Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 26 de julho de 2005

A Fantástica Fábrica de Chocolate (2005): um dos melhores do Tim Burton

Tim Burton consegue recriar a fábula de Roald Dahl: moralidade e êxtase visual são os motes do filme. É a fantástica fábrica de chocolates do sr. Wonka que está aberta novamente, trinta e quatro anos depois.

A mitologia cristã conta que Deus tirou o homem do barro, a mulher de uma costela deste e os pôs no Jardim do Éden, onde a felicidade e o gozo eram indescritíveis. Devido à desobediência e à ganância, a dita humana foi anulada e o ser humano perdeu o paraíso. É recorrendo à analogia que rege a crença cristã e seus valores de certo e errado, que a história do mais recente filme de Tim Burton é tecida. Willy Wonka (Johnny Depp) é o dono de uma fábrica de chocolates à qual ninguém entra nem sai há 15 anos. Procurando um herdeiro, ele decide abrir a fábrica para cinco sortudas crianças que deveriam achar um cupom dourado embalado nas barras de “chocolate Wonka”. É em um paraíso composto por rio e cachoeira de chocolate, por grama comestível, por um elevador-voador e pelas mais variadas invenções oníricas que produzem doces, que assistimos, entusiasmados e cúmplices, às cinco crianças que são submetidas a um profundo teste moral e ético – de onde ninguém vai sair tal como entrou.

Em primeiro lugar, faz-se mister atentar para o fato de que A Fantástica Fábrica de Chocolate de Tim Burton não é uma refilmagem do clássico homônimo de Mel Stuart (1971). A proposta de Tim Burton foi fazer uma outra adaptação do livro Charlie and the chocolate factory, do inglês Roald Dahl. Assim, portanto, a fruição dá-se em outro nível: a comparação pode até ser feita, mas sem cobranças. O realismo-mágico excessivo da primeira versão – no que diz respeito à trama – ganha contornos mais lógicos, ao se dar complexidade maior às personagens. A direção de arte e o figurino mantêm o tom fantasioso, semi-psicodélico e colorido-neón do filme de Stuart, com diferenças estilísticas pontuais: apesar de os oompa-loompas terem perdido o visual glam, o sr. Wonka ganhou uma androgenia nova. A trilha sonora também mudou de tom: ao invés das canções que seguiam o “oompa-loompa-doompa-dee-dee” compassado, o ritmo é adaptado à personalidade da criança e aos seus valores, variando do soul ao rock. O fabuloso jardim comestível e o expressionismo da humilde casa da família Bucket são alguns dos exemplos dos cenários fenomenais.

As cinco crianças escolhidas seguem arquétipos: Violet Beauregarde (Annasophia Robb) é uma garota ultra-competitiva cujos esforços físicos e intelectuais estão atualmente voltados para o campeonato de mascar chicletes; Veruca Salt (Julia Winter) é mimada ao extremo por seus pais; Mike Teavee (Jordon Fry) tem instintos destrutivos e é viciado em jogos eletrônicos – os violentos, preferencialmente; Augustus Gloop (Philip Wiegratz) é um glutão, viciado em chocolate; Charlie Bucket (Freddie Highmore) segue o arquétipo idealizado por Dahl: solidário, bondoso e apegado à família. A visão de mundo de Dahl é exposta à medida em que, devido aos seus desvios de caráter, cada uma das crianças vai “caindo” e sendo expulsa da presença de Willy Wonka, até sobrar apenas Charlie. E é quando Charlie sobra que este se transforma na personagem-solução dos problemas de Wonka.

A versão de Stuart – que foi roteirizada pelo próprio Roald Dahl – punha Charlie Bucket como a personagem central do filme, apesar de o título, em inglês, ser Willy Wonka and the chocolate factory. Já esta nova versão põe tanto Charlie quanto Wonka como co-protagonistas, ao humanizar o chocolateiro – apesar de o título ser Charlie and the chocolate factory. Por meio de flash-backs, somos introduzidos à infância de Wonka, e vemos o porquê de ele ser tão louco por chocolate e por que ele tem tanta aversão ao contato humano. Esse importante trecho, inexistente no livro, dá complexidade à personagem. Willy Wonka não é seguro, mas extremamente perturbado, e com várias dificuldades de auto-aceitação e de se relacionar- em determinado momento, vemos Wonka lendo um roteiro, por não saber o que dizer, no tour, a seus convidados. Ao mesmo tempo, percebe-se a infantilidade de Wonka, que está genuinamente animado em ser o grande showman, exibindo suas preciosas invenções. Sim, Willy Wonka é uma personagem multidimensional: é bizarro, divertido, inseguro, vulnerável, infantilizado e genial; é, pois, uma composição interessantíssima. E isso é mérito exclusivo desta adaptação burtoniana. Vale, entretanto, ressaltar o dinamismo que o talentoso Depp atribui a Wonka, tornando-o convincente em seus trejeitos e tiques.

Wonka, a personagem-problema, sintetiza a descrença na humanidade – pelo menos na sociedade competitiva, violenta, gananciosa e voraz, onde as relações familiares são uma correia de transmissão e perpetuação desses valores. As quatro crianças são as características sociais personificadas e caricatas, e seus pais são criticados como cúmplices ou, no mínimo, excessivamente complacentes. Charlie vem como a personagem-solução que fecha a fábula como uma esperança no ser humano e na família como um laço afetivo importante para a formação do caráter.

A fábula funciona, no plano ideológico e textual, e o visual da história é magnífico. Trinta e quatro anos depois da primeira adaptação, é hora de uma outra geração se maravilhar com as excentricidades do sr. Willy Wonka, com as bizarrices dos oompa-loompas, com as escolhas acertadas de Charlie e com as centenas de milhares de litros de chocolate. Sem saudosismos.

Cinema com Rapadura Team
@rapadura

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