Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 10 de abril de 2006

V de Vingança

Com um roteiro muito bem desenvolvido pelos irmãos Wachowski e uma direção primorosa do estreante James McTeigue, “V de Vingança” é uma adaptação de HQ que consegue ir além do quesito diversão, e apresenta o thriller de ação mais inteligente do ano até agora. Nada de heroísmos e ação gratuita. “V de Vingança” é um filme político, mas com aquela pitada hollywodiana.

O inglês Alan Moore é considerado um dos quadrinistas mais importantes do mundo, porém, quando o assunto é adaptação de suas obras para o cinema, podemos dizer que o cara não tem tanta sorte assim. “A Liga Extraordinária” é uma verdadeira bomba, enquanto “Constantine” fugiu completamente a essência dos quadrinhos “Hellblazer” de Moore. Insatisfeito, quando soube do interesse dos irmãos Wachowski (responsáveis pela trilogia “Matrix”) em produzir uma adaptação de “V de Vingança” – talvez sua HQ de teor mais anárquico -, ele logo tratou de pular fora do projeto e não se comprometeu com a produção. Apesar das duras críticas de Moore ao roteiro, é inegável que o filme foi o primeiro a captar com maestria o espírito de suas HQs: a anarquia, o totalitarismo e o terrorismo político. Com opiniões balanceadas dos fãs pelo mundo, não serei eu quem irá julgar a fidelidade do filme para com os quadrinhos, pois nunca li uma história de “V de Vingança”, porém, analisando o filme por si só, digo com convicção que é um filme espetacular, que agrada tanto aos mais exigentes que almejam uma trama inteligente e cheia de paralelos com nosso mundo real, quanto aos que vão ao cinema unicamente por uma boa diversão sem compromisso. Além, é claro, de um verdadeiro espetáculo visual.

Ambientado na paisagem futurista da Bretanha totalitária, “V de Vingança” conta a história de uma jovem da classe trabalhadora, Evey (Natalie Portman), que é salva de uma situação de vida ou morte por um homem mascarado conhecido apenas como “V” (Hugo Weaving). Profundamente complexo, V é ao mesmo tempo interessado em literatura, sofisticado, delicado e intelectual, um homem dedicado a libertar seus cidadãos dos que os aterrorizam. Mas ele também é amargo, vingativo, solitário e violento, motivado por uma vingança pessoal, uma vendetta. Em sua luta para libertar o povo da Inglaterra da corrupção e da crueldade que envenenaram o governo, codinome V condena a natureza tirânica dos líderes e convida os cidadãos a se juntarem a ele próprio no dia 5 de novembro, o Dia de Guy Fawkes. Imbuído do espírito de rebelião, em lembrança àquele dia, V jura realizar o plano pelo qual Fawkes foi executado em 5 de novembro de 1605: vai explodir o Parlamento. Quando Evey descobre a verdade sobre o misterioso passado de V, também descobre a verdade sobre ela mesma e torna-se uma improvável cúmplice no plano para iniciar uma revolução, trazendo de volta liberdade e justiça para uma sociedade repleta de crueldade e corrupção.

Quem não conhece a HQ, e vê nos materiais de divulgação todo aquele clima dark e um homem usando capa e máscara, logo pensa se tratar de mais uma história de super-herói que chega para fazer número às salas de exibição. Mas o grande mérito de “V de Vingança” é exatamente por fugir desse padrão. Seria uma grande hipocrisia classificar o personagem V como um herói, afinal, ele não luta contra o mal apenas para proteger inocentes. Aliás, engano meu. Ele luta sim contra um mal, sendo esse o sistema totalitarista que se assemelha muito ao nazismo, e as pessoas inocentes são os seres humanos alienados, que vivem feito verdadeiros zumbis, hipnotizados pelo regime opressor que vivem. V é um homem de ideais libertários que luta para abrir os olhos do povo e sonha em consolidar uma pátria justa; ele é um verdadeiro revolucionário, assim como foi Che Guevara, Gandhi…e assim como esses ícones, é considerado um ser perigoso para a classe dominante desse sistema. Bom lembrar: V utiliza táticas de guerrilha terrorista, algo bastante incomum para alguém que pode ser taxado de herói.

Seguindo a linha do famoso livro de Aldous Huxley, “Admirável Mundo Novo”, ao mostrar um utópico mundo onde as pessoas vivem reprimidas, banidas do livre arbítrio e qualquer coisa capaz de provocar sentimentos (arte em geral, por exemplo), o filme engorda a lista de filmes com essa temática, como “Equilibrium” e a própria trilogia “Matrix”, dos irmãos Wachowski – detalhe que todos apresentam um ser que é o responsável para salvar a humanidade do controle. O diferencial de “V de Vingança”, é que ele está bem mais distante da ficção e mais próximo da realidade. Quem gosta de procurar reflexões em filmes, como a imposição do social e do físico na vida de um ser, irá se satisfazer certamente. Além disso, diversas simbologias podem ser encontradas no decorrer do filme, uma delas é a imagem do chanceler que remete diretamente à figura de Hitler. Tudo isso é tratado de maneira bastante cautelosa pelo roteiro, que chega até a deixar a ação de lado por boa parte da projeção, para demonstrar a importância de vertentes como a coragem, o medo, a integridade, para poder se fazer uma revolução. Para quem vai assistir ao filme pela ação, não se desespere pois ele tem ótimas seqüências que não irão decepcionar a nenhum fã de “Matrix”. Muitas lutas e muita violência estão presentes, coordenadas por uma ótima direção e efeitos especiais muito eficientes.

Posso considerar o diretor James McTeigue uma grande revelação, e desde já, uma promessa de outros grandes filmes. Sua condução é de um veterano, e muitas são as cenas em que ficamos impressionados pela qualidade técnica apresentada. Uma dessas cenas é quando V aproxima seu rosto ao de um policial, e em seguida, sangue pode ser visto saindo da boca dele, deixando para o expectador imaginar a facada dada por V em seu estômago. Fora essa, o desfecho final, quando V finalmente põe em prática seu plano é um show visual de fazer encher os olhos. Qualquer descrição a mais estragará a emocionante adrenalina dessa cena.

“V de Vingança” é um filme com conteúdo bem mais eficiente do que muitos filmes comerciais que estamos acostumados a ver, mas, há de lembrar que ele é um blockbuster, cujo principal objetivo é agradar a massa. Por isso, ele contém muitas falhas típicas do estilo. Muitos dos assuntos políticos que poderiam ser aprofundados são vistos com uma certa superficialidade, deixando uma sensação vaga no ar. Ineficiente também uma das tentativas de pôr humor no filme. Feita na forma de um programa de TV, em que acontece uma sátira ao caos que V estava causando no país, lembra até aquelas interrupções diretas (e chatas) do noticiário de TV que aconteciam nos filmes do “Robocop”. Algumas colocações exageradas também são conferidas, como por exemplo, os desnecessários gritos com as mãos para o alto dos dois protagonistas em momentos distintos e decisivos para o rumo que ambos irão trilhar.

As interpretações são satisfatórias, apesar de não serem o foco da produção. Natalie Portman (de “Closer – Perto Demais”) – que por sinal, até careca consegue ser linda -, dá toda a complexidade que sua personagem exige. Sua personagem de início é uma pessoa aparentemente frágil e insegura, o que vai se modificando durante a projeção até conferirmos ao final, uma imagem totalmente diferente do começo. Para tal mudança, Natalie confere uma exímia carga dramática. Hugo Weaving (o Agente Smith, de “Matrix”), que apesar de passar todo o filme com o rosto coberto pela máscara, é outro ponto alto da produção. Com sua já famosa voz, o ator confere a V todo aquele ar de poder e mistério, e ao mesmo tempo, uma sensação de ternura e suavidade.

Enfim, “V de Vingança”, independente do fardo de ser uma adaptação, funciona muito bem como filme. Consegue se distanciar do lugar comum e vai muito além da diversão acéfala a que estamos acostumados. Bem dirigido, com uma história envolvente, é mais uma amostra da eficácia dos irmãos Wachowski. Não é um filme perfeito, mas é excelente; e isso, caros amigos, na atual temporada, pode-se considerar grande coisa.

Thiago Sampaio
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