Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Fale Comigo (2023): possuindo a geração das redes sociais

Longa inova ao apresentar uma perspectiva adolescente para o subgênero da possessão, evitando clichês e mergulhando em questões de pressão social, traumas e vícios.

O gênero de terror frequentemente nos presenteia com uma infinidade de filmes repetitivos e genéricos, mas é inegável que alguns se destacam ao arriscarem e trazerem novas temáticas e discussões para a tela. “Fale Comigo“, o primeiro longa dirigido pelos irmãos Danny e Michael Philippou, criadores do popular canal RackaRacka no YouTube, é um desses que merecem atenção. Dentro desse rol, parte considerável dos exemplares corajosos têm a chancela do estúdio A24, e “Fale Comigo” segue essa tradição, atualizando uma trama clichê como a possessão para o público jovem e inserindo importantes mensagens sobre vícios e traumas.

A premissa já se mostra diferente do habitual ao mostrar a possessão espiritual como algo quase banal, que virou moda nas festas locais. Um grupo de amigos dispõe de uma misteriosa mão embalsamada que permite invocar espíritos e ser possuído por eles por algum tempo. Neste grupo encontra-se a protagonista Mia (Sophie Wilde), determinada a participar da sessão para se distrair do aniversário de morte de sua mãe. A empolgação dos jovens se transforma em apreensão à medida que mergulham em território perigoso quando um deles abre acidentalmente uma porta para o mundo espiritual. Todos acabam ficando vulneráveis a ameaças aterrorizantes, forçando cada um a questionar em quem podem confiar: nos vivos ou nos mortos da outra dimensão.

Uma das grandes forças de “Fale Comigo” reside na sua abordagem original do subgênero do terror com possessão. Ao adotar uma perspectiva adolescente, o filme evita os clichês usuais de batalha do bem contra o mal, exorcismos e tudo mais. Em vez disso, a obra opta por explorar a pressão social e a influência dos colegas sobre os jovens. A ideia de que os personagens são encorajados a enfrentar as possessões em busca de popularidade nas redes sociais pode parecer absurda para alguns, mas reflete uma realidade da juventude moderna, onde desafios e tendências virais muitas vezes resultam em sérios prejuízos.

Além disso, “Fale Comigo” não se limita ao sobrenatural; ele adiciona camadas de traumas psicológicos, vícios e dores reais que afetam muitos indivíduos hoje em dia. O filme retrata pessoas que recorrem à possessão em busca de adrenalina viciante semelhante ao efeito das drogas. Outras cedem à pressão social e à necessidade de posar para as câmeras e alimentar os feeds de redes sociais, como se corressem o grande perigo de serem excluídos daquela tribo — e o isolamento é uma grande questão para esse público. Ou ainda há os que lutam para lidar com traumas não resolvidos. O luto também é tratado com sensibilidade e realismo, afetando de maneiras diferentes a protagonista, seus amigos próximos e seu pai, mesmo com um tempo de tela menor. Essa complexidade enriquece a narrativa, tornando-a mais envolvente e significativa.

Quanto aos elementos de terror e sustos, “Fale Comigo” adota uma abordagem inteligente. Os diretores reconheceram que utilizar jump scares baratos é uma estratégia batida, e funciona menos ainda com a faixa etária com a qual o longa conversa. Com isso em mente, esse recurso foi pouco utilizado, e quase sempre de forma criativa, driblando as limitações orçamentárias e ajudando a criar transições bruscas que contribuem para criar o sentimento de dúvida sobre o que é real ou não.

A atmosfera de tensão vai sendo construída de maneira sutil, e no decorrer da duração é possível sentir aquele peso no ar, uma sensação intrigante de incerteza sobre o que está por vir, e igualmente uma necessidade de saber como tudo vai terminar. Poucas cenas são realmente memoráveis — em especial duas envolvendo o jovem Riley (Joe Bird) —, e ainda que a trama termine de forma inteligente e corajosa, trata-se de um final que não deve funcionar para todos.

Em resumo, “Fale Comigo” é uma adição bem-vinda ao catálogo de filmes de terror, trazendo originalidade, profundidade e reflexões contemporâneas para uma trama clichê como a possessão espiritual. Os irmãos Philippou demonstram talento ao oferecer uma experiência cinematográfica que mostra uma nova perspectiva para algumas convenções do gênero, deixando uma impressão duradoura principalmente no público mais jovem. Certamente chamarão atenção para suas próximas empreitadas no cinema.

Martinho Neto
@omeninomartinho

Compartilhe