Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 23 de abril de 2007

Batismo de Sangue

Mais do que apenas mais uma história sobre a Ditadura Militar, "Batismo de Sangue", baseado no livro de Frei Betto (ele mesmo é um dos personagens da trama), é uma obra marcante sobre o preço a se pagar por realizar algo que sabemos ser certo. Um belíssimo filme.

Obras sobre períodos negros da História surgem aos montes em qualquer cultura. É uma das belezas (e prerrogativas) da arte exorcizar os demônios de nosso passado, mostrando os nossos erros e acertos pretéritos. Portanto, não é de se estranhar que, aqui no Brasil, se façam tantos filmes sobre os anos da Ditadura Militar, uma época em que expressar abertamente uma opinião contra o governo era contra a tal "segurança nacional". Como todo e qualquer tema, este filão do nosso cinema nacional teve sua cota de bons filmes (como "Lamarca", "O Que é Isso Companheiro?" e, mais recentemente, "O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias") e outros que não valiam a película neles gasta, como "Sonhos e Desejos". Felizmente, Helvécio Ratton, ele mesmo um antigo opositor do Regime Militar, conseguiu realizar com este "Batismo de Sangue" um belíssimo filme, contando uma história pungente e emocionante sobre fé, resistência e ideais.

Após um forte prólogo, que mostra uma trágica resolução por parte de um dos protagonistas da trama, o filme segue, dividido em três atos principais: o primeiro mostra os freis Tito (Caio Blat), Betto (Daniel de Oliveira), Oswaldo (Ângelo Antônio), Ivo (Odilon Esteves) e Fernando (Léo Quintão) um grupo de jovens frades dominicanos que, inspirados pelos ideais cristãos, se aliam à luta armada contra a ditadura, representada pela ALN – Ação Libertadora Nacional, liderada pelo carismático Carlos Marighella (Marku Ribas). Provendo transporte para fora do país e suporte logístico, eles acabam sendo de fundamental importância para a causa, mesmo jamais tocando em uma arma. Porém, um a um, eles vão caindo, sendo levados para o recém-criado DOPS e submetidos às mais cruéis torturas sob a vigilância sádica do delegado Fleury, "o papa". Esse é o segundo ato do filme, mostrando as humilhações a que os religiosos e outros prisioneiros políticos, considerados "perigosos subversivos" passam. Por fim, acompanhamos as conseqüências que tais torturas tiveram sobre um deles, o cearense Tito, em seu exílio na Europa. O filme consegue retratar muito bem o clima de paranóia daqueles tempos. Encontros secretos, códigos e táticas de guerrilha eram empregados pelos revolucionários enquanto telefones grampeados ilegalmente, coerção e tortura eram táticas corriqueiras dos responsáveis pela "segurança nacional". Aliás, as cenas de tortura são um destaque do filme. Brutais e realistas, nada lembram aquelas que empolgam o público da série americana "24 Horas" até porque, aqui, conhecemos os torturados e sabemos da força de seus ideais. Aliás, todos nós conhecemos alguém que pode ter vivenciado tais horrores, fazendo com que a experiência se torne mais pessoal ainda.

O principal mérito do filme é fazer com que nos importemos com aquelas figuras ali retratadas, mostrando-as de maneira humana, evitando cair na tentação da maioria das reconstruções de figuras históricas, que acaba por idealizá-las exageradamente. Tomemos por exemplo o fraquíssimo "Olga", que colocou num pedestal alto demais as figuras de Olga Benário e Luiz Carlos Prestes, tornando-os meros personagens, extirpando a humanidade dessas pessoas. Já em "Batismo de Sangue", podemos ver essas figuras centrais se divertindo, conseguindo encontrar descontração mesmo numa cela de presídio, no belíssimo momento que jogam uma improvisada partida de futebol. Eles não eram soldados, nem guerrilheiros. Eram apenas pessoas tentando fazer o que era certo. Outro grande acerto do filme foi este: separar muito bem os guerrilheiros dos dominicanos. Duas cenas, ambas passadas nos porões do Ministério da Marinha, ilustram bem isso: na cena onde o Delegado Fleury (Cássio Gabus Mendes) tripudia dos presos graças a uma ação bem sucedida por parte da Ditadura e a celebração de uma missa improvisada por parte dos religiosos, pessoalmente minha cena favorita no longa. Alguns críticos reclamaram da falta de profundidade dos membros dos órgãos do governo, os "vilões" do filme. Não vejo como a retratação deles pode ser vista como uma falha do longa, já que a proposta deste é retratar a história dos frades e é deles o ponto de vista sobre o qual a história é contada e esta era a maneira a qual os "oficiais da lei" eram vistos. O Delegado Fleury era visto quase como uma figura demoníaca, já que a mera lembrança dele trazia as memórias da dor da tortura. Aliás, aqui jaz meu único problema com o filme. O terceiro ato do filme se sustenta nos traumas de Tito, libertado e agora um exilado na Europa, em relação às torturas por ele sofridas. A maneira qual Ratton inseriu tais memórias foi um tanto quanto forçada, destoando um pouco do tom do filme.

O elenco do filme merece um tremendo destaque, já que não possui uma só atuação fraca. Caio Blat consegue mostrar o idealismo e, posteriormente, o sofrimento de Tito de uma maneira belíssima. Nós vemos o desespero tomando conta dele a cada lembrança que ele tem das torturas e sentimos o que ele quer dizer quando diz que, em breve, seus amigos serão soltos. A tristeza em seus olhos se traduz numa certa inveja, já que ele não consegue se ver livre de seus fantasmas. Daniel de Oliveira, com seu frei Betto, encarna a letra e a voz dos dominicanos. Ângelo Antônio, em seu pouco tempo em cena como frei Oswaldo, mostra a competência de sempre. Odilon Esteves e Léo Quintão não deixam a desejar em relação a seus companheiros de cena mais famosos. Em suas cenas de tortura, pressionados para revelar como se contatar com Marighella, eles expressam a dor e a contradição do momento, levando a tensão ao nível que a cena exige. Cássio Gabus Mendes dá o tom certo em seu ameaçador Sérgio Paranhos Fleury. O delegado, notório por ser um "carrasco implacável", impõe temor todas as vezes que entra em cena. Não posso deixar de falar da ótima atuação de Marcélia Cartaxo, como Nildes, irmã de Tito. Sua tristeza, que ela tenta disfarçar ao encontrar o irmão tão fragilizado no exílio, consegue comover o público sem pieguice.

A equipe técnica atua com uma competência ímpar. Helvécio Ratton conduz a história de maneira fluida e tensa (auxiliada por um ótimo trabalho de edição), fazendo com que nos preocupemos verdadeiramente com os personagens. Sem falsos pudores, ele não nos poupa de presenciar o sofrimento dos torturados. De uma maneira um tanto quanto irônica, a sua câmera faz um pouco o papel de Fleury, que obrigava os prisioneiros a assistir à tortura dos outros. Seus quadros são ótimos, todos sendo fundamentais ao contar a história, além de uma ótima direção de atores. A sóbria fotografia de Lauro Escorel (que já havia me chamado a atenção com seu trabalho em "Jogo Subterrâneo") consegue transmitir a realidade que o filme deseja. Tal realismo não seria alcançado se não fosse o perfeito trabalho de direção de arte, feito por Adrian Cooper, e dos figurinos feitos por Marjorie Gueller. Também merece ser comentado o ótimo trabalho feito por Beli Araújo e sua equipe na construção dos sets.

Mostrando as conseqüências que esses homens tiveram que arcar por travarem "uma luta pelo povo sem a participação do povo", Ratton fez uma obra digna de profundos e sinceros elogios e que merece ser vista pelo Brasil todo, por quem as pessoas retratadas no filme sofreram tanto. Com sorte, o público irá, ao sair do cinema, se interessar e pesquisar um pouco sobre tais pessoas e por elas se inspirar. É uma bela esperança.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

Compartilhe

Saiba mais sobre