Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 03 de janeiro de 2007

Céu de Suely, O

Este filme do cineasta cearense Karim Aïnouz é mais um passo à frente e referência importante para quem se inicia na carreira. Deve ser visto para sentir com o nosso cinema tem melhorado com o decorrer dos anos.

Em fala recente, o cineasta Wálter Salles (1956-) se referiu a narrativas cinematográficas de quem acredita na força expressiva das imagens envoltas em silêncios, dos espaços em branco ou das elipses a serem completadas pelo espectador. Suas palavras parecem conduzir-nos a este "O Céu de Suely", segundo longa do cearense Karim Aïnouz (1966-), bem sugestivo da evolução do nível qualitativo do nosso cinema.

Embora ainda esteja distante o caminho para ombrear-nos aos grandes, poderemos chegar lá, se o permitirem a seriedade profissional, o olho vivo nos temas a serem escolhidos e a competência técnica decorrente do estudo e da experiência acumulada. No seu primeiro longa, "Madame Satã" (2003), Aïnouz parece ter desperdiçado um tema rico sobre notório homossexual e brigão da Lapa, no qual o diretor se permitiu alguns excessos no trato do personagem, tangenciando o barroco. Agora em "O Céu de Suely" ele se sai bem melhor e abre a porta para o universo feminino – uma metonímia na qual ela representa várias mulheres em situação semelhante. Depois de abrir essa porta, como disse um analista, será difícil fechá-la.

Exibido nos Festivais de Toronto e Veneza, o filme é mais um passo à frente e referência importante para quem se inicia na carreira. O roteiro de "O Céu de Suely" foi escrito por Felipe Bragança, Maurício Zacharias e pelo próprio Ainouz. Jovem mulher imatura, semi-analfabeta, retorna a Iguatu, sua cidade natal, com o filho de alguns meses. Vai morar com a avó enquanto espera a volta do pai da criança. Na solidão de sua vida, nas dificuldades de dinheiro e na falta de perspectivas, Hermila (de propósito com o mesmo nome da atriz) resolve rifar garrafas de uísque e depois colocar-se ela mesma na rifa, como Suely, prometendo ao vencedor "uma noite no paraíso".

A idéia é ir fazendo um pé-de-meia e voltar para outra cidade grande. O prólogo de tudo isso, com imagens granuladas (efeito fotográfico especial, intencional no caso, com o qual se confere aparência arenosa ao positivo), talvez queira retratar momento fugaz de felicidade de Hermila abraçada ao namorado. Pareceu-nos mais adequado suprimir essa cena inicial ou utilizar fusões de tempos menos desafortunados na vida dela, mas aí caímos no subjetivo: é tudo uma questão de escolhas.

Não será fácil à protagonista encontrar seu lugar numa sociedade onde não lhe cabem alternativas. Para onde for – fica no subtexto – seu futuro será tão estéril, opressor e preconceituoso quanto seu passado o foi em Iguatu ou na metrópole. Um plano significativo a sugerir alguma esperança no amanhã de Hermila/Suely fecha o filme.

No entanto, os personagens de ficção, mesmo quando se inspiram em figuras ou fatos reais, devem evoluir na progressão dos eventos, para melhor ou para pior. São os chamados "round characters" dos quais nos fala o autor inglês E.M. Forster em seus judiciosos escritos. Hermila não evolui ao longo da narrativa, procura vencer honestamente na urbe, não consegue, tenta a prostituição como Suely e também fracassa para retornar com o filho ao meio do qual saiu. O retorno do pai, uma quimera. Destaque-se a criatividade de Aïnouz nos volteios da motocicleta, enquanto a câmera recua e Hermínia segue andando, acompanhada do pretendente, em segundo plano, ouvindo-se apenas o ronco intermitente do motor e o farol aceso.

Alguns planos longos propiciam naturalidade e realismo às cenas, embora a discussão entre ela e o namorado precisasse ser reescrita. Os desenquadramentos de Hermila (vista parcialmente ora no canto esquerdo ou no direito do retângulo) nascem de Aïnouz e naturalmente do trabalho de câmera do competente Wálter Carvalho, bastando lembrar o belo contraste do céu azul de nuvens algodoadas com o subdesenvolvimento físico da terra onde vivem os interioranos – imagens com as quais diretor e fotógrafo procuram transmitir sem virtuosismos o marasmo e a falta de horizontes de quem vegeta no subdesenvolvimento.

Quando Hermila e o seu rebento chegam a Iguatu, as imagens se tornam um significante da pequenez dos dois, diante da paisagem de sol inclemente. O rosto dela, captado na sombra, com reflexos da luz coroando sua cabeça, é um dos planos mais criativos da dupla Aïnouz-Carvalho. Quanto ao mais, poder-se-ia ter usado a steadicam para evitar imagens tremidas.

Os atores estão bem, notadamente Hermila Guedes. Sem ser bonita, envolve o espectador no fluido dos seus olhos sedutores, enquanto revela segurança como personagem e espontaneidade e desinibição nas fortes cenas de sexo. Quanto aos movimentos ritmados do homem, poderiam ter sido omitidos sem prejuízo do todo, bastaria captar as reações orgásmicas da mulher, fingidas ou não. Zezita Matos, como a avó, é uma senhora atriz. Sua reprimenda seguida da bofetada no rosto da neta é das melhores cenas já vistas em nosso cinema, bem assim o choro contido de Hermila ao pedir desculpas à velha. Flávio Bauraqui aparece rápido em momento sugestivo de intolerância, quando reage de forma inesperada ao encarar com revolta a oferta do próprio corpo por parte de Suely.

Georgina Castro marca presença como a amiga prostituta e Maria Menezes, a tia, insinua sua mal-disfarçada homossexualidade. Marcélia Cartaxo atua com sobriedade. Todas ficam devendo alguma coisa a essa excelente preparada de elenco, Fátima Toledo. A música de Berna Ceppas e a trilha sonora incidental complementam razoavelmente os momentos de tensão. A ver, para sentir como tem melhorado o nosso cinema.

L.G. de Miranda Leão
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