Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 02 de junho de 2007

Zodíaco

"Zodíaco" conta não a história de um assassino serial, mas daqueles que se dedicavam a investigação sobre os crimes. O diretor David Fincher nos relata de maneira surpreendente essa trama real, tendo como base os livros de Robert Greysmith, um dos principais personagens do filme, dando a este uma perspectiva única.

David Fincher estava há muito sumido das telas. O diretor dos ótimos "Se7en – Os Sete Crimes Capitais" e "Clube da Luta" não assumia um projeto que fosse para frente desde "O Quarto do Pânico", filme feito praticamente como exércício de estilo. Seus anos afastados, porém, não lhe privaram de sua competência. Prova disso é esse excelente "Zodíaco", adaptação para o cinema dos fatos que ocorreram nos bastidores das atribuladas investigações sobre o assassino serial de mesmo nome que apavorou a cidade de São Francisco durante o final da década de 1960 e boa parte da 1970 e que, até hoje, é objeto de controvérsia e de certo fascínio. Mostrando os motivos que tornaram interminável a caçada empreendida pela imprensa e pela polícia, o longa, graças ao ótimo roteiro de James Vanderbilt, consegue ser tenso mesmo sem lançar mão dos clichês que já estamos mais que habituados a ver em suspenses.

O filme se inicia com a morte de dois amantes no feriado da independência americana de 1969. Algumas semanas depois, os maiores jornais da cidade de São Francisco recebem cartas de alguém que se diz o autor desse e de outros assassinatos, dando detalhes específicos de cada crime e afirmando que, se os enigmas que acompanham as cartas não forem publicados, irá matar mais pessoas. A partir daí, acompanhamos os esforços do cartunista Robert Greysmith (Jake Gyllenhaal), do jornalista policial Paul Avery (Robert Downey Jr.) e do detetive David Toschi (Mark Ruffalo) em descobrir a identidade do assassino, entrando num labirinto repleto de problemas, pistas falsas, sensacionalismo e incontáveis suspeitos, que podem acabar com suas carreiras, relacionamentos e com suas vidas.

A narrativa acompanha os personagens tão de perto que sentimos cada ameaça que eles sofrem e nos frustramos com os (vários) becos sem saída de suas investigações. O mais interessante é o modo em que o público é levado a mergulhar na história. Em cada aparição do Zodíaco, ele é interpretado por um ator diferente, fazendo com que fiquemos tão desnorteados ao tentar desvendar a identidade do criminoso quanto aqueles indivíduos que vemos na tela arriscando tudo para fazer isso. O clima que o filme passa é de que o Zodíaco esté por toda parte e que pode atacar qualquer um – inclusive nossos protagonistas – a qualquer momento, algo que a cidade de São Francisco realmente sentiu durante a onda de ataques do psicopata.

O longa nos presenteia com ótimas performaces de seu elenco, tanto do trio principal, quanto dos coadjuvantes. Gyllenhaal, como Greysmith, mostra como, aos poucos, o tímido cartunista fora se emaranhando cada vez mais com o caso, começando como mera curiosidade e chegando quase ao nível da obsessão. Utilizando algumas características do protagonista-título de Donnie Darko – um de seus papeis mais relevantes – o ator nos mostra uma pessoa pacata e retraída, mas que, por algum motivo, não desiste do objetivo que impôs a si mesmo, não importa o custo. O personagem de Mark Ruffalo, no entanto, lida com problemas diferentes. Ruffalo nos mostra a crescente raiva e a frustração que assombram seu personagem, justamente por não conseguir fazer aquilo que era sua obrigação, que seria capturar o "bandido". Em dado ponto da projeção, Toschi vai ao cinema assistir a "Perseguidor Implacável", filme onde o policial Dirty Harry (vivido por Clint Eastwood) enfrenta um vilão claramente baseado no Zodíaco. O detetive sai do cinema e lamenta que as coisas na vida real não sejam tão simples, já que, na "vida real", não se pode simplesmente atirar na cabeça de um suspeito com uma magnum 44. Porém, o grande destaque do filme vai para Robert Downey Jr., que interpreta um personagem com uma trajetória muito parecida com a sua. Inicialmente um profissional respeitado por seus pares e seguro de si, ele vai se entregando às drogas, dada as ameaças e a pressão que vive, sofrendo um processo desenfreado de decadência profissional e pessoal. No elenco de apóio também contamos com ótimas atuações, destacando Anthony Edwards no papel do parceiro de David, o sempre competente Philip Baker Hall como um renomado especialista em caligrafia, Brian Cox interpretando o cínico advogado-artista Melvin Belli e a belíssima Chloë Sevigny como Melanie, segunda esposa de Greysmith.

David Fincher, mais uma vez, dá um show a parte na direção do filme, conduzindo a trama de maneira irretocável. Além de ser um ótimo diretor da atores, sempre extraindo destes as melhores performaces possíveis, ele é dotado de um peculiar senso de estética, sendo capaz de conceber planos e tomadas notáveis, mas sem nunca entrar em detrimento da história, sempre a serviço desta. Seja no modo em que nos mostra a redação do San Francisco Chronicle, na elegante passagem do tempo ilustrada pela construção de um prédio ou nos brutais atos do personagem que dá nome ao filme, todo fotograma do filme exala o talento do diretor, que teve o cuidado de se cercar de profissionais tão competentes quanto ele. O ambiente do filme exala a época em que este se passa (até mesmo no logo das produtoras, no início da projeção), isso graças a um trabalho intenso de caracterização feito pela produção, em especial pela equipe de direção de arte chefiada por Keith P. Cunningham e dos figurinos feitos por Casey Storm. A fotografia de Harris Savides nos passa a impressão de estarmos vendo uma produção do início da década de 1970 (até mesmo lembrando um pouco a do citado "Perseguidor Implacável"). E, apesar de sua duração de quase três horas, o filme nunca perde ritmo por conta do trabalho de edição feito por Angus Wall.

Surpreendendo àqueles que esperavem ver uma típica história de polícia-e-bandido, "Zodíaco" é um filme que aproveita um fato histórico para mostrar pessoas que, com um mesmo objetivo, acabaram tendo destinos bem diferentes, apesar de intrinsecamente ligados. Mais do que apenas um bom filme, é uma mostra da humanidade em seu melhor e pior.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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