Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 13 de junho de 2022

Lightyear (2022): voltando ao deslumbre de assistir seu filme favorito pela primeira vez

No universo de "Toy Story", este pode ter sido o "Star Wars" que marcou toda uma geração de crianças, mas no nosso mundo, a animação prova mais uma vez o poder da Pixar de nos fazer lembrar dos melhores momentos da vida.

Quando “Lightyear” foi anunciado pela Pixar, foi inevitável se perguntar se um projeto como esse seria realmente necessário. Depois que “Toy Story 4” desafiou a conclusão gloriosa que seu antecessor havia nos presenteado, sugerindo que o estúdio talvez tivesse achado seu limite, este universo não precisaria de mais uma continuação ou spin-off. As animações seguintes seriam todas histórias originais, que infelizmente enfrentariam uma pandemia, com “Dois Irmãos: Uma Jornada Fantástica” tendo sua exibição encurtada nos cinemas, e “Soul”, “Luca” e “Red: Crescer é uma Fera” sendo lançados direto no streaming. Seria o dever de “Lightyear” marcar o retorno da Pixar às telonas, e dois anos após seu anúncio, aquela pergunta ainda pairava sobre nossas mentes. De forma inusitada, o longa oferece a resposta com uma simples introdução: “Em 1995, Andy ganhou um brinquedo. O brinquedo era de seu filme favorito. Esse era o filme”.

Em uma viagem imediata às nossas infâncias — ao menos para aqueles que cresceram assistindo aos clássicos da primeira geração da Pixar —, temos a chance de viver o que Andy viveu, e ao sair do filme, entendemos perfeitamente por que o menino deixaria de lado o xerife Woody para brincar com o patrulheiro espacial Buzz Lightyear. Quando somos crianças e temos uma experiência inédita em nossas ainda curtas vidas, isso fica gravado como sendo a melhor coisa que já nos aconteceu. Será que “Lightyear” foi de fato o melhor filme exibido em 1995 no mundo de Andy? Talvez não. Foi “Star Wars” o melhor filme de 1977? Talvez não. Mas foi aquele que marcou toda uma geração. Esta animação de 2022 está longe de ser original, e referencia várias das produções de ficção científica e aventura que já conhecemos. Porém, em vez de percebê-la como algo derivativo, entendemos que as mesmas histórias são contadas de novo e de novo, de geração a geração, e em obras diferentes encontramos os mesmos deslumbres.

“Lightyear” acompanha Buzz não em sua primeira missão, mas sim na definitiva. Ele e toda sua tripulação vão parar em uma planeta a anos-luz da Terra, e acabam ficando presos neste lugar por conta de um erro do próprio Buzz. Incapaz de superar isso, o patrulheiro decide fazer o possível para levar todos de volta para casa, custe o que custar. A imagem do brinquedo de “Toy Story” é rapidamente deixada de lado quando o filme logo de cara mostra que seu herói é falho, e portanto, humano. Também temos acesso a seu lado vulnerável, através de sua relação com a comandante Alisha Hawthorne, uma belíssima amizade que, como não poderia faltar, traz momentos emocionantes para a obra. Acontece que, enquanto toda a tripulação se estabelece neste planeta e começa uma nova vida, Buzz está focado apenas em sua missão. Assim como um outro personagem de Chris Evans (responsável pela voz no elenco original), o patrulheiro se torna um homem fora de seu tempo, e a montagem de cenas que ilustra isso na animação deve garantir o choro certo do longa.

Mas, calma. “Lightyear” não é um dos gatilhos emocionais pelos quais a Pixar já é conhecida. Na verdade, o filme deve ser um dos mais divertidos do estúdio, cumprindo bem o objetivo principal que o diretor Angus MacLane tinha em mente para seu projeto. Com tudo a que uma ficção científica tem direito, a animação evoca bem o suspense de “Alien”, traz uma certa semelhança com “Perdido em Marte” e seu herói solitário, lembra o espetáculo visual de “Interestelar”, e, embora este não se encaixe necessariamente no conceito de sci-fi, remete muito a “Star Wars”. Não teria como evitar, até mesmo porque “Toy Story 2” inicialmente desenvolveu a história do personagem como uma paródia de “O Império Contra-Ataca”. E a trilha sonora impactante de Michael Giacchino — já veterano da Pixar, e vencedor do Oscar por “Up – Altas Aventuras” — contribui para a sensação de estar em uma galáxia muito muito distante. Até mesmo o “Sunshine – Alerta Solar” de Danny Boyle parece ser referenciado aqui, com uma cena que lembra o clássico one perfect shot, e outra trazendo o pânico do espaço tão bem representando no filme de 2007.

Sendo intencional ou não, a história também parece trazer a filosofia aplicada por Brad Bird em “Missão: Impossível – Protocolo Fantasma”, em que todos os equipamentos e planos traçados dão errado, fazendo com que a única garantia da equipe seja poder confiar uns nos outros. Buzz acha que age melhor sozinho, e continuamente rejeita o novo time que a vida coloca em seu caminho, mas acaba percebendo que seus equipamentos avançados e sua inteligência não serão capazes de levá-lo à linha de chegada. O trabalho em equipe sim.

Ainda que ajudado por todo o espetáculo visual mais uma vez criado pelos animadores da Pixar, e com toda a diversão que oferece, é na história que está o maior trunfo de “Lightyear”. Com um roteiro muito bem escrito pelo próprio MacLane e Jason Headley, o filme traz uma importante lição, clara o suficiente para que não seja percebida só pelos espectadores adultos. É uma mensagem que chega para todos, e que traz uma sensação de dever cumprido para o público que ao longo da exibição acaba se sentindo parte da equipe.

Cada um dos membros desta equipe, inclusive, tem seu próprio charme. Izzy Hawthorne, neta da melhor amiga de Buzz, é alguém que compensa na motivação o que não possui em experiência, sendo um contraponto leve para o lado sério do protagonista; Darby Steel entra no time apenas para tentar reduzir a sua pena carcerária, mas ainda assim usa todos os recursos possíveis para ajudar a missão, com um humor seco muito bem-vindo; Maurice “Mo” Morrison entra na equipe sem propósito na vida e acaba achando sua tão sonhada autoconfiança; mas o destaque é sem sombra de dúvidas, Sox, o gato-robô que Buzz ganha de presente para servir como conforto emocional, e que acaba sendo um apoio em todos os sentidos para o patrulheiro, além de proporcionar os momentos mais engraçados e fofos do longa.

Não é surpresa alguma o antagonista de “Lightyear” ser Zurg, a figura à la Darth Vader já apresentada na franquia “Toy Story”, mas é interessante (e talvez até inesperada) a abordagem dada ao vilão nesta história, embora houvesse potencial para mais profundidade. O momento de enfrentamento entre os dois no filme acaba sendo seu ponto mais fraco, porém, abre espaço para uma conclusão inspirada e muito bem executada.

Há de se mencionar também a questão da dublagem. É um fato que animações no Brasil raramente são lançadas com opções de sessões no áudio original, tirando nossa chance de aproveitar o longa totalmente da forma que foi criado. Para nossa sorte, a dublagem brasileira é uma das melhores do mundo, e não há do que reclamar aqui. Marcos Mion é a voz do protagonista, e há sim um desconforto no início, pela voz do ator ser já tão bem conhecida, mas ele fez um trabalho satisfatório, junto a uma equipe de dublagem que nada deixa a desejar.

Nos dias de hoje, cada vez mais projetos ganham luz verde unicamente por serem derivados de propriedades intelectuais já bem-sucedidas, baseando-se na ideia do retorno fácil. A maioria deles acabam sendo filmes ou séries sem alma, e a contínua exposição a esse tipo de produto nos deixa desconfiados, céticos à possibilidade de algo ser realmente genuíno. “Lightyear” vem como um lembrete de que ainda é possível se surpreender num mundo em que “tudo é um remix”, e que embora as mesmas histórias continuarão a se repetir, nossa conexão com aquela criança interna que foi ver seu filme favorito pela primeira vez nunca irá se quebrar.

Louise Alves
@louisemtm

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