Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 28 de abril de 2007

Hannibal – A Origem do Mal

O famoso psiquiatra canibal Hannibal Lecter retorna neste filme que aborda sua infância e juventude. Repleto de violência, o longa se mostra uma interessante viagem sobre a construção da personalidade do personagem, ainda que a abordagem pouco lembre a franquia original.

O produtor Dino De Laurentiis parece gostar mesmo de Hannibal Lecter, personagem criado pelo autor Thomas Harris e vivido por Anthony Hopkins nos cinemas. Tanto é que só vive de seus filmes e mais nada (exceto o recente anúncio da refilmagem de “Barbarella”). Após “O Silêncio dos Inocentes”, “Hannibal” e “Dragão Vermelho”, o personagem ganha mais um longa-metragem, porém, seguindo a moda dos prelúdios implantada por “Star Wars”. Vale lembrar que o teor psicológico de “Silêncio dos Inocentes” foi sendo desfeito a cada novo filme, e essa nova produção consegue a difícil tarefa de ser o mais diferente de todos, mas também, o mais próximo. O estilo de narrativa é todo diferente, mas quem conhece o personagem, facilmente irá identificar muitos pontos interessante que foram cruciais para sua formação. Eis onde mora a peculiaridade: pode tanto agradar aos fãs da franquia original por esses detalhes, como decepcionar por completo.

A história começa no Leste da Europa, ao final da terrível Segunda Guerra Mundial. O jovem Hannibal assiste de perto à morte violenta de seus pais, que deixam a sua amada irmã mais nova aos seus cuidados. Este momento de terror logo desaparece, comparado às atrocidades que ele é forçado a presenciar e, talvez, por meio das quais continue vivendo. Sozinho e sem apoio de ninguém, ele (agora vivido por Gaspard Ulliel) é obrigado a morar em um orfanato soviético que anteriormente fora o lar da sua família. Lecter foge para Paris em uma tentativa de encontrar o seu tio, mas é recebido pela sua viúva, a bela e misteriosa japonesa Senhora Murasaki (Gong Li). Demonstrando sua perspicaz aptidão científica, ele vai estudar Medicina, que acaba contribuindo para aumentar as suas habilidades, fornecendo-lhe as ferramentas para exercer a justiça contra os criminosos de guerra que constantemente o perseguem. Essa saga despertará um desejo insaciável nesse serial killer não-nato, e sim criado.

O grande triunfo de “Hannibal – A Origem do Mal” é ter trazido o próprio Thomas Harris, criador do personagem, para roteirizar o longa. Assim, percebe-se sua fácil identificação com o jovem Hannibal e os muitos fios que o ligam para o Hannibal já vivido por Anthony Hopkins. E eis onde moram os méritos do filme: no bem construído roteiro, que faz questão de moldar detalhadamente o personagem principal, tornando-o completamente crível. E muitos são os momentos em que o espectador que acompanhou a trilogia original, gostará de ver a explicação no passado, como a formação acadêmica de Hannibal, o aperfeiçoamento de sua inteligência, seu gosto por música clássica, suas constantes mudanças de locações e até mesmo sua resistência um tanto ‘anormal’. As cenas em que ele injeta veneno em si mesmo para aperfeiçoar sua imunidade, e quando é testado por um detector de mentiras – que é quando percebemos sua frieza fora do normal – foram muito bem encaixadas, cumprindo o intuito de mostrar o ‘monstro’ (modo como ele é chamado várias vezes) que aos poucos ia sendo construído. Tudo bem que a explicação para a famosa máscara, que é sua marca registrada, fora um tanto forçada. Afinal, na franquia original ela é usada como mordaça, e não uma peça de uma armadura ninja (é, lamentável!).

Muitos irão reprovar o fato de este filme deixar de lado os embates psicológicos e duelos de inteligências presentes em “O Silêncio dos Inocentes”, e apelar demasiadamente para a violência (fato que criou em muitos uma aversão ao filme “Hannibal”, de 2001), o que não deixa de ser verdade. O novo filme de fato é muito violento, deixando a impressão de ser apenas mais um filme sobre um serial-killer de sangue frio. De fato Hannibal é sangue-frio, mas o roteiro faz bem o trabalho de afastá-lo da imagem de serial-killer, de modo que, mesmo matando pessoas, o espectador cria uma empatia com ele, e às vezes até torce para seu mérito. Ainda, o personagem ainda é jovem demais para ter toda aquela desenvoltura intelectual que viria a ter futuramente, assim, o filme cumpre bem o dever de apresentá-lo como uma "simples" bomba de emoções que quando se explode, vidas serão apagadas, tudo de maneira friamente calculada.

É entendível a revolta de muitos pela brusca mudança na abordagem, afinal, este não se trata de nenhuma investigação policial como foram os outros, e sim de um filme sobre vingança. Inclusive, se olhar de uma maneira menos precisa, a vingança em si sequer é uma justificativa para a formação da personalidade de um psicopata, afinal, quando se vinga matando alguém pré-definido, a alma por lógica estaria regenerada. Mas esse não é o caso de Hannibal Lecter! O filme deixa mais do que compreensível que ele não queria se vingar apenas das pessoas que criaram nele um trauma quando criança, e sim, do mundo. Ele se torna uma pessoa completamente deslocada dos padrões da sociedade, revoltado com o que lhe fora feito quando jovem, resolvendo descontar no mundo exatamente com a mesma moeda.

Nisso, a contextualização na Segunda Guerra foi positiva, pois a guerra em si é um ato de hipocrisia humana, justificativa para que Hannibal se revolte não só com aqueles que o fizeram mal diretamente. Nesse processo de vingança, finalmente é explicado, de maneira bem plausível, como nasce o canibalismo na vida do jovem. O estilo de “Hannibal – A Origem do Mal” é tão diferente, que posso até classificá-lo como um “Kill Bill” em versão masculina – inclusive com todas as influências da cultura oriental, uso de espadas samurais para destroçar as vítimas, etc. –, com teor de violência semelhante, porém, sem o charme do filme de Quentin Tarantino. Por sinal, a frase de início de “Kill Bill” – ‘A Vingança é um Prato Melhor Servido Frio’ – cai como uma luva para o novo filme de Hannibal Lecter.

A escolha do pouco conhecido Peter Webber (do ótimo “Moça Com Brinco de Pérola”) também foi positiva. Ele consegue aplicar um clima sempre denso à narrativa, condizendo com o constante estado de paranóia do protagonista. Webber consegue muito bem aproximar o espectador do personagem, sabendo mostrar os fatos na hora certa. Exemplo são os motivos de seus traumas, que ao invés de serem exibidos cronologicamente no início, quando Hannibal ainda era criança, há o corte para o tempo 'atual', e ficam reservados para os flashbacks, momentos de tormento do rapaz, deixando o clima de suspense no ar. O jovem Gaspard Ulliel (“Eterno Amor”), apesar de se mostrar um pouco inseguro alguns momentos, se mostrou uma escolha acertada para o papel. O jovem não só captou o olhar de mistério e a voz palpada, identidades criadas por Anthony Hopkins, como deu sua particularidade a Hannibal quando jovem. Percebam suas expressões, um misto de indiferença com satisfação e prazer, quando faz suas vítimas, e ainda tem a ousadia de cantar uma canção um tanto, particular. Difícil captar tamanha frieza – ainda que eu ache que Ben Whishaw, de “Perfume: A História de um Assassino", exprimiria bem melhor essas características, mas dois papéis tão semelhantes seria ‘prisão’ demais para Whishaw. A oriental Gong Li (“Miami Vice”), por sua vez, se mostra bastante perdida em cena, sem conseguir transmitir com convicção as perturbações de sua personagem. Uma pena, pois Lady Murasaki tem um perfil bastante interessante a ser abordado, sendo uma grande influência para a formação da personalidade de Hannibal, mas Gong Li não a captou como deveras.

De fato, talvez fosse desnecessário mais um filme sobre Hannibal Lecter, mas, “Hannibal – A Origem do Mal” acaba por se mostrar uma bem construída análise sobre as origens do personagem. Identificar muitos detalhes marcantes de sua caracterização na franquia original torna o filme bastante crível, ainda que fuja por completo ao estilo do primeiro – e melhor – filme da série. Dino De Laurentiis já demonstrou o interesse em continuar a abordar a juventude do personagem em novos filme. Aí, convenhamos, já é demais. Que paremos por aqui.

Thiago Sampaio
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