Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 26 de dezembro de 2006

Ilusionista, O

Embora possua um final pífio, "O Ilusionista" é um bom exercício de cinema deste fim de ano, com impecável reconstrução ambiental, sobre o tema da ilusão.

O termo ilusão, sabemos, se refere a alguma coisa capaz de produzir impressão falsa ou enganosa da realidade, enquanto o ilusionismo se define como uma técnica (ou técnicas) de usar métodos pictóricos para iludir o olho de quem os contempla. A impressão deixada pela pintura de uma janela na parede, por exemplo, pode ser real a ponto de o contemplador pensar tratar-se mesmo de uma janela e dirigir-se para abri-la. Os franceses chamam esse efeito de "trompe l´oeil". No cinema, a imageria de um cineasta pode criar aparências enganosas e perturbadoras.

Este pequeno prólogo vem a propósito de "O Ilusionista" (The Illusionist) (2005), de Neil Burger, um bom exercício de cinema deste fim-de-ano, com impecável reconstrução ambiental, sobre o tema da ilusão, pois dele partem e para ele convergem subtemas como a luta de classes, o misticismo, a revolta popular contra o absolutismo dos poderosos, a mistificação de fundo religioso, a suposta entidade superior capaz de transcender a matéria e sobreviver no além, a natureza do real, o confronto entre a eterna superação do velho pelo novo e a arte de manipular, aqui significando dominar ou influenciar as pessoas de forma desleal via lisonja, mentira ou artifício.

Um triângulo amoroso, parecido com inúmeros outros já levados à tela, conduz-nos ao "texto" visual adaptado (nem sempre para o melhor pelo diretor-roteirista) de um conto de Steven Mullhauser. Sophie, a Duquesa de Teschen (Jessica Biel), é disputada por dois homens: Edward, depois Eisenheim (Edward Norton), o ilusionista, e o príncipe Leopold (Rufus Sewell). O primeiro foi amor adolescente de Sophie, mas o filho de Sua Majestade quer casar-se com ela, estão noivos, até mesmo pelo interesse no poder político, pois as ações ocorrem em meados do apogeu do império Austro-Húngaro (1867-1918), quando Áustria e Hungria formavam dois reinos separados sob uma coroa. Pequenos "flashes" do passado, pela voz "over" do inspetor de polícia Uhl (Paul Giamatti), fiel ao príncipe, nos mostra Edward desde garoto, quando encontra velho mágico na floresta, pronto a "evaporar-se", junto com a árvore sob qual descansava, para espanto de quem se tornaria um ilusionista. As mágicas encenadas e os bastidores do teatro ocupam boa parte do tempo, assim como a movimentação de policiais e agentes infiltrados acentua o clima repressivo. A diferença de classe entre os jovens os separara e o reencontro se dá muitos anos depois, quando ela já está comprometida.

A composição de Leopold como vilão, mau caráter, às vezes bêbado, violento, capaz de esbofetear sua futura mulher, nos pareceu um tanto forçada, levando a platéia para o lado do par romântico. Leopold é como se fosse a metonímia de uma monarquia velha e decadente. A tensão vai decorrer desse conflito triangular, com Leopold em segundo plano, enquanto os amantes estreitam laços a partir de quando dormem juntos pela primeira vez. Essa única cena íntima é feita com sutileza, mostrando-nos apenas os dedos entrelaçados, enquanto a câmara se movimenta lentamente em volta do casal para logo revelar a expressão feliz de Sophie no depois. Só nos pareceu pouco provável aquele brusco tirar de roupas, quando a jovem tenta abrir a camisa de Eisenheim. É como se a cena se passasse hoje, quando os costumes são outros.

Na direção cinematográfica, Burger se sai melhor em relação ao seu roteiro. Um dos acertos reside em colocar o espectador como se fosse alguém da platéia: vemos do ponto-de-vista de quem pagou ingresso para aplaudir o ilusionista. Outro foi a cena de cunho simbólico na qual Eisenheim faz um truque com a espada fixando-a no assoalho e nenhum dos presentes logra arrancá-la. Só Leopold o consegue com esforço, após desfeita a mágica. Também a caminhada do inspetor Uhl, com a "dolly" recuando e a câmera baixa enquadrando-o à la Welles e sem imagem tremida, bem assim as cenas noturnas dos cavalos negros montados pelos policiais em trote lento e as das carruagens em contraste com as sombras das ruas (o filme foi rodado em Praga e algumas vezes em Berlim, simulando a Viena daquela época).

Os cenários sugerem eficiente desenho de produção e "storyboards" atentos aos detalhes. As formas motovisuais encontram na harmonia dos ritmos interno e externo o caminho adequado para o desfecho surpreendente, embora saiamos do espetáculo mais ludibriados e menos surpreendidos. Isso porque Burger quase desperdiça todo o esforço desenvolvido ao longo do filme, ao ensaiar uma experiência de fundo sobrenatural, quando só no cinema os mortos ressuscitam e os vivos viram cadáveres em circunstâncias inverossímeis. Daí a frustração de quem assiste ao filme diante daquele "grande" truque de Eisenheim… Não há como discordar da jornalista Érika Liporaci, quando afirma ser a seqüência final "um clone descarado de 'Os Suspeitos'", de Bryan Singer (1995).

A fotografia do inglês Dick Pope (BSC) é sobresselente, como se nos transportasse para outros tempos. Das melhores a partitura de Philip Glass e os atores têm saldo positivo, notadamente Giamatti, com maior presença nos eventos. Válida sua evolução como personagem, quando se conscientiza da vilania de Leopold, ele o perigo e não Eisenheim. Seu riso no epílogo, quando revela ter percebido o engodo, é um achado para quem tem um intérprete desse nível. Norton já nos chama atenção há muitos anos, desde quando fez "As Duas Faces de um Crime" (Primal Fear), de George Hoblit (1996), "A Última Noite" (The 25th Hour), de Spike Lee (2002). Jessica Biel apenas posa com seu rosto sedutor. O elenco secundário cumpre sua função. A ver, apesar do inverossímil arranjo final, um desapreço à inteligência do espectador.

L.G. de Miranda Leão
@

Compartilhe

Saiba mais sobre