Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 01 de agosto de 2022

Elvis (2022): a energia caótica do Rei

Elétrica, a cinebiografia do lendário artista transcende a tela para tocar o coração do espectador com muita cor, música e emoção.

Por tudo que representa, era de se espantar que, até hoje, Elvis Presley nunca tivesse ganhado um filme à altura de sua trajetória meteórica. Mas na esteira de projetos campeões de bilheteria como “Bohemian Rhapsody” e “Rocketman“, a obra idealizada pelo eloquente Baz Luhrmann vê, enfim, a luz do dia. Repleta de brilho, excessos e energia, tal qual o seu objeto de estudo, “Elvis” vai muito além de relembrar a magnitude do cantor para alguns ou apresentar seu extenso catálogo de sucessos para outros. Com a música em função do espetáculo, a cinebiografia de Luhrmann presta respeito às influências que ajudaram a lapidar o garotinho de Memphis e mergulha na relação conturbada do astro com seu infame empresário para tentar construir — e depois desconstruir — o mito norte-americano.

A história a ser contada é sobre Elvis Presley (Austin Butler), mas é a voz, seguida pela presença de uma figura velha e estranha deitada em uma cama de hospital, que surge nos primeiros minutos do filme. Narrado sob a perspectiva do inescrupuloso Coronel Tom Parker (Tom Hanks), responsável por agenciar a carreira do cantor durante seus anos de glórias, o roteiro escrito por Luhrmann e seus recorrentes colaboradores Sam Bromell e Craig Pearce, acompanha os eventos mais importantes da vida de Elvis: da infância em meio à comunidade negra até receber a alcunha de Rei do Rock. Desenvolver a narrativa a partir da visão do antagonista é sempre uma decisão complexa, pois arrisca humanizar demais quem não deveria. Aqui, só serve para reforçar as dúvidas com relação às reais intenções do vilão.

Ao mesmo tempo em que opta por este contador de história nada confiável, o realizador eleva o status de divindade conferido a Elvis durante o período em que habitou a terra e que pode ser notado pela apresentação gradativa do protagonista, que no começo da projeção é ouvido, e depois visto apenas de relance. Esta é apenas a ponta do iceberg no que diz respeito às escolhas acertadas (e muito bem executadas) de Baz Luhrmann, de volta ao cinema após um hiato de nove anos. O diretor, que passou anos em pesquisa, projeta um filme colossal em forma e estilo. Recria alguns shows memoráveis, abusa das cores e caracterizações, e dramatiza sem apelar para as convenções do gênero. E alerta: “Sem a música negra, Elvis não existiria”. Um justo reconhecimento à cultura negra e as vozes invisíveis dela.

À frente da narrativa e de todas as ambientações suntuosas, um possuído Austin Butler se destaca. Aos 30 anos de idade, o ator incorpora o espírito de Elvis e faz o espectador acreditar que num universo paralelo ele pode ter sido o Rei do Rock. Seja na troca de diálogos com a voz encorpada e sedutora, no balanço dos quadris que enlouquecem a legião de fãs, ou ainda quando entoa os grandes sucessos, Butler encanta e causa arrepios. Um contraponto necessário à persona repulsiva de Tom Parker. Coberto por próteses, Tom Hanks dá vida a um tipo complexo e desprezível, de caráter tóxico e voz estridente, que evoca pelo olhar admiração e inveja com a mesma intensidade. O embate entre essas duas figuras é a força motora que impulsiona o longa, abre feridas e expõe também algumas semelhanças na busca pela fama.

Como pano de fundo para esse confronto de gigantes, uma ambientação sempre calorosa e autêntica elaborada pelo design de produção comandado por Catherine Martin, Karen Murphy e King Tri-Zi. Os palcos onde Elvis pisou e a famosa Graceland comprovam a força do trabalho visual, bastante em sintonia com os responsáveis por recriar os figurinos vistosos da época. Tudo soa Baz Luhrmann, mas a cereja do bolo é a montagem frenética de Jonathan Redmond e Matt Villa, que não atropela os fatos e sabe como situar o público em relação aos acontecimentos, devido à maneira coerente como sobrepõe seus planos. Com quase 3h de duração, “Elvis” é cinema em estado puro. Um espetáculo musical e visual que passa voando e deve ser apreciado, assim como o cometa Elvis Presley que um dia atravessou a Terra.

Renato Caliman
@renato_caliman

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