Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 26 de janeiro de 2007

Viagem de Chihiro, A

Diferente de todas as animações hollywoodianas que já vimos, "A Viagem de Chihiro" é uma fábula fantasticamente linda, divertida e ousada, que certamente cativa o público do começo aos momentos finais.

O longa conta a história de Chihiro, uma mimada garota de 10 anos que está mudando juntamente com seus pais para uma nova cidade, mudança esta que a deixa furiosa. Em meio a lembranças de seus amigos que terá que deixar para trás, a garotinha percebe que seu pai se perdeu no caminho para a nova cidade e foram parar perto de um túnel aparentemente sem fim que é guardado por uma estranha estátua. Curiosos, os pais de Chihiro decidem entrar no túnel, mas a garotinha fica com medo. Apesar dos pedidos para voltarem ao carro, Chihiro acaba seguindo junto com eles para descobrir que ele leva a um mundo aparentemente deserto, onde existe uma cidade sem nenhum habitante. Famintos, seus pais decidem comer a comida que está disponível em uma das casas, enquanto que a própria Chihiro decide explorar um pouco a cidade. O que ela não sabe é que a cidade guarda vários segredos e habitantes estranhos. Logo, ela encontra com Haku, um garoto que lhe diz para ir embora da cidade o mais rápido possível. Seguindo o conselho do menino, Chihiro procura os pais e fica surpresa ao ver que eles foram transformados em gigantescos porcos, enquanto que misteriosos seres começam a surgir do nada. É o início da jornada de Chihiro em um mundo fantasma, povoado por seres fantásticos, no qual humanos não são bem-vindos.

Quem só conhece animação vinda dos estúdios da Disney realmente fica impressionado com a qualidade dos estúdios orientais. Conhecidos mais por desenvolverem desenhos animados e animes, poucos foram os que conseguiram abranger o cenário internacional do mundo cinematográfico e "A Viagem de Chihiro" é um deles, não só pelos prêmios conquistados mundo afora, mas por mostrar que se pode ter uma história não convencional que cativa tanto as crianças quanto aqueles mais crescidinhos, mesmo abordando um assunto aparentemente bobo e sem graça. Quem lê a sinopse jamais imagina o mundo de fantasia que invadirá sua vida depois de assistir ao longa. Cheio de personagens enigmáticos, símbolos fantásticos e um enredo envolvente, Hayao Miyazaki construiu "Chihiro" sem muita simplicidade e investiu em qualidade que começa pelo visual. As animações japonesas são conhecidas por valorizarem muito de sua cultura e reproduzirem um ambiente minimalista da sua nação, o que muitos acabam não compreendendo ou achando que isso é puramente descartável. O que tenho percebido é que isto tem ficado cada vez mais forte, não somente nos desenhos japoneses, mas também nos longas orientais ou nos americanos que acabam falando da cultura japonesa e constrói um espectro perfeitamente belo, mas este sendo mais comercial.

De qualquer forma, Miyazaki trata o roteiro com muita densidade e inteligência, trazendo à tona mitos e simbologias interessantíssimas que despertam a curiosidade do espectador, levando-o a um mundo aparentemente impossível, mas que não perde sua mágica. Monstros, fantasmas, bruxas e dragões são mostrados e cada qual em sua particularidade. Nenhum personagem passa tão despercebido da visão do espectador e a protagonista consegue passar lições importantes principalmente para os pequeninos, que envolvem coragem, determinação, superação e amor. Neste aspecto, "Chihiro" se diferencia de desenhos animados eventuais por não forçar a barra em nenhum desses momentos, deixando com que cada lição seja bem ilustrada e atinja naturalmente cada um que assiste. O pequeno Haku é outro símbolo maravilhoso trabalhado por Miyazaki. A proteção e a bondade são seus sinônimos e o amor inexplicável que sente pela protagonista é tão fora de estereótipos que ganha mais beleza ainda. O mistério usado não teve o compromisso em ser revelado por completo, o que reitera a atmosfera de magia onde a trama se encaixa. Personagens como o Monstro Sem Face são belos justamente por serem enigmáticos e permitirem que o público construa uma história particular para ele. E não posso esquecer de citar o Deus Rio, que aparece em um determinado momento totalmente desfigurado, e a heroína Chihiro, mesmo sem saber ainda sua verdadeira identidade, dá a assistência que ele precisa, trabalhando a temática do não-preconceito de uma forma impecável.

Miyazaki não tem talento só ao construir a história. Optando pelo desenvolvimento 2D da história, incluindo somente alguns efeitos computadorizados em cenas específicas, mostra eficácia. Por mais que o desenho à mão seja um recurso aparentemente batido visto as novas tecnologias 3D, o diretor não abriu mão de ser detalhista ao extremo, principalmente ao desenhar seus personagens. Sempre expressivos e não aparentando ser plásticos demais (defeito de algumas animações computadorizadas), trejeitos são delineados e a personalidade de cada um vai sendo registrada com o andamento da história. Claro que nem tudo é perfeito, até porque animações em 2D ainda passam por dificuldades que, particularmente, me irritam algumas vezes, como a falta de harmonia entre cenário e personagens, onde costumeiramente os cenários sofrem com a pouca profundidade de campo e as ações mais importantes ganham maior destaque. Mesmo assim, quando o cenário desenhado ganha espaço no longa, percebe-se um capricho especial para driblar isso tudo, que se dá no investimento das cores e dos movimentos em cena. Como se não bastasse, a trilha sonora é um ponto à parte, caracterizada pela sensibilidade com que foi encaixada e mixada com as emoções de cada personagem. Outro ponto impecável é a dublagem original, em japonês, que não peca em nenhum momento e mesmo que não entendamos nada, as entonações dos dubladores acertaram em cheio para não deixar os momentos engraçados ou críticos passarem em vão.

Diferente, instigante e ousada por apresentar um universo diferente das animações comerciais que enchem nossos cinemas todos os anos, "A Viagem de Chihiro" é uma mostra impecável de como pode-se ter uma história que foge de muitos clichês e passa várias mensagens que podem ser aproveitadas por todas as idades que o público tiver. Sem parecer bobinho e sem menosprezar a inteligência de ninguém, traz personagens exóticos e carismáticos que incrementam esta fábula imperdível a todo bom cinéfilo que goste ou não de animações.

Diego Benevides
@DiegoBenevides

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