Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 05 de fevereiro de 2007

Conquista da Honra, A

Clint Eastwood mais uma vez apresenta exímia habilidade na direção com este drama de guerra. Deixando de lado as batalhas em si, “A Conquista da Honra” é um belo filme sobre a construção forçada da hegemonia estadunidense, a construção de mitos. Algo, no mínimo, ousado.

Após os ótimos “Sobre Meninos e Lobos” e “Menina de Ouro”, o nome de Clint Eastwood como diretor ganhou uma áurea de peso, e qualquer novo projeto envolvendo seu nome, é certeza de muita badalação. Como bom fã de filmes de guerra, não pude conter minha ansiedade quando fora anunciado que seu novo filme seria a adaptação do livro “Flags of Our Fathers: Heroes of Iwo Jima”, de James Bradley, que conta a história da ilha no Pacífico que foi palco de uma das batalhas mais sangrentas do conflito em 1945. Mais motivo ainda de ansiedade, são os nomes que trabalham ao seu lado: Steven Spielberg assina a produção, enquanto o roteiro é de Paul Haggis (o vencedor do Oscar por “Menina de Ouro” e “Crash – No Limite”). Com uma equipe de peso como essa, o resultado não poderia ser outro: um belo filme, com personagens complexos, e uma alfinetada a honra da terra do Tio Sam.

Fevereiro de 1945. Apesar da vitória anunciada dos aliados na Europa, a guerra no Pacífico prosseguia. Uma das mais importantes e sangrentas batalhas foi a pela posse da ilha de Iwo Jima, que gerou uma imagem-símbolo da guerra: cinco fuzileiros e um integrante do corpo médico da Marinha erguendo a bandeira dos Estados Unidos no monte Suribachi. Alguns destes homens morreram logo após este momento, sem jamais saber que foram imortalizados. Os demais permaneceram na frente de batalha com seus companheiros, que lutavam e morriam sem qualquer ostentação ou glória.

Clint Eastwood já havia mostrado em “Menina de Ouro” que sabe dosar muito bem ação com o sentimentalismo e isso se repete em “A Conquista da Honra”. Tudo de início indica que será mais um filme de guerra marcado por ação e batalhas sangrentas, mas logo vemos se tratar mais sobre humanos, pessoas que estão lutando, morrendo, algumas virando heróis, e a maioria, anônimos. Há sim batalha, inclusive, uma é apresentada logo no início em seqüências bastante bem dirigidas, em que Clint apresenta detalhes diferentes dos que estamos acostumados normalmente em filmes de guerra. A queda de um avião, os ataques com lança-chamas, e até a omissão dos “inimigos” japoneses durante a maior parte do combate mostram o diferencial da produção. Mas, há de dizer que apesar desses detalhes, não há nada de realmente impressionante, e a violência apresentada, apesar de angustiantemente forte, não chega a ser uma novidade no gênero. Em termos de batalha, até agora, nenhum filme conseguiu se igualar em termos de realismo a retratação do Dia D nos vinte minutos iniciais de “O Resgate do Soldado Ryan”.

É mais do que perceptível o dedo de Steven Spielberg na produção, não pelas similaridades na ação com “O Resgate do Soldado Ryan”, mas principalmente, o visual quase idêntico ao da ótima mini-série “Band of Brothers”, produzida por ele. A semelhança com a mini-série é perceptível logo pelo contraste de cores, em que os flashbacks (que se remetem as cenas da guerra) e o período de conturbação logo pós-guerra, são marcados por um tom totalmente azulado, e quando é jogado para os dias atuais, retorna a iluminação normal com cores fortes. Esses detalhes contribuem para que o filme se destaque esteticamente.

Vale lembrar que o governador de Tóquio, Shintaro Ishihara, pediu a Clint que respeitasse os mortos japoneses no trabalho, temendo que os orientais fossem retratados de maneira espezinhada. Quanto a isso, o diretor surpreende, pois o longa de maneira alguma tenta sujar a imagem dos japoneses (inclusive, são pouquíssimos os japoneses que aparecem no filme), e parece atacar mais os próprios EUA. Sim, por trás daquela famosa foto dos seis soldados encravando a bandeira dos states em território nipônico, há toda uma crítica contra a mídia, ao governo, e como parece ser fácil o ato de “criar heróis” e ajudar a erguer sempre mais uma nação. Após o filme, fica difícil observar essa foto, antes tão contemplada, e não sentir um imenso ódio. No fim das contas, diversos homens de diversas nacionalidade morrem em batalha como verdadeiros anônimos, enquanto quatro americanos (detalhe que na foto original haviam seis, mas apenas quatro receberam o méritos, atenuando o absurdo disso tudo) recebem o título de heróis por apenas encravar uma mera bandeira no chão (que por sinal, a bandeira da foto sequer era a primeira a ser encravada).

Realmente, impressionante como por trás de uma simples fotografia, possa existir tanta farsa a fim de atenuar cada vez mais a imagem de um país que já é considerado a hegemonia mundial, o berço do capitalismo. Reparem que, propositalmente, a palavra ‘herói’ dirigida aos presentes na fotografia é repetida muitas vezes, chegando a causar revolta nos espectadores, ainda mais por causar nos próprios presentes na foto, um grande transtorno emocional por saberem o quão errôneo é esse título. Muitas são as passagens em que o diretor brilha mostrando esse transtorno, como a cena em que um sorvete com forma da imagem da foto, é banhado com calda de morango (mesma cor de sangue), simbolizando os soldados mortos cruamente em batalha que o povo sequer sabe o nome, enquanto outros recebem tratamento de luxo por um ato mínimo.

O que pode surpreender a muitos é o estilo de narrativa, pois, assemelhando-se ao sensacional filme argentino “Iluminados Pelo Fogo” (exibido em festivais, e ainda sem distribuição no Brasil), a história é toda apresentada através de flashbacks, destacando o papel de cada protagonista na guerra. Um trabalho ágil de edição, de modo que a história em nenhum momento se prolonga em uma mesmo espaço temporal, mas também não fica confusa. E nesse aspecto, o roteirista Paul Haggis, assim como já tinha feito em “Crash”, mostra que tem exímia habilidade em lidar com personagens, dando aos principais, todo o aprofundamento de personalidade necessário. Infelizmente, o excesso dos flashbacks acaba por se tornar um ponto negativo, pois, mesmo não tendo uma duração tão grande (132 minutos), o filme parece ser bem mais longo do que é. A idéia da farsa em torno da fotografia e os transtornos causados nos protagonistas logo é percebido, e as inúmeras voltas e repetições para explicar um mesmo fato se tornam demasiadamente cansativas. Como produção que critica todos os absurdos de conflitos, “Munique” se mostra muito mais eficiente, pois não dá voltas e voltas em torno de si mesma.

Ainda, há de ressaltar o ótimo trabalho de pesquisa feito para retratar com fidelidade cada personagem (sim, todos eles são reais), abordando seus dramas, suas habilidades, etc. Assim, desde detalhes como o do enfermeiro John “Doc” Bradley (Ryan Phillipe) ter habilidades como cabeleireiro e uma forte amizade com o soldado Iggy (Jamie Bell), o indígena Ira Hayes (Adam Beach) despejar seus traumas na bebida alcoólica, até os acontecimentos maiores praticados por eles que mudam toda a visão de um episódio marcante dos Estados Unidos, nada é por acaso, pois é a retratação fiel do que aconteceu. Não deixem de reparar na bela homenagem durante os créditos finais aos verdadeiros homens que estiveram presentes no episódio.

Quanto as interpretações, a grande maioria passa sem destaque, com exceção de Adam Beach (que curiosamente, já interpretou um índio em plena Segunda Guerra Mundial, no fraco “Códigos de Guerra), que dá a Ira Hayes uma forte carga emocional. Isso se dá pelo complexo personagem ser o mais visado pelo roteiro, e Beach consegue ser convincente como o homem que quer lutar para honrar seu povo e não se conforma com toda badalação injusta em cima de seu nome. Ryan Phillipe, que teoricamente é o protagonista da história (ele interpreta o pai do autor do livro que originou o filme), não tem muitas chances e passa a maior parte do tempo desfilando com seu uniforme de marinheiro, e apenas se destaca quando é mostrado seu sofrimento ao tentar socorrer a todos em pleno combate. Por ser o enfermeiro que sentiu na pele o sofrimento de cada um que morreu em combate, ele era para ser o mais alterado em seu retorno aos EUA, mas, apesar de se mostrar contra o rótulo de ‘herói’, o desempenho do ator faz com que seu personagem pareça que nunca se abstrai de uma postura imparcial. Já Jesse Bradford, como o egocêntrico René Gagnon, nada mais faz o que qualquer ator adolescente faria, mostrando ainda ser muito inexperiente para assumir um personagem complexo como esse. O astro de filmes joviais como “As Apimentadas” e “Clockstoppers” ainda não parece saber que para esboçar uma ironia, é preciso bem mais que um simples sorriso de canto de rosto (técnica que o ator usa em exaustão).

Enfim, existem heróis em uma guerra? Clint Eastwood conseguiu apresentar um bom drama de guerra, que certamente nos fará refletir sobre muitas situações que parecem óbvias, mas esquecemos que existe toda uma burocracia a fim de construir imagens. Pena que o filme se alongue demais em detalhes desnecessários. Assim, as expectativas em torno de “Cartas de Iwo Jima”, filme em que Clint mostra a visão dos japoneses sobre o episódio, se tornam bem maiores, pois são muitas as chances de superar “A Conquista da Honra”.

Thiago Sampaio
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