Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 10 de março de 2022

Batman (2022): obcecado pela perfeição

Finalmente trazendo o Batman como um grande detetive, Matt Reeves mostra obsessão pela solidez e qualidade técnica de seu noir trágico e entrega um filme de origem às avessas, em que até mesmo Bruce Wayne some perante a presença do Homem-Morcego.

Não é exagero dizer que o Batman é o herói mais emblemático dentre os filmes baseados em quadrinhos. E não importam quantas controvérsias surjam, existem motivos de sobra que validam essa opinião, que incluem história e tradição do personagem, flexibilidade de personalidade e moral, presença na cultura pop, número de adaptações, dentre outros.

Ciente desse peso, o diretor Matt Reeves (“Planeta dos Macacos: A Guerra”) se aproveitou da liberdade comumente oferecida pela Warner/DC aos seus realizadores para entregar uma visão única. Apesar do primor técnico, não se trata de algo inédito, nem pela forma de como abordar o personagem, tampouco pelas decisões criativas do cineasta. Mas é seguro afirmar que “Batman” embarca por caminhos pouquíssimo (ou mesmo nunca) explorados no gênero — e que sorte a nossa.

Reeves atua como um maestro apaixonado por sua orquestra, no caso, a sua perspectiva da melhor versão do Homem-Morcego e de Gotham. Tendo em mente a necessidade de construir um detetive traumatizado atuando em um ambiente opressor, o também roteirista se arma de todos os recursos para, ao lado de Peter Craig (“Bad Boys Para Sempre”), dar vida a uma narrativa meticulosamente pensada para servir como nova origem para o Batman nos cinemas. Se você viu o título ao comprar o ingresso, certamente já tem sedimentado em sua memória passagens como a morte dos pais de Bruce Wayne ou o início da atuação do herói no combate ao crime. Desta forma, Reeves não perde tempo recriando estas sequências e trata de usar os minutos iniciais da obra para nos levar a um mergulho profundo na escuridão de Gotham. Embora a cidade já conte com um Batman estabelecido na sua cruzada contra a criminalidade — cujo fantasma “onipresente” impõe medo entre os meliantes —, o personagem tem pouco mais de dois anos de atuação, deixando sempre transparecer sua impaciência e revolta crescentes.

A visão do diretor é uniforme para todos os aspectos do filme, mostrando a solidez do projeto mesmo com todas as suas ambições. Diferente das adaptações mais recentes, que envolviam o realismo de Christopher Nolan e a mitologia de Zack Snyder, Reeves constrói a atmosfera da obra como um retrato sombrio e pessimista da sociedade atual. Para tal, ele deixa de usar uma tradicional crescente dramática levando a um ápice, e prefere transformar a longa duração em uma linha constante — constantemente martelando nossa cabeça com aquele lugar onde pouquíssimos são dignos de salvação. Um exemplo de fácil observação desse conceito é o uso da luz pelo diretor de fotografia Greig Fraser (“Duna”). Enquanto boa parte das cenas acontecem à noite, com a equipe criativa fazendo uso das sombras como personagem ativo do longa, as sequências durante o dia aparentam terem sido sugadas, como se Gotham não tivesse o direito de ter nada vivo — nem mesmo cores. Ainda nesse enfoque, é válido destacar o uso dos tons vermelho e laranja em cenas onde a escuridão é iluminada por essas cores (seja o sinalizador, ou o fogo), refletindo não apenas a sanguinolência do lugar, mas também a personalidade explosiva do Batman, ainda impulsivo e crente que o anonimato lhe dá liberdade para fazer o que quiser.

Robert Pattinson encarna o Homem-Morcego com maestria, e sua interpretação deixa claro que Bruce Wayne utiliza seu alter ego como escapismo para fugir de seus traumas ainda recentes. Não por acaso, o personagem passa a extensa maioria das quase 3h de duração (que certamente poderiam ser reduzidas) trajado de Batman. Aliás, só não podemos dizer que o grande protagonista da história é o traje do Homem-Morcego porque sacola vazia não fica de pé. A existência de um Bruce Wayne parece ser mera formalidade no filme, e o pouco desenvolvimento dado a ele usa camadas muito semelhantes (para não dizer exatamente iguais) ao Batman. É compreensível que passar tanto tempo compelido em uma missão faça com que, sem o uniforme, o personagem siga agindo e pensando como o herói. Contudo, todo o apelo emocional que Bruce carrega consigo, assim como a importante assimetria entre o milionário e o justiceiro ficaram de lado quando Reeves usou seu “raio darkizador” no longa. Certamente há espaço para desenvolvê-lo melhor, especialmente se levarmos em conta que este é um filme de origem às avessas, em que o protagonista começa a narrativa como um Batman descrente em Gotham e espalhando medo, e vemos sua jornada de “redenção” para se tornar uma figura de esperança para todos.

Voltando ao início, a abertura cumpre também um segundo e igualmente importante propósito: apresentar o vilão do filme. E não há no considerável panteão de antagonistas do Homem-Morcego alguém que invoque tanto a necessidade de um detetive engenhoso quanto o Charada. Sobretudo quando está por trás da máscara, o personagem sintetiza a antítese do método e da minúcia de um serial killer com o caos proporcionado por um agitador de massas. Tudo isso envolto por uma teia que mistura traumas passados e presentes com a vontade de impor mudanças gigantescas no futuro. O Charada de Paul Dano não apenas se diverte enquanto espalha enigmas para cobrir os seus rastros, como também mostra que conhece meios e estratégias de comunicação e sabe como usá-los para obter vantagem e estar sempre à frente dos que o investigam. Vale destacar o paralelo que pode ser feito entre a estratégia final do vilão e a vida real, reacendendo o alerta para o perigo da expansão de fóruns e sites que disseminam sem pudor as ideias mais execráveis já produzidas pelo ser humano — se é que podemos chamá-los de humanos.

Todo esse empenho do Charada em promover mudanças “justificáveis” na esfera de poder de Gotham é um reflexo não só das ações do Batman — elevando a outro nível a máxima de que o Homem-Morcego era a causa do surgimento dos próprios bandidos que ele combatia —, como também reflete a coragem de Matt Reeves de chacoalhar o universo que ele mesmo acabou de nos apresentar. Para um filme de origem, transformações drásticas ocorrem por toda a obra, de modo que a Gotham que vemos no fim é muito diferente da apresentada no início. Essa mudança também se aplica ao protagonista e a todo o status quo da cidade, com personagens secundários como Selina Kyle (Zoë Kravitz), Carmine Falcone (John Turturro) e o Pinguim (Colin Farrell) tendo arcos desenvolvidos e exercendo influência na cidade inteira. Pena que parte dessas sequências se desprendem da trama principal, e se mostram algo que poderia ser reduzido para impactar positivamente a longa duração, que pesa para muitos. Até mesmo o tenente Gordon (Jeffrey Wright) passa um bom tempo dependendo da aparição do Batman para encontrar seu tempo de tela. Mas a direção de elenco e os próprios artistas se entregam tão bem aos papéis que a sensação é de que todos evoluíram satisfatoriamente, mesmo quando o roteiro acaba se desviando um pouco da linha e trazendo diálogos expositivos em excesso.

É difícil assinalar falhas técnicas quando Reeves é tão obcecado pela perfeição quanto o Batman o é pela sua cruzada. Toda a equipe criativa trabalhou incessantemente pela maior imersão possível, e o filme exala crueza e rancor com pouquíssimas notas de esperança no ar. Dentre toda a produção, é quase obrigatório destacar a trilha sonora de Michael Giacchino (“Homem-Aranha: Sem Volta para Casa”) e como os temas foram capazes de construir uma vibe noir e detetivesca, além de compor a Gotham de Reeves evocando sentimentos como solidão e contemplação. Apesar de alguns aspectos pontuais, “Batman” se prova uma experiência instigante, além de servir como ponto de partida para um universo com bastante potencial. Se a história investigativa não é inovadora por si só, ao menos vê-la em um personagem tão propício a ela como o Homem-Morcego é, no mínimo, interessante. Resta saber se a fagulha de esperança acendida por Reeves será capaz de reanimar a humanidade de Bruce Wayne, neste filme em que até o próprio portador do traje do Batman praticamente some em decorrência do peso — do manto e dos traumas.

Martinho Neto
@omeninomartinho

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