Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 15 de dezembro de 2006

O Que Você Faria?

O cineasta argentino Marcelo Piñeyro retrata em seu último projeto a maneira cruel como boa parte das multinacionais seleciona seus empregados atualmente.

Mais que dizer que o filme fala sobre a crueldade das entrevistas, é preciso dizer que trata de interação, manipulação de dados e ética (ou a falta dela). Com um orçamento considerado de baixo custo (US$ 3 milhões) e vencedor do prêmio Goya de roteiro adaptado, o filme narra a busca de sete candidatos a apenas uma vaga de emprego (a de Executivo) numa multinacional espanhola. O tipo de método que será usado nessa escolha: o tal método Grönholm, do qual nenhum dos candidatos (que aparentemente possuem experiência em entrevistas de trabalho) nunca sequer ouviu falar. Trata-se de uma maneira antiética de fazer com que os próprios candidatos se eliminem, fazendo com que a tensão entre eles só aumente. E mesmo com a habitual natureza humana (pelo menos da maioria) de fazer contato e estabelecer diálogos, torna-se difícil criar qualquer elo com uma pessoa que pode tirar a sua vaga a qualquer minuto, por melhor pessoa que ela seja. Afinal, é uma competição – como bem lembra um dos participantes -, e eles não estão ali para serem amigos, estão para disputar uma vaga.

As ralas oportunidades de emprego fizeram com que as pessoas aprendessem a encenar atitudes e situações para garantirem seu lugar no mercado. O que acabou fazendo um contraponto nos métodos de seleções usados pelos psicólogos: todos acabaram se acostumando de tal maneira com o processo, que se acostumaram a dissimular suas respostas com o claro intuito de dizer exatamente o que aquele empregador quer escutar. O processo seletivo se perdeu no seu próprio princípio: ao buscar a "verdade" da boca dos próprios candidatos (analisando suas respostas para daí tirar seus pontos positivos e negativos), ela criou uma fábrica de mentiras bem elaboradas, onde o profissional que acaba conseguindo a vaga é aquele que consegue fingir melhor o perfil que a empresa traçou.

O filme inteiro se passa na sala onde os personagens são constantemente testados e observados. Nos raros momentos em que se muda de local, continuamos dentro dos muros da empresa ou acompanhamos muito de longe da gaiola deles a movimentação de uma manifestação que acontece às portas do local onde eles disputam: as pessoas estão cansadas da maneira como as multinacionais agem, das falsas noções de princípios, dos falsos discursos e da loucura gerada pela alardeada globalização. Enquanto os sete estão lá dentro trancados, o mundo está pegando fogo. As pessoas estão ali fora dizendo que não podem mais tolerar aquela estrutura, que ela é falha e mais, que é falida. É como se lá dentro fechados, eles estivessem quase numa realidade paralela, num outro mundo.

As atividades que eles desempenham sucessivamente demonstram que as coisas nunca estão suficientemente ruins – sempre pode ficar pior. E adivinha? Existe a suspeita de que entre eles exista um falso candidato, ou seja, um representante da empresa que apenas os observa e avalia. A própria empresa os alerta disso – mais uma para eles lidarem. Ao proporcionar essa agonia também para os que assistem, a direção fez possível o difícil trabalho de interação entre os que ficam na frente da tela. Impossível não ligar situações que você mesmo já passou tendo estado em alguma dessas entrevistas de trabalho para grandes empresas. E chega-se num momento em que surge a questão na nossa cabeça: será que eles também não podem parar e pensar se é realmente naquele tipo de companhia que eles querem trabalhar? Será que aquilo ali vale a pena mesmo? Não só a empresa está avaliando, como também pode estar sendo avaliada. É como diz o personagem Enrique (Ernesto Alterio): "olhando por este ângulo…". Existem alguns bons ângulos para analisar nesse contexto.

O roteiro preciso (uma adaptação da peça de Jordi Galcerán por Mateo Gil e o próprio Marcelo Piñeyro) usa da psicologia entre personagens, e baseia-se bastante na interação que só bons atores conseguiriam extrair. Não é difícil vermos casos em que bons roteiros são sub-aproveitados pela falta de talento do elenco ou até mesmo da direção. Mas isso não aconteceu aqui. Bons atores argentinos e espanhóis foram escolhidos a dedo, e fazem o filme todo funcionar muito bem. Ora, imagine você a dificuldade em sustentar um filme praticamente todo passado dentre de uma sala!
Boa pontuação também fez o montador Iván Aledo, que soube aproveitar os melhores planos (sendo eles simples, limpos e eficientes) e traduzir na edição o bom desempenho da direção e das atuações. É um filme muito bem engendrado, que, eu repito, podia perfeitamente ter sido totalmente mal aproveitado, não fosse o ótimo trabalho das pessoas envolvidas em todas as áreas do trabalho.

Se você está esperando uma superprodução, e combinação básica de ação plus explosivos, esse não é o mais indicado. Mas se deseja um filme com base em diálogos e boas interpretações, pode ir tranquilo.

No debate, como não poderia deixar de ser, um dos pontos mais discutidos foi a ética das atuais entrevistas de emprego. Estavam presentes os debatedores Serafim Firmo Ferraz (professor de administração da UFC) e Ítala Melo (consultora de Recursos Humanos), que foi indagada a respeito do fato de que as empresas agora inclusive consultam o orkut dos interessados nas vagas e pasmem – até mesmo o SERASA e SPC. Ela confirmou que a maioria trabalha com isso, e que é inclusive muito comum. Mas será mesmo que isso é preciso, ou até mesmo ético? A intimidade da pessoa não deveria ficar resguardada?! E onde mesmo foi parar aquela história de que profissional X vida pessoal, assim, bem separados?!

Levando em consideração o que foi dito lá em cima sobre dissimulação, seria confuso afirmar que esse sistema pode ser realmente eficaz. E a menos que os psicólogos estejam trabalhando dobrado para identificar os dissimulados, é fato de que as pessoas acabam sendo treinadas a mentir e a serem recompensadas por isso. E ainda que trabalhassem dobrado, não se teria como ter certeza absoluta de quem fala a verdade ou não, certo? O que muito me preocupa, porque eu penso que é exatamente por conta desse "treinamento-dissimulatório" (péssima palavra, eu sei!) que as empresas acabam tentando entrar mais e mais na intimidade das pessoas. Então eu sinceramente me pergunto aonde isso vai parar, porque é absurdo. Nesse andamento, para conseguir trabalho agora você vai precisar se policiar vinte e quatro horas por dia, o que seria basicamente deixar de viver para criar uma nova identidade-social-de-emprego, ou algo do gênero. É assustador.

A polêmica foi tão grande em torno do assunto que eu quase fiquei com pena do mediador, Leonel Oliveira (administrador), que ficava já sem saber para quem dar a palavra, tamanha era a concorrência. Mas foi bom saber que as pessoas querem discutir sobre isso e que não estão realmente felizes com o processo.

Beatriz Diogo
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