Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 27 de março de 2005

Voltando para Casa

Rússia, época em que o país vivia uma crise, um menino hospitalizado ajuda os médicos a aliviarem a dor dos pacientes. O simples toque de seu corpo acalenta aos mais enfermos.

Décadas depois, no Canadá, Julie vive com o seu simpático casal de filhos gêmeos, Nick e Nicole, e com o pai das crianças, Henry. Em uma viagem com os filhos, Julie passa um mês longe de Henry, quando resolve fazer uma surpresa, chegando mais cedo. Ao adentrar o quarto, carinhosa e silenciosamente, nas pontas dos pés, ela se depara com o marido nu, nos braços de outra mulher. Para se recuperar do choque, se refugia na casa do pai, um polonês carrancudo, que, há não muito tempo, perdera a esposa. Julie escolhe separar-se do homem com quem vivia há dez anos e que lhe traíra a confiança. Porém, em um ataque histérico, Henry quase destrói a casa, na presença de possíveis compradores e de seus filhos. Nick, o menino, desmaia, e ao ser levado para fazer alguns exames, é descoberto um câncer, e posteriormente, é sabido que tem alergia à quimioterapia. Desta forma, o tratamento não pode ser realizado. Enquanto a família discutia como proceder, Bogusia, namorada por correspondência do pai de Julie, conta que estava doente de um câncer de mama, mas um curandeiro russo a curou com um simples toque no seio. Dividida entre a crença e a razão, Julie viaja, mesmo contra a vontade da família. Além da cura para a doença do filho, Julie encontra no misterioso curandeiro, o amor puro e honesto.

Agnieszka Holland sempre nos traz algo de bom. Com “Filhos da Guerra” conseguiu não ser clichê, nos trazendo uma visão diferente da tão explorada Segunda Guerra Mundial. Mais tarde viria com outros belos filmes, como “Jardim Secreto”, e o filme que deu fama mundial de homossexual a Leonardo DiCaprio, “Eclipse de uma Paixão”, em que o moço incorpora o poeta Arthur Rimbaud. Agnieszka cursou cinema em uma renomada Universidade da Tchecoslováquia, que já abraçou alunos célebres, como o diretor Milos Forman. A cineasta teve também a digníssima honra de trabalhar como roteirista ao lado de Krzysztof Kieslowski, também polonês, em sua famosa e sublime Trilogia das Cores.

“Voltando para Casa” é baseado na estória vivida por uma amiga da cineasta, que ela diz que não poderia guardar apenas com ela, que teria que mostrá-la ao mundo. Com ela, Agnieszka questiona a fé. A crença da menina, que faz com que o irmão seja batizado, achando que assim poderá curá-lo; a confiança do pai, que é cientista, na medicina; e, por fim, a fé da mãe na espiritualidade do curandeiro, que consegue curar o seu filho. O que terá curado realmente a criança por um certo período de tempo? A crença de cada um deles, ou a de todos eles juntos? É justo, um homem que dedicou toda a sua vida para ajudar aos enfermos, quando resolve colocar em prática outros prazeres que a vida lhe oferta, perder o seu dom? Seria coisa de sua consciência? São perguntas que a cineasta consegue deixar pairando no ar da sala de cinema.

Ana Maria Norões, convidada do Cinema de Arte para debater o filme, diz que a cura através da medicina alternativa é um assunto bastante presente, mas que ainda pode ser considerado um tabu em nossa sociedade. Tudo parte de uma questão de identidade espiritual. Na considerada pior comunidade (chamadas favelas) encontramos amor, caridade compreensão. Uma consciência universal, capaz de curar. Tribos possuem seus curandeiros, cada um com suas características próprias, pois viviam em isolamento umas das outras. Devemos destruir o pensamento mecanicista, pois os verdadeiros cientistas, foram os xamãs. No filme, vemos a harmonia surgindo a partir do caos em que eles estavam vivendo. A cura para a contração de doenças está, também, na natureza.

Paulo Borges, psicólogo, estava na platéia do Cinema de Arte e interviu, deixando suas palavras de encerramento do debate, dizendo que são de extrema influência alguns fatores, como o respeito à todas as crenças religiosas; o despreparo da sociedade quanto à questão da morte; e a intuição da mãe ao levar o filho para ser curado. Outro fator que lhe chamou a atenção é a compreensão do casal depois dos maus-bocados pelos quais passaram, como já havia colocado Ana Maria.

O Cinema de Arte volta na sexta-feira, 14 de janeiro, com o polêmico “Tirésia”, do cineasta francês Bertrand Bonello, de “O Pornógrafo”, filme exibido há alguns anos pelo Cinema de Arte. Interpretado por uma atriz e um ator brasileiros, o filme é o drama de um transexual brasileiro que acaba sendo confinado por um homem, conseguindo de volta as suas feições masculinas, por não estar consumindo os devidos hormônios. Tirésia é um mito grego sobre um oráculo que, ao ver uma deusa nua, é castigado, passando a ter dois sexos. Um filme bastante dramático, certamente de bastante qualidade, vide a filmografia do diretor. Vale a pena conferir, quiçá.

Cinema com Rapadura Team
@rapadura

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