Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 23 de agosto de 2007

A Supremacia Bourne (2004): um verdadeiro marco para os filmes de espionagem

"A Supremacia Bourne" não se contenta em manter o nível de seu antecessor, elevando a série para um nível completamente novo e nos dando cenas de ação absolutamente fantásticas e - por mais contraditório que pareça - sempre com os pés no chão.

Quando “A Identidade Bourne” fora lançado nos cinemas em 2002, seu protagonista pegou o público um tanto desprevenido. Os grandes espiões e agentes secretos que o grande público conhecia, como James Bond e Ethan Hunt, eram glamorosos empregados de governos bonzinhos, interessados em manter o status quo e a impedir tramas mirabolantes de vilões malignos. Já o personagem vivido por Matt Damon, Jason Bourne, estava em fuga do governo americano por ser alguém que poderia comprometer a imagem daqueles encarregados de proteger o povo, mas que também tinham seus próprios interesses. O mais interessante é que Bourne não tem a mínima idéia de quem é e de como chegou àquela situação. Tudo o que ele sabe é que ele acordou no meio do oceano, desmemoriado e que existem pessoas que querem matá-lo. Durante o primeiro filme da série, descobrimos algumas coisas sobre o passado de Jason junto dele e sobre o sinistro programa Treadstone de recrutamento da CIA, além de conhecermos a linda Marie, que calhou de ser a primeira mulher que cruza o caminho de nosso protagonista e por quem este se apaixona.

No final do filme, Treadstone é desativado, o chefe do programa, Conklin (Chris Cooper) é morto e Jason vai viver feliz e satisfeito junto de Marie em uma cabana com vista para o mar. Ou seja, um final feliz perfeito propiciado pelo então diretor Doug Liman e que podia ter acabado tudo bem ali. Ainda bem que isso não aconteceu. Eis que, dois anos após o lançamento de “Identidade”, surge “A Supremacia Bourne”. O comando deste segundo exemplar da franquia foi delegado ao britânico Paul Greengrass, responsável pelo aclamado “Domingo Sangrento” e possuindo um estilo de filmagem bem diferente do de Liman, que ficou apenas como produtor executivo. Será que o inglês daria conta de continuar essa história sem deixar que a peteca caísse? A resposta foi dada com um filme fantástico, cheio de tensão, ótimas interpretações e brilhantemente executado do ponto de vista técnico.

Para Jason e Marie também se passaram dois anos dede que os vimos. Eles estão vivendo uma existência simples nos confins da Índia, sempre discretos e sem chamar a atenção. Porém, Jason vem tendo pesadelos recorrentes, recordações suprimidas de seu tempo trabalhando para Conklin. Uma é especialmente insistente e perturbadora para o nosso protagonista, que só quer esquecer-se de tudo aquilo e continuar a sua vida ao lado da mulher que ama. Porém, em Berlim, eventos conspiravam para que a felicidade do casal estivesse com as horas contadas, quando um impiedoso assassino russo (Karl Urban) acaba de maneira violenta com uma operação da CIA coordenada pela idealista e competente Pamela Landy (Joan Allen) que visava descobrir um corrupto dentro da agência de inteligência americana, através da compra de um dossiê feito por um falecido político russo chamado Neski. O russo consegue fazer com que Bourne acabe sendo acusado do atentado, indo logo depois em seu encalço. Enquanto isso, Landy procura o antigo supervisor de Conklin, Ward Abbott (Brian Cox), para descobrir informações sobre aquele que ela julga ter acabado com sua operação e matado um de seus homens. Mais uma vez Jason Bourne se vê entre a cruz e a espada, mas agora ele tem algo valioso que pode ser perdido por conta de seus pecados pretéritos.

Desde o início do filme, Paul Greengrass tenta passar a impressão de que tudo o que vemos na tela está se passando à medida que assistimos, como se fosse tudo real. A franquia já havia desenvolvido essa tendência em seu primeiro episódio, porém é aqui que ela se finca de vez, graças não só a habilidade de Greengrass com a câmera na mão (algo de que falarei mais depois), mas a sua capacidade como diretor de atores. Matt Damon mais uma vez dá um show a parte como o desmemoriado assassino Jason Bourne. Cada movimento de sua atuação é milimetricamente planejado, assim como cada inflexão em suas falas. Graças à atuação de Damon, não vemos Bourne como um super-homem tal qual Bond, mas como alguém altamente treinado e focado, a despeito de seus óbvios problemas – ou por conta deles. Logo em seguida temos a alemã Franka Potente como Marie. Em sua atuação, a atriz consegue mostrar que sua personagem está com Jason por opção, participando dessa perigosa confusão que é a vida de seu namorado justamente por amá-lo. Esta é uma noção extremamente poderosa passada pelo filme. Jason, a despeito de sua condição, vê em Marie a única coisa boa em sua vida e a química entre Damon e Potente reforça isso.

Brian Cox, cuja persona aparecia como um elemento apaziguador em “Identidade”, dá uma visão completamente diferente de Abbott nesse filme. Apesar de ser “um patriota”, ele sabe que cometeu erros mas, ao contrário de Jason, não busca redenção, mas sim jogar a sujeira pra baixo do maior tapete que possa encontrar. Daí vem a grande adição ao elenco do filme, Joan Allen. Ela serve como o exato contraponto do personagem de Cox, tendo como objetivo expor toda a corrupção da agência, o que gera ótimos momentos entre sua personagem e Abbott. Julia Stiles aparece mais uma vez de maneira bastante discreta como a agente burocrática Niccolette Parsons, tendo uma cena bastante forte junto a Matt Damon. Já Karl Urban impõe bastante respeito como o calado assassino Kirill. Destaque para o russo perfeito falado pelo ator neozelandês.

Isso nos leva a outro elemento do filme, que é explorar com sucesso todos os elementos de suas locações, algo que poucas produções conseguem. As locações na Índia, Estados Unidos, Alemanha e Rússia trazem, cada uma, um elemento visual diferente à fita. Isso fica mais evidente nas duas últimas, graças às incríveis cenas que ocorrem no metrô de Berlim e, principalmente, a magnífica perseguição automobilística nas ruas de Moscou, envolvendo um ferido Jason Bourne, Kirill e a polícia local. Nós nos sentimos, graças ao soberbo trabalho de câmera de Paul Greengrass, dentro da ação e não como meros espectadores. Palmas também para a edição da película, feita por Richard Pearson e Christopher Rouse, que posteriormente voltaram a trabalhar com Greengrass em “Vôo United 93”. Para se ter idéia do nível de trabalho que esses dois tiveram, a média de duração de uma tomada no filme é de menos de dois segundos e, mesmo assim, o filme é extremamente coeso. Outros dois elementos que, com o perdão do trocadilho, dão identidade à série são a fotografia de Oliver Wood e a trilha de John Powell. Como estavam presentes no primeiro filme da franquia, ambos souberem dar continuidade ao que fizeram anteriormente, permitindo com que o espectador já começasse o filme vendo e ouvindo um universo ao qual já estava familiarizado. Há de se destacar o trabalho de Wood que soube trabalhar muito bem com os diferentes ambientes de cada cidade onde a trama se desenrola, tal qual eu já havia comentado.

Situado em um mundo assustadoramente real e com personagens que não agem como se estivessem num filme, mas como se estivessem nos bastidores das intrigas que vemos nos canis de informação, “A Supremacia Bourne” foi um verdadeiro marco para os filmes de espionagem, influenciando até mesmo James Bond que no filme seguinte da série, “Cassino Royale”, renasceu com um “quê” meio Bourne. Até 007 sabe reconhecer quando é superado…

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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