Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 28 de janeiro de 2007

Perfume: A História de um Assassino

Foi necessário uma espera de cerca de 20 anos para que o excelente livro (e best seller) de Patrick Süskind chegasse às telas de cinema. Mas a espera valeu a pena. Utilizando-se da mesma poesia das entrelinhas das quase trezentas páginas do livro, a obra chega aos cinemas com um dos melhores filmes do ano, mas, infelizmente, não será visto assim por todos.

A humanidade geralmente abomina o estranho. Aquilo que não nos é da nossa compreensão na nossa minúscula capacidade mental (e que muitos arrotam como se isso fosse uma grande vantagem!) geralmente repudiamos, transformamos logo em dejetos e ignoramos, sem ao menos tentar compreender. Aquilo que não nos agrada, que não é da nossa circunferência social, do nosso habitat, está fadado à ignorância e em alguns momentos ao esquecimento. Como o conto de fadas de Hans Christian Andersen, onde um pato diferente de seus irmãos é denominado de feio e de certa forma abandonado, "Perfume: A História de Um Assassino" visivelmente será rejeitado pelo público geral e não será visto com os olhos que percebem o Cisne que há nas entrelinhas de uma produção tão audaciosa.

Lançado pelo escritor alemão Patrick Süskind em 1985, o livro se tornou um dos mais vendidos na literatura alemã e vendeu milhões de cópias pelo mundo todo. A história fala do jovem Jean-Baptiste Grenouille. Na França do século XVIII, nascido de uma mãe promíscua e deixado para morrer após o parto, o jovem bebê resolveu lutar por sua vida no mundo. Ele não tinha nenhum destaque a não ser o seu dom de um olfato apurado. A sua infância foi passando de pais adotivos a pais adotivos, largado em orfanatos, sofrido e marcado por cicatrizes de uma infância adversa. Ao descobrir que a vida se descortinava muito além daqueles lugares fétidos onde vivia, ele marcou um objetivo para si. Com a cobiça de descobrir e sentir todos os cheiros existentes no mundo, ele passa a viver sua vida para realização deste sonho. Sem ter quem o ensine o que é certo ou errado, diferenciar a vida da morte, vivendo senão a partir do seu código de honra, que não vai além da concretização de perpetuar os novos cheiros ("Ah! E que cheiros!", como diz Süskind, em suas páginas da obra-prima), ele viverá a sua curta vida. Sobrevivendo às dificuldades da vida francesa daquele século. Logo, se torna pupilo do grande perfumista Baldino (interpretado corretamente pelo consagrado Dustin Hoffman), que se encontra em decadência após a grande descoberta de seu rival, que lança a mais nova sensação da França, chamado "Amor e Psique". Com o grande dom de Grenouille, Baldino consegue voltar à ativa em seu ramo em troca de ensinar os truques da criação dos perfumes e as essências. É aí que o personagem principal se depara com o mito das 13 principais essências. Criado pelos egípcios, reza a lenda que as principais essências para se criar qualquer perfume no mundo se baseava nessas 13 essências, porém encontradas e catalogadas só haviam sido um total de 12. Grenouille, em busca de encontrar as suas 13 essências, muda-se para a cidade onde todos os perfumistas haviam aprendido a sua profissão. Lá ele se depara com uma bela jovem, Laura Richis, que logo se tornará objeto de uma das suas essências. Na sua inocência em busca do seu objetivo, Grenouille infelizmente se torna uma das pessoas mais procuradas e perigosas, espalhando um temor e terror pela cidade que ele nem é capaz de compreender.

Um dos fatores mais impressionantes nos últimos tempos é que no cinema estamos acostumados a uma linguagem única. Uma história destrinchada e auto-explicativa, baseada, claro, no nosso regimento social. Abrangendo algo além dessas fronteira, o cinema pode chegar a se tornar (para muitos) uma experiência torturante. Então, a audácia e o original vêm dando lugar ao comum. Não é longe da nossa realidade ouvirmos alguém comentar que já viu um filme, quando ao explicamos uma história, sendo que nem mesmo este filme ao qual nos referimos chegou às telas de cinema, ou é a primeira vez que é exibido na televisão. É visível que a pessoa não poderia ter visto o filme, porém a semelhança das histórias nas últimas décadas tem sido tamanha que, quando algo realmente novo ou audacioso chega às telas de cinema acaba sendo rejeitado pela maioria, justamente por não possuir mais a prática de exercer a imaginação ou aceitar o novo, ou sequer ao menos estar aberto a novas experiências.

É justamente por esses fatores que é quase certo que "Perfume: A História de um Assassino" possa se tornar tão incompreendido. Fadado ao mesmo destino do jovem personagem principal da história, o filme de Tom Tykwer será simplesmente renegado por grande parte do público (assim como foi visível esse ato durante a pré-estréia do longa).

Trazendo um personagem muito além do auto-explicativo, Jean-Baptiste Grenouille é a encarnação da inocência. Alguém que possui um vocabulário que não ultrapassa dos nomes das coisas ao qual já conhece pelo cheiro, que não conheceu o amor, e que, desde os primeiros segundos de sua vida, já foi marcado pela morte. Além disso, ele também traz em si uma maldição. Carregado pelas marcas da vida ele nunca conheceu o que realmente seria o amor, e é nos cheiros que a sua vida se resume.

Mas como trabalhar em imagem algo que pertence a um outro patamar: o patamar dos sentidos? Não que o cinema não seja receptivo através da visão que é um dos sentidos, mas como trabalhar algo tão subjetivo como os cheiros? Essa seria uma das principais dificuldades que o diretor enfrentaria. Porém aquele que trouxe o aclamado "Corra, Lola, Corra" consegue transpor para as telas, com uma verdadeira graciosidade, as entrelinhas do livro, trazendo consigo um verdadeiro harém de sentimentos implícitos em olhares, gestos, imagens, sons e trilhas sonoras.

Note que não há um elemento em "Perfume – A História de Um Assassino" que não seja repleto de sentidos que rebuscam no espectador o aguçar da imaginação, seja ele para imaginar o sentir dos cheiros que este apresenta, seja para fazer compreender os turbilhões de sentimentos que surgem dentro da cabeça da personagem principal. É aí justamente onde mora o perigo do filme. Sendo apresentado em uma época onde boa parte da inocência morre ainda nos anos tenros, pode se tornar difícil ao espectador fazer uma conexão direta com a forma de viver ou pensar da personagem, embora este seja bem trabalhada pelo diretor, muitos já estão fechados justamente por serem condicionados por um "behaviorismo" cinematográfico de apresentar aquilo que deve ser compreendido, e não aquilo que deve ser imaginado para então ser assimilado.

Atores que se encaixaram perfeitamente aos seus papéis, uma direção impecável e uma trilha sonora belíssima composta pelo diretor e tocada pela orquestra filarmônica de Berlim, é até difícil de acreditar que filmes assim ficassem fora de premiações grandiosas, porém seus devidos reconhecimentos foram dados nos festivais de cinema da Bavaria, na Alemanha e outros festivais europeus. E seria impossível não falar de Ben Whishaw, que conseguiu captar, não só fisicamente, mas psicologicamente todo o sofrimento da personagem principal do filme e afirmo ser injustiça o jovem ter ficado fora de premiações como melhor ator. Esta aí uma grande revelação para o cinema no futuro.

Claro que nem tudo é perfeito e infelizmente o filme se deixa levar em detalhes, que, mesmo cruciais para a compreensão da história, acabam por tirar alguns créditos excelentes da obra e abusam até mesmo da receptividade daquele espectador mais aberto a novas experiências cinematográficas. A projeção do filme, que acaba por se alongar demais, perdendo o ritmo em alguns momentos, e se deixando levar por minutos a mais do que o necessário na projeção, podendo cansar o espectador durante o processo, que mesmo que saia extasiado pela experiência do filme, poderia ter ficado talvez com 20 minutos a menos de projeção.

Não é por falta de sistemas cognitivos usados pelo diretor que o filme se torna para alguns inaceitável, mas sim por uma capacidade inapta de um cinema hollywoodiano que transformou a cultura em uma massificação já não tão mais barata, imersa em um espetáculo quase pirotécnico aos olhos do espectador, o que sinceramente não é ruim, e por obras miraculosas ainda existem pessoas no mundo, que não se deixaram levar pelo espetáculo da sociedade globalizada, e que em raros "insights", conseguem dar luz a uma obra tão peculiar e maravilhosa como esta.

Leonardo Heffer
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