Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 20 de janeiro de 2007

Babel

Depois de tanto incomodar com o marketing pesado que foi investido em seu nome, "Babel" chega para mostrar o que muitos já esperavam, mas poucos conseguiam acreditar: mais um filme denso que fecha a trilogia do diretor Alejandro González Iñárritu e o consolida como um homem inteligente capaz de tornar eficaz até o mais simples dos fatos.

Depois de arrastar admiradores em todo o mundo com os famosos "Amores Brutos" e "21 Gramas", Iñárritu pôs fim com “Babel” ao seu projeto ousado de montar três filmes cuja estrutura não é convencional e que narra a história de personagens que possuem alguma ligação entre si. No novo longa-metragem, o roteiro de Guillermo Arriaga toma como ponto de partida os princípios bíblicos da Torre de Babel e nos transporta a um universo incomunicável, preconceituoso, egoísta e impiedoso ao qual somos rodeados. "Babel" mostra-se um verdadeiro ensaio sobre as divergências culturais e os limites dos seres humanos, deixando o intimismo de lado e partindo para uma história mais pretensiosa e que não tem medo de parecer redundante. Na trama, Richard (Brad Pitt) e sua esposa Susan (Cate Blanchett) estão viajando por Marrocos quando um tiro atinge o ônibus em que estavam, ferindo gravemente Susan. A partir desse fato, vamos presenciando de forma não-linear as conseqüências dele para vários personagens em diferentes partes do mundo. Os garotos marroquinos que brincavam com um rifle sofrem com o incidente, enquanto os filhos do casal são levados ao México para uma festa de casamento do filho da empregada e uma japonesinha vive os hormônios da juventude e as dificuldades por ser uma surda-muda.

O que se observa logo de cara é que "Babel" não é para qualquer espectador. Cheio de metáforas cotidianas e um roteiro intenso, não me surpreendo se durante a metade do longa algumas pessoas já estejam cansadas e loucas para sair da sala e continuar suas vidas normalmente. Para aqueles que gostam de apreciar o lado bom da sétima arte, será um prato cheio que causa uma satisfação final de realmente ter assistido a um filme de qualidade, original e inesquecível. Depois de vencer recentemente o Globo de Ouro na categoria de Melhor Filme Dramático, batendo o pop e quase cult "Os Infiltrados", o que faz da película de Iñárritu superior são as dimensões que sua abordagem proporciona não somente aos personagens, mas ao público que fica extremamente passivo com o decorrer dos fatos. Sabendo dosar o lado social com o político, o que temos é um filme bastante metódico, que não foge de algumas convenções, mas trata com um humanismo rebuscado a situação de cada personagem. O que tenho percebido nas produções cinematográficas mais recentes é que estamos saturados de idéias. É bastante raro achar um filme cuja originalidade seja impecável e que os estereótipos ou caricaturas não existam e com "Babel" não seria diferente, mas coube ao diretor e roteiristas darem o melhor tratamento à película para fugir desse lugar comum e isso tem sido o objetivo principal de muitos cineastas: não abandonar os clichês, mas dar uma nova roupagem a eles.

O roteiro de Arriaga constrói mais uma história fechadinha e completamente decente. Sempre cutucando e não tendo o medo de investir em diálogos e situações ousadas, Arriaga marca "Babel" por um pessimismo decorrente dos atos drásticos dos seres humanos. Essa visão maligna de uma sociedade hipócrita e egoísta circula a vida dos protagonistas e acaba enfrentando um paradoxo interessante, pois causa um certo distanciamento deles com o público, já que, ao mesmo tempo que eles são vítimas, percebemos que eles mesmos poderiam ser os causadores de malefícios, pois também são seres humanos. Isso faz com que não passamos necessariamente a torcer para que eles tenham um final feliz e não nos apegamos ao carisma de nenhum deles, o que pode chatear alguns. Não existe uma relação íntima criada pelo roteiro e particularmente achei isso positivo visto que o objetivo da trama não é mostrar melodramaticamente que existem pessoas "boas" e "ruins", mas que se elas existem hoje em dia foi decorrente de uma trajetória um tanto quanto trágica dos moldes da sociedade. Os diferentes universos que são mostrados em cena acabam culminando em uma semelhança só: o fato de estarmos expostos a iguais ironias da vida e sermos levemente impotentes para conseguir resolvê-las. Arriaga amarra com grandeza o público e não dá tempo para que respiremos. Sempre atacando, consegue despertar o interesse na história mesmo não usando tanto recortes na montagem como foi feito em "21 Gramas", sendo bem mais enxuto, o que acaba dando uma objetividade maior à trama.

Iñárritu consegue demonstrar sua inteligência do mais simples plano até o mais elaborado. Ajudado por uma fotografia e trilha sonora impecáveis, a condução do longa, por mais que seja lenta e carregada, acaba provocando o efeito necessário no espectador, que passa a se indignar, se revoltar e até se identificar com algumas situações, mas o distanciamento causado pelo roteiro provoca limites entre ficção e realidade bastante discutíveis. O diretor é dotado de idéias maravilhosas e particularmente a que mais me agradou foi ao tratar no núcleo japonês da personagem surda-muda. Os paralelos que as situações que Chieko vive são interessantíssimos e o tratamento do áudio que Iñárritu investe para passar ao espectador como é a vida de alguém deficiente auditiva são louváveis. Esses pequenos detalhes foram fundamentais para construir um todo complexo e que seja aproveitável em todos os sentidos. Por mais que haja alguns exageros no decorrer da trama, não atrapalha no seu bom andamento. A facilidade de extrair de cada cena o supra-sumo do caráter de seus personagens e do ambiente em que vivem, da comunicação e das suas ambições são inegavelmente fantásticos e por terem sido tratados com densidade e, principalmente, humanidade é que transformam "Babel" em um filme que vai além do político-social, cutucando as piores feridas culturais e pessoais de cada um.

Como se não bastasse a exímia parte técnica, o elenco não deixa a desejar em nenhum momento. Por mais que Brad Pitt e Cate Blanchett provoquem um tom muito hollywoodiano à trama, é inegável que suas participações tenham sido competentes. Pitt, coberto de uma maquiagem de envelhecimento, consegue interpretar o marido frustrado à beira de perder sua esposa tão querida e Blanchett não apieda o público com sua situação, mas passa uma credibilidade imensa de quem foi vítima de um incidente terrível levando em consideração aquela velha máxima de que "estava no lugar errado na hora errada". As maiores surpresas em termos de atuação ficaram mesmo com Rinko Kikuchi e Adriana Barraza, que mostram total dedicação a seus papéis. Kikuchi, além de ser o símbolo de uma juventude moldada pelo contemporaneidade que só aceita um jovem se for "descolado" ou "perfeitinho", é um dos personagens mais densos da história toda. Vivendo a perda de uma mãe e uma relação não tão amável com seu pai, sua deficiência auditiva é vista como um dos fatores principais para suas frustrações. É como se isso a impedisse de ser desejada por um homem ou de viver intensamente as noitadas japonesas. Já Barraza faz de Amélia o exemplo de uma boa atriz em um papel maravilhoso. Também se abstendo da piedade do espectador, seus lamentos e choros pelo destino trágico que marcou seu personagem ao levar os filhos de seus chefes ao México apenas mostram a injustiça das autoridades incompetentes das nações, o que nos transporta para um realismo inegável. Já Gael García Bernal e Kôji Yakusho passam quase despercebidos e tinham tudo para crescer dentro da trama, mas infelizmente não aconteceu.

"Babel" vem dividindo os críticos mundiais quanto à sua originalidade e competência. Alguns acham que o diretor Iñárritu abusou da sorte de ter ficado em ascensão para construir um filme comercial e faminto por premiações, enquanto outros já acreditam na tese de que é mais um retrato da realidade que foi bem registrado. Opiniões a parte, existem fatos e fatos. "Babel" pode não ser o melhor dos três desenvolvidos pelo diretor, mas com certeza tem seus méritos técnicos que funcionaram perfeitamente. Mesmo sendo um pouco mais prático e menos "confuso" que "21 Gramas", seu pessimismo e sua coragem de denunciar a fraqueza da sociedade mundial geraram uma abordagem fantástica, adorada não só pelos festivais de cinema mundo afora, mas também pelo público que clama por boas produções. Não adianta pegar no pé ou desmerecer o trabalho final de "Babel", e neguem o quanto for, mas ele é um dos melhores do ano e vai continuar sendo premiado por isso. Não que prêmios importem, mas pelo menos condecoram o bom e árduo trabalho desenvolvido e servido de bandeja para os cinéfilos do mundo todo. Além de polêmico, imperdível. E que o Ibope suba!

Diego Benevides
@DiegoBenevides

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