Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 21 de abril de 2007

Maria Antonieta

Depois de ser vaiado em Cannes e ter sido recebido com mediocridade, "Maria Antonieta" fez com que a talentosa Sofia Coppola ficasse mal interpretada na visão de vários críticos conservadores ou pouco liberais. Sem intencionar construir um épico da vida da famosa princesa austríaca, Coppola deixa o lado político em terceiro plano e mostra uma trama centrada na personagem como ser humano, colocando mais uma vez toda sua sensibilidade em tela.

Após anos de estudo e orientação acerca de Maria Antonieta para construir o roteiro do longa, a cineasta Sofia Coppola monta uma história um tanto quanto ousada que certamente passaria incompreensão para muitas pessoas. Tendo soltado um sorriso amarelado após ter seu trabalho posto em debate extremista que poria em pauta a qualidade da película, a diretora que, mesmo com o curto currículo, já teria conquistado respaldo com seus filmes anteriores, poderia mostrar-se bastante invulnerável ao construir sua Maria Antonieta contemporânea. Por tal estilo estético, Coppola foi trucidada pelas más línguas e fez de "Maria Antonieta" um divisor de águas. Enquanto a crítica internacional virou as costas para a cineasta, ainda assim o filme conseguiu uma boa projeção entre a audiência e principalmente aqueles que conhecem mais a fundo a sensibilidade que Coppola costuma investir em suas obras. Por mais que tenha sido ovacionada com seu filme de estréia "As Virgens Suicidas" e tendo se destacado no Oscar com o pop "Encontros e Desencontros", dessa vez "Maria Antonieta" ganhou a simpatia de poucos e restringiu o entendimento da essência do que Coppola quis mostrar sobre a jovem austríaca. Particularmente, sou um admirador imparcial de Coppola. Não por ser filha de quem é, mas pela maneira com que a jovem se dedica aos seus projetos, nem sempre sendo bem interpretada, como foi o caso deste último trabalho.

Na trama, Maria Antonieta deixa seu palácio aos quatorze anos para casar-se com o delfim Luís XVI, herdeiro do trono francês. Inexperiente e resguardando a inocência de uma jovem cheia de aspirações para sua vida, Antonieta vê-se em um ambiente de intrigas e chacotas em Versalhes e a não aceitação de uma vida sacal acaba transformando-a em uma vilã para o povo francês, por não saber como lidar com as problemáticas políticas e por ter seus anseios de liberdade e de uma juventude que não se diferencia quase em nada do mundo contemporâneo. Em Versalhes, Antonieta viverá momentos de crise pessoal e mundial, sendo tachada desde frígida a impiedosa. Tendo que aprender a viver em um mundo de reverências e inveja, a jovem passa a conviver com companhias que não agradaram a linhagem real do palácio, desfrutando da luxúria consumista e dos desejos hormonais, já que seu casamento era uma preocupação, pois, quanto mais era forçada a seduzir o rei e gerar um filho, menos Antonieta conseguia colaboração de seu parceiro. Caindo na boca da população da França, a rainha precisou amadurecer mais rápido do que qualquer outro adolescente da época e assinou seu nome em um período conturbado da Revolução Francesa.

A essência feminista de Coppola está cada vez mais amadurecida. Suas pretensões estão se tornando grandes desafios em sua carreira e certamente a construção de "Maria Antonieta" é uma das mais problemáticas. Depois de seus filmes anteriores como roteirista e diretora, é impossível não perceber que a cineasta tem um feeling muito forte ao ambientar sua história e determinar o que será trabalhado em cena. Coppola ousa de uma forma que muitos cineastas veteranos não se atreveriam a ousar e isso se dá pela segurança e na crença em seu talento. De uma sensibilidade incrível, Coppola traz em "Maria Antonieta" elementos que o transformam em mais um grande filme. Por mais que as más línguas não tenham perdoado as intenções da diretora, é perceptível que nada na película está fora do lugar e todas as estratégias do roteiro foram bem pensadas para servir como identificação íntima com o público. O primeiro ato do longa é um tanto sacal, visto sua evolução posterior. Sempre cheio de reverências e de um estranhamento da protagonista com o novo mundo que teria que enfrentar, poucos seriam capazes de ridicularizar Versalhes e Coppola, além de fazê-lo, retira toda a beleza e encantamento do palácio como um todo. Parece que ali dentro só servem os móveis e as pessoas são meras transeuntes fofoqueiras. Todo o processo de aceitação de Maria Antonieta em sua nova vida e as dificuldades vividas aos quatorze anos, onde as cobranças eram maiores do que uma menina ingênua poderia suportar, são perfeitamente registrados e humanizam a rainha. Vale ressaltar que em nenhum momento Coppola pretende defender a polêmica figura de Antonieta, mas faz um estudo psicológico e comportamental do que é uma adolescente ser forçada a receber o mundo em suas mãos e não saber administrar. É aí que se encontra todo o contexto do longa.

Para muitos, a soberba e a vida que Antonieta resolve viver para não endoidar dentro de um ambiente medíocre, pode até pintá-la como a vilã da história da França. Fato ou mito, a Maria Antonieta de Coppola é apenas uma demonstração do despreparo dos jovens em sua visão de mundo. Na realidade, a rainha não sabia em que contexto estava vivendo, muito menos conhecia as possíveis repercussões mundiais de seus atos nada agradáveis. Regado de uma trilha sonora contemporânea que foi bastante criticada por não se enquadrar no ambiente da época, um pouco de bom senso justifica a escolha. Maria Antonieta é nada menos do que um paralelo ao que os adolescentes são hoje em dia e isso condiz não só pelas aspirações, mas sim pelas cobranças que o sistema impõe e todo o rigor familiar. Esta relação é tão clara que é impossível não deixar de compactuar com as fugas que a personagem estabelece para tentar viver um pouco de sua meninice, como se buscasse uma liberdade retirada de si. Liberdade esta que ela teria todo o direito de viver, porém o rigor de ser prometida a um príncipe para que duas nações fortalecessem seus atos a impediram de desfrutar. Toda a incompreensão vivida pela protagonista e seus conflitos podem muito bem ser moldados para nossa época e gera uma discussão interessante sobre a juventude, sem adquirir um toque moderninho demais.

O que acabou incomodando a algumas pessoas da audiência foi o fato de não perceberem que o longa não tem nada de épico e funciona justamente por conseguir com sucesso estabelecer uma Maria Antonieta muito mais como ser humano do que como símbolo político. Coppola fez questão de deixar em segundo plano as discussões políticas da época, não por não serem importantes, mas seriam uma forma de desvirtuar a intenção principal de seu roteiro. Daí ela decide inserir a política em poucas passagens no decorrer da vida de Antonieta e principalmente no seu final, que acaba se revelando o melhor momento para fazê-lo. Isso também justifica a escolha de parar a vida da rainha muito antes de ser guilhotinada, como conta a história, pois este fato final não teria relevância, pois não condiz com a essência da história montada por Coppola. A diretora consegue realizar mais um trabalho ímpar, que talvez não agrade a todos pela falta de verossimilhança com os verdadeiros acontecimentos (e boatos) sobre a vida de Antonieta, porém dá um caráter bastante autoral para a personagem. Sempre bem determinada, a diretora transita perfeitamente as sensações do público, sabendo não só mexer com o humor, a tristeza ou a angústia nos momentos certos, mas tendo uma noção perfeita de intercalar esses momentos sem ter nenhuma perda feroz. Quanto a seu estilo de filmagem, os belos planos construídos ajudam na fotografia e as alternativas de uso da câmera, seja tremendo na mão ou dando uma maior expansão com as gruas são outros elementos bem empregados no longa.

Chegando até a abusar das ironias, outro ponto que incomodou a crítica mundial foram algumas alternativas utilizadas no roteiro de Coppola que, teoricamente, iria contra os processos mais eficazes de construção. A inserção de um tênis all star em uma determinada cena, por exemplo, gerou uma repercussão incrível que pôs em xeque a inteligência da diretora. Porém, não é preciso ir muito longe para entender que este foi apenas mais um elemento empregado para fazer uma conexão com a contemporaneidade, e esse formato é bastante movimentado durante as duas horas de filme. O que acaba sendo lamentável não é o filme em si, mas a incompreensão e a incapacidade de algumas pessoas não perceberem a essência principal de uma história, atendo-se bastante ao que seria ‘certo’ fazer. Mesmo assim, Coppola fez o certo que muitos outros fariam de forma errada. Ela se extinguiu de maneirismos e deu um toque ‘cool’ à sua Maria Antonieta, sem tirar seu valor sentimental ou desqualificá-la na sociedade. Além disso, a atuação de Kirsten Dunst estabelece uma compreensão total do que seu personagem precisava passar e ajuda a consolidar as idéias de Coppola, assim como o elenco em geral. Dunst também não foi bem criticada em sua atuação, mas acredito que isso tenha sido só um reflexo da já falada incompreensão geral do projeto.

É preciso um pouco de senso para que a admiração do longa não fique somente na direção de arte, figurino e aspectos técnicos que, realmente estão impecáveis, mas não se limitam a isso. Tudo na trama é bem fundamentado e seria impossível que Coppola não soubesse com clareza o que estava fazendo. Por mais que não seja sua melhor obra (particularmente, acredito que “As Virgens Suicidas” seja sua melhor contribuição ao cinema), “Maria Antonieta” mostra um mundo controverso que gera controvérsia a quem assiste. Se você procura um registro histórico cheio de maneirismos de filmes de época, passe longe. A Maria Antonieta de Coppola mostra seu lado cool, ao som de rock, aspirações, guloseimas e luxo. É um retrato de uma menina que não é tão diferente à nossa juventude atual e tais semelhanças levantam interessantes debates sobre isso. Vaias em Cannes não são pré-requisitos para o fracasso. São tantos os filmes ruins que são aplaudidos durante este festival que acreditar que “Maria Antonieta” seja um fracasso antes mesmo de conferir é um erro imperdoável. Se mesmo assim, não considerar um bom trabalho de Coppola, o melhor mesmo é deixar que outros admirem a eficiência completa da cineasta neste projeto e quem sabe seja mais conveniente alugar “Encontros e Desencontros” e fazer uma pose cult para sair bem na foto.

Diego Benevides
@DiegoBenevides

Compartilhe

Saiba mais sobre