Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 15 de dezembro de 2006

Em Nome de Deus

Extremamente envolvente e provocante, "Em Nome de Deus" está na lista dos filmes obrigatórios a todos os bons cinéfilos fãs ou não de um excelente drama cujos recursos técnicos são impecáveis e atuações inesquecíveis.

Ambientado na Irlanda durante a década de 60, "Em Nome de Deus" conta a história de jovens moças que foram enviadas a um convento rígido para que pudessem pagar os seus aparentes pecados. Margaret (Anne-Marie Duff) foi estuprada num casamento por seu primo e abandonada pelos familiares após o fato. Bernardette (Nora-Jane Noone) é muito bonita e por isso representa um perigo para os homens da vizinhança, que vivem cheios de cantadas para o seu lado. Rose (Dorothy Duffy) é mãe solteira e, após ter seu filho levado para a adoção, é enviada ao convento onde conhece Crispina (Eileen Walsh), também mãe solteira que só vê seu filho a metros de distância quando este o visita de tempos e tempos. Apontadas como pecadoras e vivendo em uma época onde a rigidez da sociedade não permitia muitos luxos para as garotas, elas passam a conviver juntas em um sistema interno que soa praticamente como um presídio liderado por irmãs rabugentas e impiedosas; e o que elas mais querem é ter a liberdade que lhes foi tirada.

Aparentemente o cenário em que o filme se passa não é tão suportável quanto vamos descobrindo no decorrer da trama. Perfeitamente reconstruído e trabalhado minuciosamente, a Igreja da década de 60 parece mais amarga do que lemos em livros de história. Construindo um universo pavoroso e praticamente inabalável, o diretor-roteirista Peter Mullan mostra sua verdadeira competência ao montar um filme simplesmente angustiante, envolvente e ousado. O roteiro sutilmente composto pelo menor número de clichês possíveis foi desenvolvido para ser aplaudido de pé. A forma como foi escolhida para demonstrar os dramas particulares de cada uma das três protagonistas ganhou um certo ar de independência, já que foi exposto nos primeiros minutos da trama de forma única, dando a entender que seus destinos estariam traçados, mas diferentemente do que poderia parecer óbvio, as três não necessariamente teriam uma relação de cumplicidade dentro do convento que seriam colocadas, mas, sim, tinham como destino compartilhar todos aqueles momentos sádicos que enfrentariam. Escolhidas para pagar seus pecados cumprindo trabalhos internos no convento, as meninas dariam de cara com um sistema praticamente escravo, onde suas opiniões e anseios não valeriam nada. Como uma delas fala em determinado momento, bastava que elas cumprissem o que as freiras mandavam, mas para fazer isso elas teriam que lutar contra os maus-tratos e as rígidas normas de uma Igreja hipócrita que parecia ser comandada por nenhum Deus.

A ousadia de Mullan em denunciar o sistema 'escravocrata' adotado pelo convento foi um verdadeiro jogo de crítica e ironia. Sempre atolado de antíteses e questionamentos pessoais e em conjunto sobre Deus e seus ensinamentos, o roteirista acerta em construir um arsenal de golpes que o público vai sentindo e se desgastando juntamente com as personagens. Praticamente inacreditável, a frieza das irmãs ao humilhar as garotas e convencê-las de que suas vaidades não valiam nada é desprezível e embrulha nosso estômago. Talvez isso ocorra mais ainda por vermos os símbolos sagrados sempre presentes e aquelas irmãs desmerecedoras de vestirem seus hábitos. Mullan consegue ligar pontos essenciais para o bom andamento da trama e faz de sua narrativa uma arma de crítica social e ao mesmo tempo tenta transportar o público a um universo nojento que vai causando emoções e sensações diferentes a cada novo passo que é dado no enredo. O cotidiano das moças parece não ter fim e isso não cansa o espectador, mas causa uma frustração de vê-las metidas em um mundo que é mais pecaminoso do que qualquer pecado que elas poderiam cometer. Quando as três protagonistas são transferidas para o convento e conhecem as normas, a ânsia em voltarem a ser livres só faz crescer, tanto por uma condição de ambientação como por uma condição de sobrevivência. Elas viam ao seu redor mulheres praticamente idosas cumprindo os mesmos deveres que foram comandados a cumprir e se viam eternamente naquele posto e, jovens e bonitas como eram, não queriam aquele destino para si.

Mullan confirma o sucesso de sua narrativa com sua direção detalhista e impecável. Sempre preservando o que há de melhor em cena, usa recursos bastante diferentes dos habituais, como o enquadramento fixo que não atinge seus personagens, dando um ar de naturalidade quando estes começam a transitar dentro e fora do plano. Além disso, a brincadeira que faz com a geometria do cenário é memorável, sem falar da fotografia rebuscada que muitas vezes era intensificada pelo silêncio da cena. Talvez seja este o ponto mais forte de Mullan: o silêncio. A ausência da trilha sonora em muitos momentos foi a melhor escolha que poderia ter feito para que a linguagem correta fosse atingida em cena, reforçada pelas atuações peculiares do elenco. Mesmo assim, quando a trilha tende a aparecer, percebemos nada mais do que um mero objeto que não se encaixa com o verdadeiro plano de fundo da história, tendo um deslocamento enorme, fato este que é proposital, já que faz com que passemos a prestar atenção nas atrocidades que são cometidas e não na falsa felicidade das músicas felizes e saltitantes que animavam a época.

Apesar de tamanha perfeição do roteiro e direção, sem hesitar elevo à condição primeira para o sucesso da trama a atuação do elenco. Composto por moças jovens e talvez nem tão conhecidas do mundo cinematográfico, percebemos uma maturidade enorme ao construir cada personagem visto, do mais importante ao mais figurante. Nora-Jane é a mais segura de sua capacidade e a que mais possui transições de caráter e ideologias, que são inegavelmente bem feitas. Anne-Marie Duff faz de Margaret a mais humana de todas, apesar de seus leves desvios de egoísmo, mas que podem ser vistos apenas como ideologias frustradas e vale ressaltar que ela foi responsável por um dos momentos mais fenomenais ocorridos quase no final do longa. Dorothy Duffy e sua leve semelhança com a queridinha Kirsten Dunst usa como arma suas expressões para demonstrar seus sentimentos e é eficiente ao extremo. Outra que vale a pena aplaudir é Eileen Walsh, que faz de Crispina o personagem mais complexo por ser o estereótipo do que aquela prisão que o convento representava podia causar com alguém. Sempre descontrolada e atordoada com a falta de seu filho, Walsh é a que chega mais próxima da realidade e suas frustrações contaminam o público mais fortemente, principalmente quando, em uma determinada cena, ela reproduz a mesma fala quase trinta vezes e cria uma atmosfera de tristeza, raiva e revolta impagável. A veterana Geraldine McEwan faz da Irmã Bridget o personagem mais repudiável e controverso da história e é o maior alvo de sarcasmo do diretor-roteirista, já que era a maior autoridade do convento e julgava-se em uma situação onde os pecados não lhe atingiam, mas talvez ela fosse a mais pecadora da história.

Baseado em fatos reais e praticamente inaceitável que toda essa desvalorização da vida dessas garotas destinadas a sofrer e alvos da incerteza de seus destinos, rendeu diversas indicações em festivais importantíssimos como o Bafta, que reconheceu seu brilhantismo e ousadia, chegando a vencer o cobiçado Leão de Ouro no Festival de Veneza. Cutucando as estruturas santificadas de uma Igreja e da sociedade geral e sua hipocrisia, "Em Nome de Deus" sem dúvidas é uma das melhores produções já feitas na história do cinema e é altamente recomendável. Sem cansar pela sua longa duração e conseguindo transportar o público àquele universo medíocre que as protagonistas viviam, foge de vários clichês e demonstra segurança no que quer transmitir. Praticamente impecável, é obrigatório a quem não se incomoda em presenciar uma realidade tão intensa quanto é mostrada. Dez é pouco.

Diego Benevides
@DiegoBenevides

Compartilhe

Saiba mais sobre