Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 16 de janeiro de 2007

Os Infiltrados (2006): uma história contada com a maestria de um mestre

Martin Scorsese apresenta esta obra-prima do gênero policial. Com interpretações marcantes e um roteiro bastante bem desenvolvido, repleto de violência, "Os Infiltrados" é um filme extremamente nervoso, denso e realista. Sem mais rodeios, o melhor filme do ano.

Impressionante quando achamos que alguém já atingiu um status tão elevado a ponto de não ter mais o que melhorar em seu trabalho, e ainda assim nos surpreendemos. Esse é Martin Scorsese. O responsável por obras-primas como “Os Bons Companheiros”, “Touro Indomável”, “Cassino”, “Cabo do Medo”, entre outros, nos últimos anos vem recebendo críticas de que a qualidade de seus filmes vem decaindo, o que discordo plenamente. “Gangues de Nova York” e “O Aviador” foram bons filmes, mas o fato é que deixaram de lado todo aquele nervosismo característico das produções que o consagrou. Eis então que surge a informação de que ele iria voltar a dirigir um filme com o tema máfia – a refilmagem da produção de Hong Kong “Conflitos Internos” (2002) -, e no elenco estariam nomes de peso como Leonardo DiCaprio, Matt Damon, o veteraníssimo Jack Nicholson (só o fato de ver a reunião inédita de Nicholson e Scorsese já é algo animador), Mark Wahlberg, entre outros. As expectativas não poderiam ser pequenas, ainda mais após o longo período em que o filme foi desenvolvido, e, mais uma vez, o cineasta surpreendeu: não só apresentou seu melhor filme desde “Os Bons Companheiros”, como deu uma nova visão ao gênero policial.

A polícia trava uma verdadeira guerra contra o crime organizado em Boston. Billy Costigan (Leonardo DiCaprio), um jovem policial, recebe a missão de se infiltrar na máfia, mais especificamente no grupo comandado por Frank Costello (Jack Nicholson). Aos poucos, Billy conquista sua confiança, ao mesmo tempo em que Colin Sullivan (Matt Damon), um criminoso que foi infiltrado na polícia como informante de Costello, também ascende dentro da corporação. Tanto Billy quanto Colin sentem-se aflitos devido à vida dupla que levam, tendo a obrigação de sempre obter informações. Porém, quando a máfia e a polícia descobrem que entre eles há um espião, a vida de ambos passa a correr perigo.

“Os Infiltrados” mostra a genialidade desde os minutos iniciais: em cortes rápidos, ao som de “Gimme Shelter” dos Rolling Stones, apresenta uma narração do personagem de Nicholson (esse, por sua vez, aparece apenas na sombra), e somos apresentados a cada personagem e sua respectiva função na trama, quando finalmente somos surpreendidos com o título do filme. É, quando já entramos no clima, percebemos que o que passou eram apenas as cenas pré-título. O que vem depois é uma trama pra lá de complexa em que nunca temos total certeza do que está acontecendo, e a cada minuto somos surpreendidos com diálogos inteligentes, cenas chocantes, paradoxos entre os personagens, reviravoltas, etc.

Se antes eu estava com o pé atrás em relação ao roteirista William Monahan após o fraco “Cruzada”, agora só tenho de parabenizá-lo. Tudo bem que se trata de um remake de um filme de Hong Kong, mas mesmo assim ele conseguiu pegar uma história relativamente simples, e aprofundá-la de uma maneira ímpar. Ter uma vida dupla definitivamente não é algo fácil, e uma hora ou outra, os dois mundos onde uma pessoa vive entrarão em choque, levando-a a perturbações; e são exatamente nessas perturbações que o roteiro consegue jogar o espectador. Ficamos atônitos quando Leonardo DiCaprio e Matt Damon estão em cena, pois não sabemos qual personalidade está em ativa – a do mocinho ou a do vilão. E o roteiro inclusive chega a brincar com essa vertente ao inverter papéis o tempo todo, como na cena em que, após uma sessão de cinema, o policial vivido por DiCaprio persegue o bandido vivido por Damon, pois até então estávamos acostumados a vê-los prevalecendo em suas identidades falsas.

O longa de Scorsese não é apenas violento, ele prima por apresentar uma violência crua e presente no nosso dia-a-dia, e não aquela coisa forçada como em filmes de terror estilo “Jogos Mortais” e “O Albergue”. O diretor simplesmente não poupa sangue ao mostrar uma cabeça sendo baleada, um nariz sendo quebrado por um soco, etc. E o realismo do filme não fica apenas nessa questão. Tudo não deixa de ser uma grande crítica social: é retratada com primor a “terra de ninguém” onde vivemos (no filme, é representada pela cidade de Boston), em que prevalece o matar ou morrer. Assim como na vida, as reviravoltas da trama mostram perfeitamente que não existem bonzinhos, maus, inocentes ou culpados. Tudo não passa de um enorme jogo de interesse, em que alguém – até mesmo quem você confia – se tiver a chance de apunhalá-lo pelas costas para obter vantagens, não irá deixar de fazê-lo. Um belo retrato desse mundo de “ratos” – atentem para esta metáfora muito bem representada na cena final – onde vivemos.

E o roteiro ainda toma o cuidado de dar importância a todos os personagens, tornando-os cruciais não apenas para o desenvolvimento da trama, mas também buscando apresentar bem a personalidade de cada, tornando-os tridimensionais. O personagem de Mark Wahlberg (que por sua vez, consegue o difícil feito de roubar todas as atenções para si sempre quando está em cena), por exemplo, por mais que seja arrogante, é exatamente essa sua arrogância que faz o personagem de DiCaprio perceber que é a pessoa mais indicada para a missão; e o personagem de Martin Sheen é uma pessoa afetiva e compreensiva, e é essa afeição que faz com que DiCaprio aceite a missão de se infiltrar na gangue de Costello. O braço direito de Costello, Mr. French, vivido por Ray Winstone, é um ser leal ao mafioso acima de tudo e possui um sangue tão frio quanto o dele, mas, por incrível que pareça, é um homem de família. Interessante a importância da personalidade de cada um.

E é no embate entre DiCaprio, Damon e Nicholson onde mora a inteligência de “Os Infiltrados”. DiCaprio faz de Bill Costigan o melhor papel de sua carreira, superando até “O Aviador”. Impressionante como em nenhum momento ele aparenta ter o jeito de galã marcante em outras produções, e esbanja, com estilo, muita frieza e fúria quando Costigan se passa por um marginal, e em meio a tanta confusão, se torna um ser sofredor e viciado em calmantes (algo que poderia acontecer com qualquer um que vivenciasse as chacinas de Costello). Ainda, o personagem se mostra bem mais complexo por ter uma família com um histórico criminal, então, ele se mostra numa situação peculiar. Afinal, como ele conseguirá afastar de si a imagem ruim da família se passando justamente por um criminoso? O bom resultado de seu trabalho seria uma redenção ou apenas mais uma fria? Já Matt Damon, do contrário de seu parceiro de cena, não tem grandes chances de expor seu talento, mas isso se deve à essência de seu personagem: por ter sido mimado por Costello desde criança, Colin Sullivan é o tipo do ser pateta que não age, não reage, e quanto mais puder se promover sem precisar sequer sair de seu escritório, melhor. Colin Sullivan lembra muito outro personagem vivido pelo ator, em “O Talentoso Ripley”, apresentando aquele vilão “come-quieto”, com cara de inocente, mas cheio de más intenções. Mas Colin Sullivan e Bill Costigan têm algo em comum: a inteligência, e é essa vertente que torna o embate entre os dois tão interessante, visto que, durante boa parte da projeção, um sequer sabe quem é o outro. Reparem na cena em que um liga para o celular do outro sem saber quem está do outro lado da linha. Genial!

Mas é o sempre fantástico Jack Nicholson quem dá uma particularidade ao longa, de modo que sua interpretação chega até a influenciar nas dos demais atores que interagem com ele. Impressionante como Jack “brinca” de atuar, construindo o personagem da maneira que bem quer, e ele faz de Frank Costello um ser peculiar, único. O astro moldou Costello como um ser que possui um ar de superioridade sem igual, que encara a violência com uma naturalidade extrema, além de um ímpeto sexual apurado. É um personagem intimidante e imprevisível por nunca sabermos o que pode vir dele. Por isso, é mais do que compreensível que o personagem de Damon se mostre a maior parte do filme temeroso e sempre com um pé atrás em suas atitudes, pois sabe do que seu chefe é capaz; da mesma forma que a agonia do personagem de DiCaprio só faz crescer com a convivência com Costello, e não teme em dizer em um momento ao personagem de Martin Sheen, em tom de desespero: “Ele vai me matar, tenho certeza disso!”. Percebam o quanto Damon se mostra intimidado no telefone ao receber uma ligação de Costello; ou o jeito errado de DiCaprio quando Costello lhe pergunta: “Você gostaria de ser eu?”. É, tio Jack tem esse poder de manipulação.

Outro fator que está perfeito é a trilha sonora. Repleta de clássicos do rock dos anos 70, além de belas baladas instrumentais a cargo de Howard Shore (“O Senhor dos Anéis), está muito condizente com cada momento do filme, alternando entre os climas pesados e os de reflexão. Além da já citada “Gimme Shelter” dos Rolling Stones, há a divertida “Let it Loose” do conjunto de Mick Jagger, além de outras preciosidades como a nostálgica “Comfortably Numb” de Pink Floyd, passando ainda por John Lennon, The Beach Boys, The Allman Brothers, entre outros. Os fãs de rock progressivo irão delirar.

Scorsese conseguiu se superar. Em longos 152 minutos de duração, ele apresentou um filme genial em que mal vemos o tempo passar. O cineasta conseguiu com maestria transportar o espectador para o sujo mundo marcado por traição, lealdade e violência apresentado em seu filme, mantendo o clima tenso desde o primeiro segundo até a cena final. Não apenas o melhor filme do ano, como um trabalho primoroso que certamente entrará para a história do cinema. Quem acompanha minhas críticas, sabe que raramente aplico nota 10, mas, desta vez, não consegui me conter e me rendi ao show de Scorsese. Oscar? Besteira, o cineasta não precisa de uma mera estatueta para que seu valor seja reconhecido.

Thiago Sampaio
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