Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 27 de janeiro de 2007

Apocalypto

O novo projeto de Mel Gibson chega para cravar a certeza de que o astro sabe muito bem como investir em tramas inusitadas que talvez nem sejam do interesse de maior parte do público que freqüenta os cinemas, mas que refletem seu inegável talento como diretor que pôde contar com uma equipe técnica eficaz e digna de muitos elogios.

Depois de ter chocado a população mundial com seu exagerado ritmo cruel registrado em "A Paixão de Cristo", Gibson decidiu fazer de seu novo filme um dos projetos mais ousados dos últimos tempos. Ambientado no século 16, o longa mostra os conflitos vividos por uma civilização que aparentemente vivia em harmonia até ser invadida por membros de um império em declínio que os capturam para serem sacrificados como meio de prosperar e ficar em contato com os deuses. O protagonista Jaguar Paw acaba escapando de ser sacrificado quase por acaso, mas precisa ser rápido para resgatar sua esposa grávida e seu filho que se esconderam dentro de um poço ao ataque os invasores. Movido pelo amor que tem a sua família, não vai ser tão fácil escapar dos tiranos maias que adoram uma boa carnificina. Falado completamente em dialetos maias, "Apocalypto" chega regado a muita violência e um elenco desconhecido fabuloso que conduz o longa com responsabilidade.

É fato que a história a priori não atrai a massa em geral e isso é perfeitamente compreensível. O que temos hoje em dia é uma chuva de produções hollywoodianas que passam a ser o novo alvo dos cinéfilos, se contentando com comédias românticas bobas ou blockbusters pops. Quando uma produção da imensidão de "Apocalypto" chega, junto com sua ousadia e uma trama com uma abordagem diferente e atores nunca vistos antes, acaba excluindo boa parte das pessoas que procuram apenas um bom entretenimento. Outros que conseguem ser enganados e vão ao cinema sem saber direito do que se trata a história acabam saindo desgostosos do filme, achando um saco ou longo demais. Essa exclusão é inevitável já que a trama não segue muitos padrões, a não ser os do próprio diretor, que vem registrando sua marca a cada novo projeto. Causando um estranhamento desde o início, se pegarmos a história e dissecá-la até o fim, perceberemos que ela é mais casual do que imaginamos: um homem que luta para viver e salvar a vida de sua família, mas "Apocalypto" não permanece neste lugar comum e vai se mostrando mais do que um filme de ação e aventura, partindo para um thriller comportamental bastante interessante. Sem querer contar a história dos maias, se baseando em preceitos e virtudes, o longa vem mesmo para contar uma seqüência de fatos alucinantes e intensos de um povo que sofre com a dominação dos mais fortes.

Gibson deixou há algum tempo de ser aquele sex symbol que um dia foi e atualmente não está muito bem com a mídia americana. Afastado das telonas desde 2004, quando dirigiu o polêmico "A Paixão de Cristo", e de 2002, quando atuou em "Fomos Heróis", parece que o astro não tem deixado seu talento sucumbir de forma alguma. Este tempo de reclusão fez muito bem a Gibson, que começou a despertar o interesse em se testar e ver até onde sua competência é capaz de inovar e agradar. Talvez tenha sido esta a motivação de pôr um projeto como "Apocalypto" para frente, ou talvez não. De qualquer forma, é perceptível o cuidado que a equipe técnica teve durante o processo de produção do longa-metragem que poderia até ser chamado de blockbuster, mas talvez Hollywood pudesse ficar um pouco ofendido. Gibson dá um toque de originalidade incrível ao filme que ganha dimensões devastadoras à medida que a história vai sendo contada. Optando por deixar a película de lado e usar as delicadas máquinas digitais para registrar sua trama, o diretor mostra uma técnica impecável. Auxiliado por Dean Semler, diretor de fotografia, calcula nos mínimos detalhes os melhores ângulos e recursos a serem usados nos planos seqüenciais que conseguiram construir. Sem medo de pôr a câmera na mão para dar movimento e fazer loopings com ela, ou colocá-la em uma grua que mostre a imensidão do lugar onde a trama passa foram escolhas mais do que certas da dupla, ajudada por uma edição quase perfeita, deslizando pouquíssimas vezes em alguns detalhes que podem até passarem despercebidos.

Como se não bastasse, a incrível direção de arte juntamente com a maquiagem faz um trabalho fenomenal para retratar aquele povo e suas aldeias durante as quase duas horas e meia de projeção. As pinturas nos corpos, penteados e acessórios do figurino de todos os personagens foram minimamente bem projetados para que o público pudesse realmente se transportar para aquele universo que de distancia horrores do que é a civilização hoje, mas não passa a idéia de ser uma projeção exagerada ou estereotipada dos maias. O roteiro assinado por Gibson que contou com a ajuda também de Farhad Safinia acerta de cara ao apelar para um dialeto pouco conhecido, dando um toque de originalidade fora do comum e que não necessariamente distrai a atenção do espectador, já que o filme se constitui muito mais por uma história que feita pelos atores e pelas experiências que eles vivem do que por uma série de diálogos rebuscados ou significativos. Outro acerto está em relação ao casting escolhido para estrelar a trama. Totalmente desconhecidos e de um talento fora do comum, os atores conseguiram passar bastante segurança em seus personagens, abusando de expressões significativas e de uma presença cênica de credibilidade. Talvez se tivessem sido substituídos por rostos carimbados da indústria cinematográfica, ocorreria um leve desvio de originalidade, o que poderia ter acontecido no recente "Babel", que apelou para os populares Brad Pitt e Cate Blanchett enquanto poderia ter se sustentado muito bem com atores não renomados, mas o que não quer dizer que a produção seja prejudicada por isso.

Gibson registra sem medo seu lado sádico já visto anteriormente em "A Paixão de Cristo". Como se não bastasse a impiedade do povo maia em realizar rituais de sacrifício humano, o diretor tem uma visão totalmente sádica sob a trama e nos expõe a fatos tão cheios de carnificina que chega até a constranger. Mas que constrangimento bom! A violência apurada e os seqüenciais de morte que vão se ocorrendo no decorrer da produção são meros exemplos da capacidade paradoxal de Gibson de mostrar um absurdo perfeitamente aceitável. Sangue, pedaços humanos, rostos desfigurados, homens contra homens, estes contra a natureza, tudo vira uma razão para Gibson brincar de ser excêntrico e mostrar seus dotes sanguinários. Já imaginou o que ele faria se dirigisse um dos episódios da franquia "Jogos Mortais" ou se fizesse parceria com Eli Roth em "O Albergue"? Talvez o estilo trash evoluísse para uma espécie "trash cult" que daria muito que falar. O fato é que Gibson abusa com cautela dos seus limites e acaba criando possibilidades que poucos outros diretores cogitariam em investir em uma produção. Talvez se "Apocalypto" tivesse caído nas mãos de outro diretor, o sucesso não teria sido o mesmo, pois atualmente não vejo alguém capaz de construir uma narrativa tão significativa quanto Gibson, e olhe que não morro de amores por ele atuando ou dirigindo.

É inegável que os US$ 40 milhões investidos em "Apocalypto" foram bem justificados durante toda a projeção e esteticamente não deixa muito a desejar, além de consolidar o estômago que Gibson tem para projetos irreverentes e seu olhar violento e sangrento que invade o longa. Não sendo um filme capaz de agradar o público em geral, peca um pouco pelo excesso de tempo e por lidar com situações bastante ilusórias, quiçá exageradas, mas que não são fortes o suficiente para abafar o brilho do projeto como um todo. Agraciado com indicações ao Globo de Ouro e Oscar de 2007, "Apocalypto" é sem dúvidas um exemplo do que resulta em um diretor bom trabalhando com gente competente, do protagonista ao figurante, do maquiador ao continuísta. Com uma história que prende a atenção desde o começo aparentemente bobo ao desfecho, a trama merece ser vista com um olhar mais ousado para ser aceito e agraciado. Para quem não tiver disposto a ver um filme decente, estejam servidos dos besteiróis que circulam as salas de projeção.

Diego Benevides
@DiegoBenevides

Compartilhe

Saiba mais sobre