Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 02 de fevereiro de 2022

Fora de Órbita (Netflix, 2022): narrativa construída sobre ótica errada

Netflix divide os filmes de Mitsuo Iso em uma série de 6 espisódios, que embora tivesse um potencial gigantesco, entregou uma história com muitas falhas e vazia de conteúdo.

Desde sua gênese, a ficção científica é um gênero que, tanto na literatura quanto no cinema, serve como um exercício crítico de imaginação sobre temas atuais extrapolados em uma ambientação futurista. A ferramenta da fantasia pautada na realidade que fabula em cima de críticas sociais é o que torna suas histórias interessantes, pois é como o espectador (ou leitor) passa a reconhecer a si e a sua realidade mesmo dentro de cenários impossíveis. Por isso, quando “Fora de Órbita”, produção distribuída pela Netflix, falha ao fazer uma análise da atualidade, sua obra enfraquece a despeito de sua interessante proposta. 

O anime foi lançado no Japão como um filme dividido em duas partes, porém ganhou o formato de uma série de seis episódios nas mãos da locadora vermelha. Dirigido e roteirizado por Mitsuo Iso, a obra conta a história do encontro de duas crianças que nasceram na Lua com três terráqueas no ano de 2045, quando neste universo se repercute a pós-colonização espacial. Um ataque em uma estação espacial e a ameaça da colisão de um cometa com a Terra se correlacionam a uma rede de conspirações que forçam as crianças a lutarem contra os perigos do espaço pela sobrevivência.

Colonização espacial é um dos temas mais quentes da atualidade quando se trata de tecnologia. É um terreno fértil para a ficção científica, que já explorou diversas vezes o tema e tende a fazê-lo ainda mais daqui em diante. Portanto, é empolgante ver essa temática em tela com tecnologias que parecem ser derivadas do que temos hoje, tais como grandes corporações e estruturas sociais que referenciam a atualidade ajudando a construir uma familiarização com este cenário. Iso tinha tudo para entregar uma produção consistente, e talvez por desperdiçar esse potencial que a resultante é uma frustração tão grande quanto a obra poderia ser.

Seria possível perdoar qualquer um de seus pontos fracos: a história morosa que só resolve engatar da metade para o final, ou os simbolismos vazios que não levam para lugar nenhum ao centrar a narrativa em dois personagens que se antagonizam em luz e sombra — não só nos nomes, Touya e Taiyou, como também nos figurinos preto e branco e seus gadgets de inteligência artificial que se chamam “Bright” e “Dakky” (Dark). Ambos devem aprender a trabalhar juntos, culminando numa mensagem infantil e pobre de sentido no final. Até mesmo seria possível passar por cima de seu folclore confuso que falha ao situar o espectador, pois não se preocupa em se explicar na introdução, mas quando já engatado na ação precisa recorrer a diversas pausas para esclarecimentos mirabolantes ao invés de tomar o caminho de, naquela altura, suspender a descrença. Assim se justificariam facilmente as batalhas de inteligência artificial serem traduzidas de forma boba a um combate físico no estilo bang bang, e até os momentos de conflitos terem resoluções fáceis e rápidas, quebrando a tensão construída. Seria perdoável se por baixo de tudo isso houvesse uma crítica forte ao que estamos vivendo enquanto uma sociedade que começa a explorar de fato a colonização espacial como possível solução à crise climática. Mas isso não existe no anime.

Iso decide optar por uma perigosa e errônea visão malthusiana, depositando a culpa do caos ambiental em que vivemos na superpopulação. E quando parece que tomará um caminho contrário às ideias ecofascistas de extermínio populacional, o diretor e roteirista encontra uma solução que reafirma esse problema, não só ignorando as suas verdadeiras causas — concentração de renda em uma minoria — como colocando-as como solução heroica.

“Fora de Órbita” não tem o ideal para ser uma boa ficção científica: uma leitura assertiva e crítica da realidade. Pelo contrário, parece não compreendê-la. Para alguém que integrou o time de animação de “Ghost in the Shell”, uma das melhores obras de sci-fi da história, o trabalho de Mitsuo Iso como roteirista desta obra é, no mínimo, decepcionante.

Tayana Teister
@tayteister

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