Em coluna, Martin Scorsese defende seu ponto de vista de que filmes da Marvel não são cinema>

Em outubro deste ano, o diretor Martin Scorsese (“Silêncio”) foi o responsável por uma das declarações mais polêmicas do mundo do entretenimento, ao afirmar que os filmes da Marvel Studios não são cinema“. As reações foram inúmeras, com o diretor Francis Ford Coppola (“O Poderoso Chefão”) defendendo o cineasta, enquanto o CEO da Disney, Bob Iger, ficou do lado do estúdio. A repercussão foi tamanha, que o próprio Scorsese precisou ir à público reiterar seu ponto de vista e agora, novamente, o diretor se manifestou, dessa vez por meio de uma coluna do jornal New York Times, em uma nova tentativa de esclarecer suas opiniões.

Segundo ele, os filmes de grandes franquias – como os da Marvel – são realizados por artistas talentosos, e não o interessam por uma questão de “gosto pessoal e temperamento“. Ele também afirmou que, se fosse mais novo, talvez até “poderia querer fazer um desses filmes“, mas que já é mais velho e por isso, desenvolveu um senso de cinema que “está tão distante do universo Marvel quanto a Terra está distante do sistema solar Alpha Centauri“.

Scorsese ainda complementou esse raciocínio, comparando os blockbusters de hoje com o cinema de sua época:

Para mim, para os cineastas que eu aprendi a amar e respeitar, para meus amigos que começaram a fazer filmes na mesma época que eu, o cinema era sobre revelação – revelação estética, emocional e espiritual. Tratava-se de personagens – a complexidade das pessoas e suas naturezas contraditórias e, às vezes, paradoxais – a maneira como elas podem se machucar e se amar e, de repente, ficar cara a cara com si mesmas. Era sobre enfrentar o inesperado na tela e na vida que o cinema dramatizava e interpretava, além de ampliar o sentido do que era possível na forma de arte.”

Para o diretor, ele e seus amigos defendiam que o cinema era uma forma de arte, tal como a literatura, a música e a dança, citando alguns exemplos de filmes que representam essa visão, como “Capacete de Aço”, de Sam Fuller, “Quando Duas Mulheres Pecam“, de Ingmar Bergman, e “Viver a Vida”, de Jean-Luc Godard. Na opinião dele, os filmes de Alfred Hitchcock eram como franquias do público, uma vez que cada novo longa era um evento próprio e criava uma química única entre o público e a obra.

Ainda sobre os filmes de Hitchcock, Scorsese afirma que eles eram como “parques temáticos“, nos quais as pessoas iam para serem surpreendidas e emocionadas:

“Sessenta ou setenta anos depois, nós ainda estamos assistindo esses mesmos filmes e nos maravilhando com eles. Mas será que a razão para isso são as surpresas e emoções? Eu acho que não. Os cenários em ‘Intriga Internacional’ são deslumbrantes, mas eles não seriam nada se não fosse pela sucessão de composições e cortes dinâmicos e elegantes, ou pelas emoções dolorosas do roteiro, ou pela absoluta perdição do personagem de Cary Grant.”

Sobre as experiências únicas de cada filme e como isso se aplica nos dias atuais, ele complementa:

“Algumas pessoas dizem que os filmes do Hitchcock possuem uma certa similaridade entre si, e talvez isso seja verdade – o próprio Hitchcock especulava isso. Mas isso é completamente diferente da similaridade das franquias atuais. Vários dos elementos que definem o que é cinema estão presentes nos longas da Marvel. O que não está presente é a revelação, o mistério ou o genuíno perigo emocional. Nada está em risco. Os filmes são feitos para satisfazer uma demanda bastante específica, e são pensados como variações de um número finito de temas.

Eles são sequências em seu título, mas são apenas remakes em seus espíritos, e tudo neles é oficialmente aprovado, porque não existe outro caminho. Essa é a natureza dos filmes de franquia modernos: pesquisadas pelo mercado, testadas pelo público, examinadas, modificadas, reexaminadas, e modificadas novamente até que estejam prontas para o consumo.”

Em uma nova comparação, dessa vez com obras mais contemporâneas, Scorsese opina que as grandes franquias são tudo o que filmes de Paul Thomas Anderson, Spike Lee, Ari Aster ou Wes Anderson não são. Segundo ele, a experiência de assistir a um longa de qualquer um desses cineastas leva sempre a caminhos novos e inesperados, e isso levaria novos limites sobre o que é possível contar dentro do cinema. Ele continua:

“Dito isso, você deve se perguntar, qual o meu problema? Por que não somente deixar que filmes de super-heróis e outras franquias sejam o que eles são? O motivo é simples. Em vários locais do país e do mundo, esses longas são a primeira opção daqueles que querem assistir algo no cinema. É uma época bastante arriscada para produzir e exibir filmes, e ao mesmo tempo, nunca existiram tão poucos cinemas independentes quanto hoje. As coisas se inverteram e hoje o streaming se tornou a principal forma de distribuição. Mesmo assim, eu não conheço um único cineasta que não queira produzir filmes para as telonas, para ser projetado para uma audiência em um cinema.”

Scorsese, que recentemente dirigiu “O Irlandês” para a Netflix, também falou sobre os serviços de streaming e como isso afeta a indústria do cinema. Para ele, uma coisa leva a outra, ou seja, como são cada vez mais ofertados somente um tipo de filme, apenas esse filme vende e as pessoas vão querer ver mais desse filme. E isso leva as demais obras para o streaming, local que, segundo ele, não é onde os longas foram feitos para serem vistos. Ele complementa:

“Nos últimos 20 anos, como todos sabemos, a indústria do cinema mudou em todos os aspectos. Mas a mudança mais sinistra aconteceu sorrateiramente e camuflada: a gradual, porém constante, eliminação do risco. Muitos filmes atuais são produtos perfeitos, produzidos para consumo imediato. Muitos deles são muito bem feitos por um time de indivíduos talentosos. Mas ao mesmo tempo, lhes falta um aspecto essencial do cinema: a visão unificada de um artista individual. Porque, é claro, o artista individual é o fator mais arriscado de todos.”

O diretor finaliza seu raciocínio de maneira bastante pessimista, temendo pelo futuro da criatividade dos filmes e da busca incessante da indústria pelo lucro:

“Hoje, essa tensão se foi, e há algumas pessoas na indústria com absoluta indiferença à própria questão da arte e com uma atitude em relação à história do cinema que é ao mesmo tempo desdenhosa e proprietária – uma combinação letal. Infelizmente, a situação é que agora temos dois campos distintos: há entretenimento audiovisual mundial, e há cinema. Eles ainda se sobrepõem de tempos em tempos, mas isso está se tornando cada vez mais raro. E temo que o domínio financeiro de um esteja sendo usado para marginalizar e até menosprezar a existência do outro.

Para quem sonha em fazer filmes ou está apenas começando, a situação neste momento é brutal e inóspita para a arte. E o simples ato de escrever essas palavras me enche de uma tristeza terrível.”

Martin Scorsese é um cineasta de renome que dirigiu filmes como “Táxi Driver”, “O Lobo de Wall Street”“Gangues de Nova York”“Touro Indomável” e “Os Infiltrados”, pelo qual ganhou o Oscar de Melhor Direção. Divididas em Roteiro, Direção e Filme, Scorsese conta com doze indicações a prêmios da Academia. Seu próximo filme, “O Irlandês”, que tem nomes como os de Robert De Niro, Al Pacino e Joe Pesci no elenco, terá exibição limitada em cinemas dos EUA, e estreia mundialmente na Netflix em 27 de novembro deste ano.

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Giovanni Mosena
@giovannimosena

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