Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 21 de janeiro de 2007

Perfume: A História de um Assassino

"Perfume – A História de um Assassino" é um filme para um público seleto: cheio de simbologias e uma trama demasiadamente excêntrica, dificilmente irá agradar a quem busca apenas uma boa diversão e entretenimento. Para os mais analíticos, o filme é pura poesia, uma verdadeira obra de arte.

Quando escrevi sobre "Donnie Darko", afirmei que nossa sociedade contemporânea está acostumada a seguir um caminho homogêneo, e filmes que possuem um conteúdo bem mais profundo do que simplesmente está diante de nossos olhos dificilmente têm boa aceitação. Sem dúvidas, esse é o caso de "Perfume – A História de Um Assassino", baseado no livro "Das Parfum", do alemão Patrick Süskind. Visto superficialmente, a adaptação chega a atingir a bizarrice pela aparente falta de sentido em muitos detalhes, mas, para quem procura análises profundas em situações complexas, o filme é de uma genialidade admirável. Aos que vão assistir se baseando pelo trailer, fica o aviso: ele foi vendido de maneira errada, pois nem de longe se assemelha a um thriller de psicopata, a nível de "Hannibal".

Século XVIII, França. Jean-Baptiste Grenouille (Ben Whishaw) nasceu em circunstâncias adversas, em um mercado de peixe em Paris. Ainda muito jovem, percebe que possui um talento único de discernir os cheiros ao seu redor, fato que caracteriza a refinada percepção olfativa do rapaz. Após sobreviver às péssimas condições de trabalho numa fábrica de couros, Grenouille torna-se um aprendiz da perfumaria de Baldino (Dustin Hoffman). Logo, supera seu mestre na manipulação de essências. No entanto, estranhamente, ele começa a ficar obcecado pela idéia incessante de capturar o irresistível aroma de uma jovem adolescente. Com a sua obsessão tornando-se mortal, Grenouille mata doze garotas. O pânico invade as pessoas, que correm para proteger as suas filhas, enquanto Grenouille ainda procura o ingrediente final para compor o seu aroma ideal.

Não tem como negar que a história não é das mais comuns, e a questão de matar várias mulheres para se fazer um perfume pode até parecer ridícula vista de uma maneira vaga. Mas, ao longo da projeção, ficamos atentos a cada movimento do personagem principal, todo o complexo contexto que o cerca, e até ficamos em dúvida se torcemos para que ele atinja seu objetivo ou seja punido antes. Para isso, o roteiro escrito por Andrew Birkin, Bernd Eichinger e pelo próprio diretor faz muito bem o serviço de apresentar o personagem desde o seu nascimento e todo o contexto que o cercou durante toda sua vida: a rejeição da mãe, a criação dura num orfanato, o trabalho escravo na lavoura, até a criação de sua autonomia, que se resumia unicamente a seu dom, o olfato. Assim, acompanhar as transformações se torna algo instigante para o espectador, principalmente pelo clima sempre denso e perturbador dado pelo diretor.

Paradoxalmente, esse excesso de detalhes acaba se tornando o maior defeito, pois, com longos 147 minutos de duração, há uma inconstância na emoção. Começa extremamente interessante, acontece uma brusca queda de ritmo na metade, deixando o longa um tanto cansativo – mais precisamente, o período em que o protagonista aperfeiçoa sua habilidade de fabricar perfumes -, até recuperar a tensão nos momentos finais. Essa inconstância é mais prejudicada ainda pelo péssimo trabalho de edição de Alexander Berner, marcada por cortes bruscos nas mudanças de núcleos, principalmente nas mudanças de cenários escuros para paisagens claras, acontecendo de um modo muito espontâneo diversas vezes, quase cegando o espectador.

Mas a grande beleza do longa está na sua subjetividade, nas mensagens contidas no plano de Grenouille. Para isso, muito boa a idéia da inclusão de um narrador (o veterano John Hurt), com a narrativa em terceira pessoa. Afinal, alguns sacrifícios valem o preço de um momento intenso de prazer, de realização? Alguns sacrifícios valem o preço para enfim, ser amado, após uma vida marcada por sofrimentos? Esses são algumas questões que valem reflexão ao término do filme. Destaque também para a trilha sonora feita pela orquestra filarmônica de Berlim. Um trabalho lindíssimo, que consegue transpor o espectador para o clima poético do filme, e ajuda mantê-lo cada vez mais encantado (efeito semelhante ao do Perfume do protagonista).

Há de se convir que o grande clímax, quando Grenouille expõe sua "obra", a referência ao quadro orgíaco "A Morte de Sardanápalo" de Eugène Delacroix, apesar de demasiadamente exagerada, é um espetáculo visual. Necessária ao que propunha, bem dirigida – o momento em que Grenouille é chamado de filho por um certo personagem importante é emocionante -, porém muito exagerada. Outro ponto interessante é a poesia contida nos cheiros, de modo que cada perfume tem um significado coerente na vida, e é simplesmente impossível não passarmos o filme inteiro imaginando os possíveis cheiros dos perfumes. Muitos pensarão, "Ah se cinema tivesse cheiro!". No fim das contas, uma bela pergunta fica em nossas cabeças: qual seria o cheiro da resignação, do prazer?

Já conhecia o trabalho do diretor Tom Sykwer do ótimo "Corra, Lola, Corra!", mas, pela primeira vez, passei a analisar seu trabalho com outros olhos. Seu trabalho em "Perfume" é algo digno de congratulações. Sua direção desde o início consegue nos jogar no mundo perturbador vivido por Grenouille, e, para isso, ele utiliza técnicas de câmera muito criativas. Logo na primeira cena, reparamos no talento do diretor, ao mostrar o personagem principal que ainda desconhecemos totalmente no escuro e quando esse se inclina, apenas seu nariz é iluminado, dando ênfase no principal ponto dele e, conseqüentemente, do filme. Não seria exagero dizer que a cena de seu nascimento é um dos momentos mais perturbadores dos últimos anos no cinema, em que o diretor abusa do uso de muitos frames em curtos intervalos de tempo, fazendo um montante de imagens demasiadamente angustiantes, apresentando de uma maneira peculiar o dom do recém nascido em meio ao abominável mundo que o cerca. Ainda, Sykwer é muito bem sucedido ao visar detalhes pequenos, como os vermes contidos dentro de um rato que é cheirado por Grenouille, deixando o espectador cada vez mais a par do seu dom. Um trabalho genial!

O fato é que toda a qualidade do longa poderia ir para o espaço se o ator principal não tivesse competência, mas o novato Ben Whishaw impressiona, dando ao personagem toda a complexidade que ele exige. Sua escolha foi acertada desde pela sua aparência penosa (sua magreza chega a perturbar, a exemplo do papel de Christian Bale em "O Operário") como pelo seu ar de ingênuo, que o jovem astro soube dosar com um exímio talento dramático. Impressionante como, apesar de Grenouille matar garotas, não conseguimos ter raiva dele e até criamos identificação, devido sua ingenuidade. Chega até ser forte rotulá-lo como assassino, já que ele não tem a menor intenção em tirar a vida de alguém e apenas o faz para fabricar seu perfume, que, por sua vez, trará todo um poder de mudanças em sua vida. Levando em conta toda sua vida sem saber o que é o amor, o tempo todo mantemos uma impressão imparcial sobre sua culpa. Para se ter idéia do bom desempenho do ator, toda a complexidade do personagem pode ser retratada em dois momentos: quando ele percebe que, acidentalmente, fez sua primeira vítima; e, quando olha diretamente nos olhos de sua última vítima. Um olhar que possui milhares de valores.

Completando o elenco, o veteraníssimo Dustin Hoffman, que vive o perfumista que se torna mestre de Grenouille, apenas dá seu ar de graça levando peso à produção em um personagem que, apesar de pouco tempo em cena, tem uma importância crucial à trama. Um desempenho apenas normal levando em conta seu vasto histórico, e, convenhamos, vê-lo com uma maquiagem ridícula e peruca foi algo cômico. O também veterano Alan Rickman entrega a seu personagem, o pai de uma bela jovem da região, uma forte presença, mas, em muitos momentos, ainda se tem a impressão de que quem está atuando é o robótico professor Severo Snape da franquia "Harry Potter". A atriz Rachel Hurd-Wood, de apenas 16 anos, tem a missão de levar beleza à produção, o que é feito de fato. Pena que a ingenuidade da personagem não foi muito bem abordada pelo roteiro, impossibilitando a atriz de apresentar um melhor desempenho.

"Perfume – A História de Um Assassino" é um filme denso do começo ao fim, bem diferente dos filmes tradicionais e definitivamente não é indicado para qualquer um. Posso comparar o filme às obras literárias de Paulo Coelho: perguntem a opinião de várias pessoas, e muitas amarão, e muitas odiarão, sem meio termos. Sem a preocupação de atingir a massa e priorizando a arte pura, o diretor Tom Sykwer consegue apresentar um trabalho tão brilhante quanto estranho. E isso, caros amigos, se chama criatividade, algo um tanto em falto na sétima arte!

Thiago Sampaio
@

Compartilhe

Saiba mais sobre