Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 07 de fevereiro de 2007

Dogville

O diretor e roteirista Lars von Trier nos brinda mais uma vez com uma obra-prima do cinema, em um filme que mergulha fundo nos mistérios da psique humana, principalmente no que diz respeito ao relacionamento entre as pessoas.

Em "Dogville", o diretor mostra mais do que nunca o seu sarcasmo característico já observado em suas obras anteriores. Este filme é a primeira etapa de uma trilogia, a qual o diretor denominou de Trilogia Anti-Americana. Cada filme recebe o nome de uma cidade na qual a protagonista Grace, de forma ativa ou passiva, descobre um pouco de sua personalidade.

Utilizando o recurso inovador e bastante teatral, no qual o cenário é composto simplesmente por um palco onde a pequena cidade "Dogville" é desenhada sobre o chão, von Trier dá ao espectador um caráter onisciente, para que este se sinta livre para penetrar na intimidade de suas personagens e julgá-las por seus atos livremente. Inicialmente, o espectador pode se mostrar entediado pela falta de recursos visuais do filme (que tem quase 3 horas de duração), porém este recurso mostra-se importante ao longo da história, que se torna, à medida que passa, mais interessante e surpreendente, fazendo com que possamos até mesmo imaginar uma cidade naquele palco, com suas ruas e jardins. Além disso, o filme assume um tom folhetinesco, já que é dividido em capítulos e conta com a narração (extremamente sarcástica) do ator John Hurt.

Grace, foco central da trama e interpretada por Nicole Kidman (na melhor atuação de toda a sua carreira), mostra-se extremamente ingênua, e possuidora de uma confiança nas pessoas quase divina. A protagonista de Dogville, aliás, apresenta várias semelhanças com a personagem Selma, do trabalho anterior de Von Trier, "Dançando no Escuro" (brilhantemente interpretada pela cantora Bjork), que, de forma trágica, sofre por sua inocência perante a humanidade. Neste filme, Grace chega fugida à Dogville, após escapar de alguns gângsters que a perseguiam. Hesitantes, os habitantes da cidade aceitam correr o risco de acolher a foragida, sob a condição de que a mesma os auxilie em suas tarefas diárias. Grace, grata pela ajuda recebida, passa a se desdobrar diariamente para atender a necessidade dos moradores, que a aceitam de bom grado. Contando com a disposição da personagem, os moradores passam a exigir mais e mais de Grace, que se sente na obrigação de cumprir seu compromisso para com essas pessoas. A partir deste ponto, uma série de abusos são cometidos contra a personagem de Nicole Kidman, já que a mesma sempre reage com passividade perante essas situações, acreditando que todos têm um motivo justo para realizá-las.

O elenco do filme, que retrata os moradores da cidade, é composto por grandes nomes do cinema, como Lauren Bacall, Harriet Andersson e Philip Baker Hall. Os habitantes são figuras nas quais podemos identificar algumas características existentes em nós mesmos ou que poderíamos facilmente encontrar por aí, como sendo nossos vizinhos e amigos. É justamente neste caráter universal (que funciona não somente como um ataque à nação americana, mas sim a todas as pessoas) que reside o grande mérito de "Dogville", já que o filme nos leva a refletir sobre as nossas atitudes e a confrontar a própria definição de "ser humano".

O roteiro criado por Von Trier é primoroso e confirma mais uma vez o talento deste ao trazer passagens memoráveis e dignas de aplausos (principalmente o diálogo entre Grace e seu pai). Contando com um final espetacular, que certamente pode ser considerado como um dos melhores da história do cinema, o espectador se surpreende ao perceber suas próprias emoções e desejos, fazendo com que possamos enxergar que também somos pessoas cruéis e que é justamente esta característica que nos torna humanos. Dar nota 10 ao filme chega a ser um insulto, pois este encontra-se em um patamar muito superior ao dos outros, nos quais figuram ao seu lado as grandes obras-primas do cinema.

Diego Coelho
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